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Pelo cu: políticas anais

O cu é o grande lugar da injúria, do insulto, como vemos em muitas expressões cotidianas. A penetração anal como sujeito passivo está no centro do discurso social como o horrível, o mau, o pior. Mas na atualidade existem culturas que se reapropriaram deste lugar abjeto e souberam convertê-lo em um lugar produtivo e positivo.

Neste livro, os autores fazem um estudo amplo e ameno, recorrendo ao redor do cu e do sexo anal, passando por sua história, valores de como o ânus organiza os gêneros e as sexualidades e de como esttá atravessado por critérios de raça, classe e poder. Desde a complexa sexualidade anal na Grécia Antiga até a crise da Aids, passando pelas prisões, o Bareback, Freud, as lésbicas butch, os sodomitas, o técnico de futebol Luís Aragonés, o fist-fucking ou os ursos, este livro traça a genealogia de um dos espaços menos explorados pela teoria, mmas o mais transitado pela prática: o espaço anal.

Texto da quarta capa do livro.

Em 2015, fui contactado por Rafael Leopoldo a propósito de um poema de Allen Ginsberg que eu havia traduzido: “Esfíncter”. O tradutor de Pelo cu, queria utilizá-lo na epígrafe, já que os autores Javier Sáez e Sejo Carrascosa o haviam citado, usando uma tradução ao espanhol. Começamos então uma conversa sobre o tema e ele, sabendo de meus trabalhos editoriais, acabou por me contratar como o revisor da tradução.

Inicialmente achei o título extremamente provocativo e, confesso, essa foi uma das coisas que mais me atraíram no projeto. Mas minha surpresa aumentou ainda mais à medida em que fui conhecendo o texto, que considero ao mesmo tempo esclarecedor, propositivo, traz importantes análises dos contextos em que estamos vivendo e reorganiza diversos dos processos sociais que entraram para as urgências da vida contemporânea.

Após enumerar diversas injúrias em diversos idiomas sobre a questão anal, os autores fazem, primeiro, um estudo do que é o “ser macho”. São diversos os casos em que acabamos por ouvir alguma escusa para que amplie o tabu do ânus. Afinal, nas sociedades ocidentais, todos os seres humanos são penetráveis, com exceção do homem hetero. O homem é o impenetrável.

Mas esta conclusão, que trata de uma questão aparente não fala a respeito de TODOS os homens. Toda interdição é, por princípio, um objeto a ser subvertido. É comum homens hetero pedirem para serem penetrados por suas mulheres, assim como há imensas multidões de homens que frequentam ambientes em que possam ser penetrados em segredo.

Dessas primeiras interpretações da masculinidade é que surge uma teoria da passividade como fonte de prazer. “Não, o sexo não se reprime ou ao menos não de maneira uniforme”, dizem os autores. Essas incoerências que existem ao redor do cu é que formam o grande corpus deste ensaio, assim como uma análise das diversas subversões dos dispositivos heterocentrados. Para lidar com esses sistemas de tabus e hipocrisias, é que os autores aconselham logo de início: “abra o seu cu e abrirá sua mente”.

Ao longo das páginas desta obra, encontramos diversos temas que fazem parte do universo queer. Algumas desconhecidas da grande maioria. O livro segue as trilhas deixadas por teóricas/os tão importantes como Judith Butler e Paul B. Preciado, sempre colocando em questão alguns aspectos chave.

O time envolvido neste trabalho é extremamente interessante. Javier Saez, que é sociólogo e tradutor, autor de um ensaio de nome “Teoria queer e psicanálise” e tradutor de Monique Wittig, Judith Habelstam, dentre muitos outros. Sejo Carroscosa, que se diz um “alérgico” ao mundo acadêmico, foi ativista em diversos grupos de caráter antiautoritário e de liberação sexual. Rafael Leopoldo, o tradutor, por fim, é um filósofo belorizontino, com diversos artigos publicados e uma carreira de professor que tem se solidificado nos últimos anos.

Título: Pelo cu: políticas anais
Autores: Javier Sáez e Sejo Carrascosa
Tradutor: Rafael Leopoldo
Editora: Letramento/Quixote
ISBN: 978-85-68275-98-6
Ano da publicação: 2016

paul valéry para distrair

valery

pessoas cultas adoram citar paul valéry (aquele cara do mallarmé fã clube). pouca gente sabe que como poeta tinha hora que ele era  mesmo um pé no saco (pronto, falei!). por outro lado, era quase sempre um frasista de primeira (e é o que os “cultos” costumam citar: suas frases). certamente ele devia ser duro na queda porque tinha sempre uma tirada sutil, um impropério apropriado, um aforismo ou desaforismo para cada ocasião. comparável a ele só oscar wilde. traduzi algumas aqui, só pra distrair, enquanto não cessam os ventos de maio.

“o homem de negócios é um híbrido de bailarino com máquina de calcular”.

“é impossível compreender e punir ao mesmo tempo”.

“a mentira e a credulidade se acasalam e geram a opinião”.

“um homem competente é um homem que se engana de acordo com as regras”.

“creia, ou eu te mato pra sempre”.

“o poema – essa hesitação prolongada entre o som e o sentido”.

“os livros têm os mesmos inimigos do homem: o fogo, a umidade, os bichos, o tempo e seu próprio conteúdo”.

“o que há de mais profundo no homem é a pele”.

sociedades do espetáculo

o livro “la societé du spectacle” teve sua primeira edição em 1967, o ano em que a terra estava em transe. nos anos seguintes, guy debord, seu autor, pôde confirmar muitas das coisas que ali estavam profetizadas (fico imaginando o que ele diria hoje, depois do espetáculo do world trade center, das campanhas eleitorais de países como o brasil e os estados unidos ou da espetacularização do assassinato de crianças, transformando os criminosos em verdadeiros astros pop às avessas).

em 1988, pensando nisso, ele escreveu os “comentários à sociedade do espetáculo”. foi por essa época que saiu na itália o livro “la societá dello spetacolo”, com posfácio entitulado “Glosas marginais aos “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”” de giorgio agamben. texto inédito em livro no brasil. agora traduzido por joão gabriel e disponível no blogue dele: l’autre nom.

no texto, o filósofo italiano comenta coisas como o acontecimento de timisoara, à época do fim do regime comunista na romênia (“pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres recentemente enterrados ou alinhados sobre as mesas dos necrotérios foram exumados rapidamente e torturados para simular diante das câmeras o genocídio que deveria legitimar o novo regime”.) e a legitimação de um estado espetacular (ou democracia-espetacular). deixo com vocês uma palhinha:

pela primeira vez na história do século, as duas grandes potências mundiais são dirigidas por duas emanações dos serviços secretos: bush (antigo chefe da CIA) e gorbatchov (o homem de andropov); e mais eles concentram o poder em suas mãos, mais isto é saudado, pelo novo ciclo do espetáculo, como uma vitória da democracia. a despeito das aparências, a organização democrática espetacular mundial que se desenha assim corre o risco de ser, na realidade, a pior tirania que jamais foi conhecida na história da humanidade, por relação a qual toda resistência e oposição se tornarão mais difíceis, visto que assim ela terá por tarefa administrar a sobrevivência da humanidade para um mundo habitável pelo homem.

giorgio agamben, 1991

um trecho do breviário dos vencidos, de e. m. cioran

“os que são afligidos pelas insuficiências humanas, que se deixam entristecer pelo vão escorrer das horas, com que alegria se entregam àquele brilho que projeta sobre as coisas um conteúdo ardente! para uma alma a qual o vazio do mundo atormenta, a obsessão da vingança é um alimento doce e fortificante, um elemento substancial de todos os instantes, uma irritação que engendra sentidos acima do não-sentido geral. as religiões, em seu ódio a tudo o que é nobreza, honra e paixão, inocularam a covardia nas almas, proibiu-lhes a renovação dos frêmitos e dos frenesis. elas não tocaram nada tão duramente como a necessidade que o homem tem de ser ele ao se vingar. que aberração – perdoar seu inimigo, oferecer à palmatória e às cusparadas todas as fauces inventadas por um pudor ridículo, uma vez que nossos instintos nos incitam a pisoteá-lo como um bicho nojento.

é em suas intolerâncias que o homem é um homem. alguém te enganou? nutra o ódio em você, alimente seu rancor secreto, aqueça a bile em suas veias. e se às vezes você sente que a ampla quietude das noites te ganha, não se deixe cair no esquecimento lenitivo da meditação – açoite sem piedade a sua carne amolecida, deixe o seu veneno no corpo do adversário. senão, para quê prolongar uma vida que só servirá de fardo?”

(trecho de “breviário dos vencidos”(îndreptar pătimaş), escrito entre 1940 e 1944, último livro que o romeno escreveu em sua língua pátria. assim como este, o livro está repleto de textos provocadores e cruéis, tratando de diversos assuntos cada vez mais polêmicos, especialmente nessa nossa época de lenitivos e de discursos politicamente corretos).

“não é muito difícil determinar a essência da “novela” como gênero literário: existe uma novela quando tudo está organizado em torno da questão “que se passou? que pode ter acontecido?”. o conto é o contrário da novela porque mantém o leitor ansioso quanto a uma outra questão: que acontecerá?”

gilles deleuze & félix guatarri

e. m. cioran

“a verdade não sonha jamais”, disse um filósofo oriental. é por isso que ela não nos interessa. o que faríamos nós da sua miserável realidade? ela só existe na cabeça dos professores, nos preconceituosos escolares, na vulgaridade de todos os ensinamentos.

mas no espírito ao qual o infinito dá asas, o sonho é mais real que todas as verdades. o mundo não é; ele se cria cada vez que o entusiasmo do começo atiça a brasa da nossa alma.

O gato no egito

*Camille Paglia

Uma das mais incompreendidas características da vida egípcia é a veneração dos gatos, cujos corpos mumificados têm sido encontrados aos milhares. Minha teoria é que o gato foi o modelo da singular síntese de princípios do Egito. O gato moderno, o último animal domesticado pelo homem, descende do Felis lybica, um gato selvagem do Norte da África. Os gatos são errantes e misteriosas criaturas da noite. Crueldade e brincadeira são a mesma coisa para eles. Vivem do e para o medo, treinando assustar-se e assustar os humanos com súbitas correrias e emboscadas. Os gatos habitam o oculto, isto é, o “escondido”. Na Idade Média, eram caçados e mortos por suas ligações com as bruxas. Injusto? Mas o gato realmente está ligado à natureza ctônica*, mortal inimiga do cristianismo. O gato preto do Dia das Bruxas é a sombra que ficou da noite arcaica. Dormindo até vinte de cada 24 horas, os gatos reconstroem e habitam o primitivo mundo noturno. O gato é telepata – ou pelo menos acha que é. Muitas pessoas se amedrontam com seu olhar frio. Comparados com os cães, servilmente ávidos por agradar, os gatos são autocratas de evidente interesse próprio. São ao mesmo tempo amorais e imorais, violando regras conscientemente. Seu “mau” olhar nessas horas não é nenhuma projeção humana: o gato talvez seja o único animal que saboreia o perverso ou reflete a respeito. Assim, o gato é um adepto dos mistérios ctônicos. Mas tem uma dualidade hierática. Tem olhar intensivo. O gato funda o olho de Górgona do apetite com o distanciado olho apolíneo da contemplação. Valoriza a invisibilidade, imaginando-se comicamente indetectável quando atravessa um gramado com passo malandro. Mas também adora ver e e ser visto; é um espectador do drama da vida, divertido, condescendente. É um narcisista, sempre ajeitando a própria aparência. Quando está assanhado, seu ânimo cai. Os gatos têm um senso de composição pictórica: colocam-se simetricamente em cadeiras, tapetes, até mesmo numa folha de papel no chão. Aderem a uma métrica apolínea de espaço matemático. Altivos, solitários, precisos, são árbitros da elegância – esse princípio que considero nativamente egípcio.

Os gatos são poseurs. Têm um senso de persona – e ficam visivelmente vexados quando a realidade perfura sua dignidade. Os macacos são mais humanos, mas menos bonitos. Agachando-se, tagarelando, batendo no peito, mostrando o traseiro, os macacos são convencidos vulgares que assomam na estrada evolucionária. As sofisticadas personas dos gatos são sinais de avançada teatralidade. Sacerdote e deus de seu próprio culto, o gato segue um código de pureza ritual, limpando-se religiosamente. Faz sacrifícios pagãos a si mesmo e pode partilhar suas cerimônias com os eleitos. O dia do dono de um gato muitas vezes começa com um belo monte de entranhas ou pernas trituradas de camundongo na varanda – lembretes darwinianos. O gato é o habitante menos cristão do lar médio.

No Egito, o gato; na Grécia, o cavalo. Os gregos não ligavam para os gatos. Admiravam o cavalo e usavam-no constantemente na arte e na metáfora. O cavalo é um atleta, altivo mas serviçal. Aceita cidadania num sistema público. O gato é a lei em si. Jamais perde seu ar despótico de luxo e indolência orientais. Era feminino demais para os gregos, amantes do masculino. Falei da invenção egípcia da feminilidade, uma estética de prática social distanciada da brutal maquinaria feminina da natureza. As roupas da egípcia aristocrática, uma perfeita túnica de linho transparente pregueado, eram macias, lisas, fluidas. Macia é a sorrateiricie noturna dos gatos. Os egípcios admiravam o aspecto liso, nédio, nos mastins, chacais e gaviões. O nédio é o liso contorno apolíneo. Mas a maciez é a arte sinuosa das trevas daimônicas, que o gato traz para o dia.

Os gatos têm pensamentos secretos, uma consciência dividida. Nenhum outro animal é capaz de ambivalência, essas ambíguas correntes contraditórias de sentimentos, como quando um gato ronronante enterra ao mesmo tempo os dentes como advertência, no braço de alguém. O drama interior de um gato ocioso é telegrafado pelas orelhas, que giram para um farfalhar distante enquanto ele repousa os olhos com falsa adoração nos nossos, e depois, pela cauda, que bate ameaçadora mesmo quando ele cochila. Às vezes, o gato finge não ter qualquer relação com a própria cauda, à qual ataca esquizofrenicamente. A cauda a contorcer-se e a bater é o barômetro ctônico do mundo apolíneo do gato. é a serpente no jardim, trombando e triturando com maliciosa antecipação. A ambivalente dualidade do gato é dramatizada nas suas erráticas mudanças de humor, saltos abruptos do torpor à mania, com os quais contém nossa presunção: “Não chegue mais perto. Nunca se sabe”.

Assim, a veneração dos egípcios pelos gatos não era nem tola nem infantil. Por meio do gato, o Egito definiu e refinou sua complexa estética. O gato era o símbolo daquela fusão de ctônio e apolíneo que nenhuma outra cultura conseguiu. A linha pagã de olho intenso do Ocidente começa no Egito, como acontece com a dura persona da arte e da política. Os gatos são exemplares de ambos. O crocodilo, também cultuado no Egito, assemelha-se ao gato em sua passagem diária entre dois reinos: movendo-se entre água e terra, o rugoso crocodilo é o ego blindado do ocidente, sinistro, hostil e sempre em guarda. O gato é um viajante do tempo do antigo Egito. Retorna sempre que a feitiçaria ou o estilo estão na moda. No esteticismo decadente de Poe e Baudelaire, ele readquire seu prestígio e magnitude de esfinge. Com seu gosto pelo ritual e o espetáculo sangrento, conspiração e exibicionismo, é pura pompa pagã. Unindo primitivismo noturno a elegância de linha apolínea, tornou-se o paradigma vivo da sensibilidade egípcia. O gato, fixando sua rápida energia predatória em poses de stasis apolínea, foi o primeiro a encenar o imobilizado momento de quietude conceitual que é a grande arte.

* Ctônico: relativo a Ctonos a deusa terra. Segundo a autora, o culto de Dioniso, relativamente recente na Grécia Antiga, vem ocupar o lugar que antes era dedicado a essa deusa. Por isso, Camille Paglia adota a expressão para designar o que Nietzsche chama de dionisíaco.

do livro Personas sexuais: arte e decadentismo de Neffertiti a Emily Dickinson de Camille Paglia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

se você gostou deste texto, talvez irá gostar também do poema “O gato e o passarinho”, de Jacques Prévert (basta clicar no nome do poema).

Bernard Shaw, o revolucionista

Um revolucionista é aquele que deseja descartar a ordem da existência social e tentar outra.

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Auto-sacrifício
O auto-sacrifício habilita-nos a sacrificar outras pessoas sem a menor vergonha.

Se você começa a sacrificar-se por aqueles que ama, acaba odiando aqueles por quem você se sacrificou.

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Civilização
A civilização é uma doença produzida pela prática de construir sociedades com material podre.

Aqueles que admiram a civilização moderna costumam identificá-la com a máquina a vapor e o telégrafo elétrico.

Aqueles que entendem a máquina a vapor e o telégrafo elétrico gastam suas vidas tentando substituir-se por algo melhor.

A imaginação não pode conceber um criminoso mais vil que aquele que construiria outra Londres como a atual, nem um maior benfeitor que aquele que a destruiria.

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Experiência
Os homens são sábios em proporção, não à sua experiência, mas à sua capacidade para a experiência.

Se pudéssemos aprender da mera experiência, as pedras de londres seriam mais sábias do que os mais sábios homens.

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Razão
O homem racional adapta-se ao mundo: o irracional persiste tentando adaptar o mundo a si mesmo. Portanto, todo progresso depende do irracional.

O homem que ouve a razão, está perdido: a razão escraviza todos aqueles cuja mente não é forte o bastante para dominá-la.