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11 de setembro dez anos depois

(Clique na imagem para me ouvir falar o poema WTC Babel S. A.)

Já não somos mais os mesmos desde o dia 11 de setembro de 2001. Nossa percepção estética, nossa visão de mundo, as bases da negatividade nietzschiana que nos habitavam ganharam novos aspectos desde o atentado ao World Trade Center.

Muita gente se levantou contra este fato, tocados pelos milhares de mortos. No entanto, não foram os mortos que alteraram nosso olhar. Mesmo porque não os vimos. O atentado do WTC foi o espetáculo trágico mais higiênico da história: nenhuma gota de sangue foi exposta. Apenas poeira. Apenas escombros. Frames. E a inauguração da estética do looping, adotada em todos os noticiários sensacionalistas desde então.

Godard dizia que o cinema jamais seria o mesmo depois de Auschwitz. Poderíamos repetir a fórmula e dizer: nossos olhos já não são mais os mesmos depois do 11 de setembro.

Cresci sob o clima da guerra fria. Ao longo da infância e da adolescência, assisti e por vezes participei de maniqueísmos falseadores. Super Homem contra Lex Lutor. He-man contra o Esqueleto. O bem contra o mal. Não era possível gostar de Beatles se você gostasse de Rolling Stones. Led Zeppelin ou Deep Purple. USA ou URSS.

O mundo mudou. A queda do muro de Berlim, o fim da União Soviética, as mudanças nas aparências políticas soavam amargas. Talvez ninguém mais se lembre, mas até o dia 10 de setembro de 2001, o mundo ainda olhava amedrontado para o fantasma do socialismo e a bomba atômica escondida por detrás dele (que poderia ser lançada por ele ou por seu arqui-inimigo, o fantasma do capitalismo). Ao amanhecer do dia seguinte, começava a tentativa de implantação de um novo maniqueísmo, um maniqueísmo que pretendia se tornar absoluto. O mais fácil de todos os maniqueísmos, posto que o inimigo era milenar: o islamismo. Saímos da guerra fria para a guerra morna, a guerra descafeinada.

Mas o que importa, a alteração ocorrida nas nossas relações humanas não dizem respeito ao acontecimento em si. O que há é que o atentado coroou um aprendizado que vínhamos desenvolvendo ao longo das últimas décadas do fin-de-siècle: a reconciliação dos aparentes opostos. Casamentos de céu e inferno. Novos reencontros de raças. Novas mestiçagens poéticas e inusitadas. Nomadismos transbordados da filosofia.

Já não nos é permitido olhar para as coisas de maneira generalizada, como tão bem aprendemos com as fórmulas da mídia. A comunidade-mundo se tornou pequena. Não apenas a internet nos deu a impressão de proximidade: há também uma melhoria e acessibilidade aos aeroportos. O fenômeno não é apenas brasileiro.

Desde o acontecimento, aprendemos que é urgente e necessário saber olhar através. Aprendemos que o sistema político que nos governa hoje já não é o capitalismo, mas o capital. Que o comunismo ficou insosso e, depois da revelação do que ocorria nos bastidores de suas ditaduras, nos parece hoje tão cruel quanto o nazismo. Que o mundo de aparências que os políticos produzem para os nossos olhos já não basta. Que a normalpatia já não nos salva.

Mas mais importante do que tudo isso: há dez anos que descobrimos que as palavras realmente importam. O WTC pode ter sido fruto de uma algaravia, resultado da incomunicabilidade humana. O WTC pode ter sido uma faceta da Babel que o Sonho Americano sucitava. Mas hoje, mais do que nunca, e mesmo para honrar os mortos do atentado (que não foram em menor quantidade que os negros linchados no Mississipi, que os mortos em Hiroshima e Nagazaki, que os índios extirpados do continente americano, que os antigos sábios da oceania, os opositores às ditaduras militares da América Latina nos anos 60, 70 e 80), devemos aprender o peso das palavras. Porque mais do que nunca, poetas, elas significam. Elas importam.

Lambe-lambe no xerox

Sou um entusiasta do DO IT YOURSELF. Mais do que apenas fazer você mesmo, também me empolgo com o DO IT YOUR WAY, faça do seu jeito.

Isso me faz lembrar o quanto foram importantes para mim as ondas da poesia marginal, que me chegaram em plenos anos 90. Belo Horizonte tinha cheiro de mimeógrafo. Já não era tanto pelo projeto “marginal”, mas muito mais pelo “DO IT YOURSELF”, os poetas animados a fazer o que era de se fazer sem esperar apoios, governos, editores. Sintomaticamente, boa parte dos poetas com quem eu convivia era punk ou ex-punk. Era exatamente como eu ouvi o Marcelo Dolabela dizer em maio: uma nova geração de poetas, com outra influência da poesia marginal, com outra influência do Leminski, com outro olhar sobre a utopia. Dos que mais me envolvi naquela época estão o Marcelo Companheiro e a turma dos Dragões do Paraíso: Renato Negrão, Paulinha, Daniel Costa, Tati Tavares e os inesquecíveis saraus na Casa Rosa, o bar da Inês. A anarquia era a prova dos nove.

Há duas semanas, durante a Flip, decidi fazer eu também o meu panfleto. Lambe-lambe é um desses projetos que você topa fazer para experimentar. Com tiragem super pequena, posso alterá-lo, revisá-lo a cada nova edição. Pode ser que mude de nome, pode ser que mude algum poema, quem sabe o design, quem sabe os desígnios. Lambe-lambe é só o começo da história. Um jogo. Feita a tiragem, nada me impede de continuar preparando meu próximo livro, cujo nome pretendo também abandonar.

Depois de xerocado e grampeado é que fui me lembrar de onde eu havia emprestado o nome. “Lambe-lambe” é um poema da Ana Ramiro de que gosto muito (um beijo, Ana!!!). Quase um manifesto para mim. Já o meu Lambe-lambe são poemas com cuspe, tonta manifestação política. Poemas de amor de um projeto abandonado, mas não esquecido. É o meu LET’S DO IT, façamos. MY WAY nesse Lambe-lambe é a procura de uma fala urbana que penetre em tudo o que se faz, em tudo o que se vive. Cartazes nas vigas do Minhocão. Fotógrafo de praça. Pirulitos. Língua de fora de tanto perder tempo tentando fazer sentido. E estranhos vendedores ambulantes que te abordam com uma pergunta indiscreta, a propósito da mercadoria que têm em mãos: “Você gosta de poesia?”

Não foi só da Ana que fiz empréstimos: o principal e quem me lançou o mote foi o Chacal, ao me mostrar seu folheto Subversão, no qual reúne poemas éditos e inéditos [“Pessoas físicas são livres/para seguir seu caminho/sempre ao sabor do vento”]. Um projeto simples que, para mim, veio como uma lição de mestre. O livreto dele, feito no xerox, com pequenas colagens e posicionamentos políticos extremamente necessários nesses tempos de caretice crônica e poucas apostas est-éticas. “Voltando às origens”, ele disse.

Poesia contra a moral e os bons costumes

O que existe de valor por aqui exceto a paisagem?
Incontida volúpia de saquear.
É mister roubar. É mister roubar a luz
Que cobre
Montanha e mar.
Roube!

(Waly Salomão, “Poesia Hoje”)

Quem frequenta esse salamal-antro há mais tempo, deve ter sentido a falta do antigo subtítulo que sempre o acompanhou: “poesia contra a moral e os bons costumes”. O retirei faz pouco, não porque tenha mudado de ideia, mas porque sei o quanto essas palavras pesam para os olhos incautos, o susto que as pessoas desprevenidas tomam ao ler logo a frase assim a queima-roupa. Sei também que há aqueles que se torna(ra)m leitores do blogue ao se deparar com a proposta, os que aderem logo de cara, se entusiasmam, que já trazem o gozo na alma. Afinal, tenho que admitir, querer isto da poesia não é nada original. Faz parte das ideias que circulam no ar, do Zeitgeist, o Espírito da Época.

Dia desses recebi no meu e-mail a seguinte mensagem, de uma certa Mariana:

Poesia contra a moral e os bons costumes. Isso é apresentação que se apresente? O país está afundando em desonestidade e imoralidade e você tem coragem de fazer uma propaganda contra a moral? Que coisa mais triste. Fiz uma pesquisa no google e veio sua página, tive pavor quando li. Você é adolescente e odeia os seus pais, é isso?

Achei graça do comentário. Não concordo com uma palavra do que ela diz. Acho que sim, é apresentação que se apresente, contra a imensa caretice (isto sim!) em que este mundo está se afundando, não apenas o país. Acho que tamanha caretice virou justificativa para a desonestidade a que minha correspondente faz referência, e não só no Brasil. Também não concordo com a importância que ela dá à moral e menos ainda com a oposição que ela faz à desonestidade. E não se trata de odiar os pais, Mariana, mas de honrá-los e (se desse) de sacanear com esse paternalismo machista para o qual nós, homens e mulheres, fazemos as nossas preces sempre com medo que ele caia de vez.

Mas é tudo uma questão de conceitos. Foi a Renata Oliveira (grande amiga que sempre me aplica em novidades deleuzianas e outras firulas filosóficas iluminadas) que me mostrou o texto “Ética como potência, Moral como servidão”, de Luiz Fuganti (clique aqui para lê-lo). Ótimo para ilustrar o quanto de sujeição voluntária há em se querer um mundo mais “moral”. Vale a pena citar:

Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados “bons costumes”, autoqualificados de científicos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituídos de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação.

Moral e bons costumes são os instrumentos do Leviatã. O cidadão crédulo de que a realidade constituída é produtora de paz e tranquilidade. Salvo do medo e do desengano (para não dizer salvo no medo e no engodo), ele pode seguir em frente sabendo que existe uma frase feita, um discurso pronto em que se apoiar. Os caminhos da moral levam facilmente à culpa e à hipocrisia.

Isso sem falar no politicamente correto. No mundo conectado, o politicamente correto é um grande subterfúgio maniqueísta, provavelmente com a mais ampla adesão já vista na história da linguagem. Supõe-se que, mudando os nomes das coisas, elas se tornam menos violentas e, daí, mais “moralizadas”. Chamam negro de afro-descendente, aumentando assim o grau de indexação do indivíduo a partir da velha convenção de que a África é o continente negro e não outra coisa. E daí por diante com burocratizações e relativizações de palavras sucintas e eficazes como “cego”, “mudo”, “surdo”. No mais, não  há indício nenhum de que fulano ou sicrano não possa usar termos politicamente corretos de maneira discriminatória. As maneiras “light” de usar a linguagem não garantem a inexistência de sentimentos ruins.

Embora seja fruto da desconfiança com a linguagem, não deixa de haver uma certa nostalgia no politicamente correto (vale dizer que algumas das pessoas que mais admiro, são praticantes do famigerado vocabulário politicamente correto e não as culpo por isso). Ao tentar retirar a carga de violência da vida mudando as palavras, tenta-se conferir eficácia a elas. Não notam que ao fazer isto, os próprios falantes colocam as palavras em descrédito. O politicamente correto é a moral aplicada à linguagem, apenas mais uma tentativa de domesticá-la.

Vivemos numa espécie de Alphaville de Jean-Luc Godard. Propagamos ideias aparentemente rebeldes via Twitter ou via Facebook sem notar que estamos apenas repetindo os adágios politicamente corretos da grande mídia. Ao mesmo tempo, entregamos informações a nosso respeito para grandes corporações fantasiadas de prestadoras de serviço. A diferença entre moral e ética é a diferença entre o Facebook e a poesia. No primeiro, todos se creem participantes da grande comunidade humana mundial. O Facebook (e também a moral) é a realização dos nossos desejos mais adolescentes: com ele sentimos que “fazemos parte”. Nas redes sociais, a poesia encontra finalmente um significado (que ela não pediu). Lá, ela finalmente se torna útil: ao ser postada, as pessoas curtem. Ou não.

O poeta que busca a liberdade, rema (rima?) contra a correnteza: suas palavras são dotadas de uma estranha transfiguração, já não ditam ordens, já não constituem leis. No poema, as palavras são um fim em si mesmas, totalmente inútilizáveis. Pura potência contra uma vida apegada a significados, coerções, sedução e consumo. Contra a moral, a poesia é a felicidade de quem alcançou a miséria absoluta. Como com os antigos profetas judaicos, os griots do Senegal, os aedos gregos, os bobos das cortes medievais, os juglares da península ibérica: não ter nada nos concede o direito de dizer tudo, levem-nos a sério ou não. A grande comunidade mundial da poesia é uma imensa população de dissidentes entre si. Ao discordarem uns dos outros, tendem a estar cada vez mais unidos.

O mundo baseado na moral introjetada tende a se tornar irrespirável. 1984 é aqui. Surgirá algum poema que nos tire dessa estúpida monotonia? Como no filme do Godard, virá Lemmy Caution falar versos incompreensíveis para destruir Alpha 60, o grande olho central? Algum Orpheu maldito nos tirará desse inferno? O mundo pode ser mais interessante que uma timeline ou um programa de notícias? É possível haver vida para fora dos prolixos 140 caracteres, das novelas e das soap operas?

Poesia contra a moral e os bons costumes é um apelo que carrega em si o sufixo -ética: além dos já esperados po-ética, est-ética, quero sonhar também com sint-ética e sincr-ética. Poesia como potência. Crueldade como ecologia da linguagem. Poesia. E seus arredores.

Poesia liberdade

O poeta mexicano Heriberto Yépez defendia, por volta do ano 2000, que fosse abolida a noção de literatura (já caduca) para colocar em seu lugar o “Decir” (Dizer). Gosto muito da crise que essa proposição provoca. “Por uma poética antes do paleolítico e depois da propaganda”, manifesto que aparece no livro de poemas que tem exatamente esse título, é um dos poucos escritos realmente revolucionários que li entre os poetas da minha geração. Só não concordo com o termo encontrado. Acho “Dizer” amplo demais, pode significar coisa demais, pouco específico. Aprendi com as yalorixás que é preciso dizer as palavras certas, caso se queira obter certo resultado.

Quanto a mim, prefiro um outro termo igualmente caduco e relaxado (por remeter a uma falsa idéia de beletrismo e bondade), porém mais específico: poesia. Poesia: elemento pulsante e vital de toda grande obra de arte, seja ela em versos, tinta, bytes, pedra, cores ou sons. Heriberto mesmo não descarta o termo. E fodam-se as especificidades disciplinares.

Mas aí, dizendo isso, me vem à cabeça o que dizia Artaud em 1944. “Revolta Contra a Poesia” é um texto cruel. “Nós nunca escrevemos sem a encarnação da alma, mas ela já estava pronta, e por nós mesmos, quando entramos na poesia. O poeta que escreve dirige-se ao Verbo e o Verbo às suas leis. Há, no inconsciente do poeta, a crença automática em suas leis. Ele se crê livre, mas não o é.” Artaud se dizia “contra a poesia dos poetas”. Ele via “não sei que operação de rapina, que autodevoração de rapina onde o poeta, se limitando ao objeto, se vê devorado por esse objeto”. Uma abjeta devoração de si mesmo. Artaud estava louco? Se estava, alguém me prenda por favor.

Evelyne Grossman, especialista em Artaud e sua biógrafa, mostra* que o missivista de Rodez queria era “não a poesia-objeto (de gozo, de consumo, de leitura… à distância), não a poesia que ele qualificava de “literária”, mas a poesia-força, encantamento, ritmo, “a poesia no espaço” (o que ele definia como teatro), o movimento das sílabas proferidas, expectoradas – os corpos animados por palavras”.

Muitas vezes, publicar um livro de poemas é mais uma questão de estômago. Aceitar ou não aceitar essa abjeta devoração de si mesmo. Há quem suporte. Poemas não são como ensaios acadêmicos: não precisam ser publicados para acontecer. Poetas são muito afoitos. Querem ver logo seus livros publicados, antes mesmo dos poemas existirem. Querem ser vistos, tidos e reconhecidos como poetas. Há inclusive os que estudam semióticas, cânones, linguagens. Mas não se preparam para preencher seus corpos e seus versos com os ritmos e sons gerados no big bang (no fundo todo poema é um big bang). E toda a ousadia que conseguem derramar em seus textos não passa de literatura. Milhares de livros de poesia publicados ao ano. Árvores cortadas em vão. Depósitos e mais depósitos amontoando papel inútil pintado com tinta. Lamentáveis gritos de autoestimas machucáveis. Anotações para diário inúteis para quem não nasceu dentro do corpo do autor.

Prefiro poesia. Não sei se escolho a palavra certa. Mas que importa o certo? Um bom romance muitas vezes é um bom poema. Vice-versa não. Ainda Artaud: “Quando recito um poema, não é para ser aplaudido mas para sentir corpos de homens e mulheres. Corpos, insisto. Vibrar e emanar em uníssono com o meu, emanar como se emana, da obtusa contemplação, do buda sentado, coxas instaladas e sexo gratuito, à alma, quer dizer, à materialização corporal e real de um ser integral de poesia”**.

* no prefácio à edição francesa de Pour en finir avec le jugement de dieu.
** citação de uma carta a Henri Parisot, datada de 6 de outurbro de 1945 e incluída no mesmo prefácio de Evelyne Grossman.

Jerome Rothenberg, 1966

Proposições revolucionárias
(1966)

1. Uma revolução envolve uma mudança na estrutura; uma mudança no estilo não é uma revolução.

2. Uma revolução na poesia, na pintura ou na música faz parte de um plano revolucionário total. A arte (moderna) é fundamentalmente subversiva. Sua investida é em direção a uma revolução ilimitada (contínua).

3. “Toda forma, qualquer que seja ela, pelo simples fato de que existe como tal & resiste, necessariamente perde vigor & se torna desgastada; para recuperar o vigor, ela deve ser reabsorvida no amorfo, ao menos por um momento; ela deve ser restabelecida à unidade primordial da qual descendeu; em outras palavras, deve voltar ao ‘caos’ (no plano cósmico), à ‘orgia’ (no plano social), à escuridão (como semente), à ‘água’ (batismo no plano humano, Atlântida no plano da história e assim por diante).” -M. Eliade

4. “A árvore da liberdade deve, de tempos em tempos, ser reanimada com o sangue de patriotas & de tiranos. É seu adubo natural”. – T. Jefferson. “Sem contrários não é progressão. Atração & Repulsão, Razão & Energia, Amor & Ódio são necessários à Existência Humana”. -W. Blake

5. É possível racionalizar a história da poesia ou da arte moderna, mascarar seu caráter subversivo; mas mesmo como mania & moda passageiras, a poesia continua a subverter, a destruir os construtos de uma antiga ordem à medida que edifica os construtos-esboços de uma nova ordem.

6. “O desenvolvimento dos cinco sentidos é obra de toda a história do mundo até o presente”. -K. Marx

7. Uma mudança na visão é uma mudança na forma. Uma mudança na forma é uma mudança de realidade.

8. “A função do poeta é espalhar dúvida & criar ilusão.” -N. Calas

Do livro Etnopoesia no milênio de Jerome Rothenberg, organizado por Sérgio Cohn, traduzido por Luci Collin e publicado em 2006 pela Azougue Editorial.

Para acabar com o juízo dos críticos

Sempre tive um pé atrás com as críticas que topam manifestar juízos sobre o que presta e o que não presta. Tenho para mim que toda teoria que parte de um único ponto de vista acaba por se tornar unívoca e, por isso mesmo, equívoca. Aprendi muito cedo que o projeto poético alheio deve ser respeitado, mesmo que eu não goste dos seus princípios ou os seus fins. Cada pingo no seu i, alguns iis com seus acentos. Repito o lugar comum de que “não gosto de poetas, nem de poesia, gosto de poemas”. Mas não serei eu a tomar partido ante o que supostamente presta ou não presta. Uma base teórica costuma ter a pretensão de basear-se em conceitos. Todo bom conceito precisa funcionar como uma ferramenta de pensar. Mas se um conceito segue sendo usado para engendrar juízos de valor, ele logo se tornará um pré-conceito. Na verdade, todo juízo de valor, feio ou bonito, bom ou ruim é sempre um preconceito, um pré-juizo que nada tem a ver com a arte em si.

A chegada da obra de Ezra Pound na cultura brasileira, nos anos 50 e 60 através dos concretistas e de Mário Faustino foi providencial. Nos dias de hoje, o discurso insistentemente neopoundiano está obsoleto e mal utilizado. E não é culpa das idéias dele. É que elas cansaram de servir a tudo. Vivemos uma época de tantas incertezas que ficamos sem perceber que neste assunto nada mais foi investigado, proposto, acrescentado. Aprendemos muito pouco sobre Pound depois dos concretos. Falar dele em língua portuguesa é lê-lo fora de seu contexto. Seria necessário pensar em toda a poesia de língua inglesa desde sua época até os dias de hoje, com suas várias gerações de artistas que pegaram a lição do velho Pound e a aproveitaram à sua maneira. Dos beats ao slam, muita coisa passou desapercebida no lado debaixo do equador. A language poetry e o concretism são apenas manifestações tímidas e localizadas em meio ao turbilhão revolucionário da língua de Blake e não são as mais radicais, e já temos Jerome Rothenberg que colocou recentemente os poetas xamãs esquimós do Canadá ao lado de Augusto de Campos no setor destinado à poesia visual em sua antologia Poems for the millenium.

Noto que, com o tempo, os críticos se apegam aos juízos e se esquecem que Pound queria uma poesia sem literatura, que ele incitava os artistas da língua a escrever no idioma vernacular falado (não será exatamente o que Mallarmé também sonha quando diz em seu poema, já com a carne triste depois de haver lido todos os livros e pensado seriamente em fugir: “entends le chant des mâtelots [ouve a canção dos marinheiros]”?) e que o seu paideuma, (ou mãedeuma) era proposto apenas como um dentre os muitos possíveis ou não passava de filhodeuma.

O discurso dos ditos “de vanguarda” está gagá. Até mesmo a pretensa “tradição da ruptura” de Octavio Paz, (aquela teoria segundo a qual a tradição da poesia moderna consiste em romper com o passado, ou seja, a tradição de romper com a tradição) já perdeu o sentido. Afinal, romper com o que? Com que tradição podemos romper se já não nos apegamos a nenhuma. Se Bauman está certo em dizer que vivemos em “tempos líquidos”, vamos quebrar o quê?

Não é de hoje que leio poetas-críticos respeitáveis que não conseguem esquecer as lições dos concretos. Em plena era pós-2000, ainda alardeiam os mesmos adágios que Haroldo e Augusto de Campos andaram repetindo com maestria ao longo dos últimos quase 60 anos (!) mas com uma nota decadente, já que estão ocupados mais que tudo em fazer com que a literatura (a poesia incluída como literatura) entre pelo cânone. Procuram não-linearidade na criação literária, acham proibido falar de qualquer coisa que não seja o próprio poema no poema, negam a importância do idioma vernacular e esperam grandes pretensões do mero ato de fazer poesia por fazer. Para completar, veneram a importância das ditas “grandes obras” e citam poetas de prestígio unânime, “canonizados”. Ou seja, querendo se dizer amantes do difícil, acabam recorrendo ao fácil (existe coisa mais fácil que aceitar como “bom” aquilo que já é inquestionadamente aceito por todos?).

Todas as grandes descobertas passam por um primeiro momento em que ficam acessíveis apenas aos pesquisadores mais avançados e depois se tornam de uso comum. Os irmãos Campos foram vanguarda nos anos 50 e mantiveram uma chama acesa durante décadas num país fadado à burrice. Mas hoje em dia, eles são leitura obrigatória do jardim de infância de qualquer poeta brasileiro que se preze. Repetir essas teorias como se fossem a grande resposta depois de haver alcançado a idade adulta, é sintoma de alguma paranóia ou então estamos diante de um estranho conservadorismo, justo ali onde o crítico se quer mais avançado. Pois não foram os próprios poetas concretistas que a princípios dos anos 80 exortavam seus discípulos Paulo Leminski, Waly Salomão, Antônio Risério, Régis Bonvicino a romper com o concretismo?

É preciso acabar com o julgamento e a sanha classificatória dos literaturistas. Isto sim seria romper. O que podemos depreender de todo o processo civilizatório da cultura brasileira até aqui é que fomos, na maior parte do tempo, um povo reverente a tudo o que cremos ser la crème da civilização. No intuito de “fazer parte”, nós brasileiros acabamos boiando. Nos esforçamos incansavelmente para negar nossa barbárie que é, a bem da verdade, nosso maior patrimônio e o que nos coloca na vanguarda dos povos, ao lado dos bororo, os hotentotes, os taraumaras, os maori. Para quê se esconder por detrás das palavras? Se continuarmos a perder tanto tempo com juízos, escolhas do que é bom ou não, classificações e etiquetamentos, logo chegaremos ao século XIX ou ao manicânone. Convenhamos: a linearidade só pode ser um problema para aqueles que têm fé na linearidade de suas vidas. A poesia, “religião original da humanidade” (Novalis) é liberdade da linguagem (Leminski). E liberdade é ter todas as opções à mão, sem interditos. Se é para seguir o pensamento crítico de Ezra Pound, então por favor, que se possa pelo menos “make it new”.

Autofagia + Ruah! + Pigmentos Sonoros +

ruah-estampa

Pigmentos Sonoros – Uma homenagem a John Cage

Benjamin Abras e Leo Gonçalves lançam o Coletivo Ruah! na performance Pigmentos Sonoros no próximo dia 10 de setembro, a partir das 20h no lançamento da Revista de Autofagia 2 e 3, no Auditório da Escola Guignard.

Apresentação poético-musical baseada em pesquisas ritualísticas, explorando ritmos e sons vocálicos. Para a performance, o coletivo ruah! aproveita estruturas sonoras primitivas onde a desconstrução leva à re-significação das palavras (ou não-palavras).

A proposição “Pigmentos sonoros” surgiu do intuito de homenagear o compositor-poeta John Cage, que no último dia 05 de setembro completaria 97 anos e da intensa interlocução interartística estabelecida em 2009 entre os dois poetas que compõem o coletivo ruah!

Salpicar os sons, desmantelando palavras do sentido roto, ampliando sua corpografia através do canto onde, tom sobre tom, imprimem no corpo o matiz de uma vontade pela vibração das palavras. A palavra retomando corpo, retomando som como paramento de um instante, onde o jogo “vocográfico” desenha possibilidades poéticas entre os falantes, os ouvintes e os dançantes. Sugerindo uma pequena parafernalização dos sentidos [salve Julius], a fim de despertar a ação da palavra enquanto produtora de corporalidades sutis. A performance Pigmentos Sonoros é um experimento do coletivo RUAH!, feita com registros de som e silêncio dentro da poesia sonora, ritualizando a desconstrução da realidade cartesiana e produzindo uma experiência da voz enquanto escrita corporal.

O coletivo ruah! é formado por Leo Gonçalves e Benjamin Abras. Tem como objetivo a investigação, a experimentação e a execução de trabalhos pluriartísticos em plena interação com as tradições mestiças que habitam o planeta.

a lente objetiva do poema

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pensar que um poema pode ser um objeto de palavras completamente desnudado. através de um poema é possível comunicar, informar, pensar, refletir (e não apenas reclamar da vida, chorar amores perdidos, expressar as coisas da alma). assim como o cinema de godard, alguns lances da música contemporânea, certas performance-arte, e por aí vai.

as vanguardas do século XX abriram o poema para outros usos da palavra. não só música. não só visualidade. a partir das técnicas que cada poeta cria para seu poema, ele opera uma transgressão da linguagem, como que abrindo uma terceira margem na língua. ele não é escravo das regras que a língua impõe, e por essa carta branca que recebe, pode reinventar o mundo a cada poema novo, dando dimensões inesperadas para a realidade. nada disso se faz apenas no campo da subjetividade, do sujeito.

objetivamente, um poema recria vida, detona acontecimentos.

a palestra “a lente objetiva do poema” é um diálogo aberto, uma proposta, um céu aberto. será inaugurada nesta segunda-feira, dia 23 de fevereiro às 10h, na Escola Autônoma de Feriado”.

estúdio azucrina
r. macedo, 117
floresta – belo horizonte.mg

saiba mais no: www.azucrina.org/eaf/