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Changó el gran putas

“Changó, tu pueblo está unido en un solo grito.”
Manuel Zapata Olivela

Às vezes, o inusitado acontece de maneira especial. Eu estava participando do Fliv – Festival Literário de Votuporanga, quando vejo na programação do Fórum de Dança (que costuma acontecer paralelo ao Fliv) o espetáculo Changó el gran putas, apresentado pelo dançarino togolês Vincent Harisdo. Me lembrei imediatamente de ter tomado conhecimento havia pouco do poema homônimo do colombiano Manuel Zapata Olivela.

Ao conversar com o dançarino e seu parceiro, o griot Bachir Sanogo, soube que Olivela havia sonhado ver aquele poema atravessando o Atlântico e ocupando as mentes dos africanos. Harisdo, que é de origem yoruba, comentou o quanto lhe parecia bom ouvir falar de seus deuses ancestrais do lado de cá, entre os descendentes que haviam sido privados da memória de seu povo.

O Changó el gran putas de Vincent Harisdo fala um pouco disto: as belezas imensuráveis das tradições africanas que habitam o corpo e a mente dos seus descendentes em todos os cantos do mundo. O quanto toda essa beleza tem sido escamoteada ao longo dos séculos, e o quanto nós resistimos mesmo assim, produzindo algumas das criações mais admiráveis (e admiradas) do nosso tempo.

O espetáculo, que traz o nome do orixá, é uma criação mestiça. Bachir Sanogo é descendente de uma longa tradição de griots malinkè. Com seus cantos em bambara e mossi, acompanhado de kamel ngomi (o instrumento de cordas que ele toca na foto acima), djembê, dumdum, cabaças e congas, ele sonoriza e dá vida aos passos do dançarino. Me falou de seus ancestrais como um povo vanguardista, pioneiros na domesticação dos cavalos (anterior aos árabes) e nas políticas de respeito à mulher (secularmente anterior às feministas do século XX). Uma das coisas que concluímos foi que, ao aceitarmos a África como nos é dada pela mídia mundial: um lugar de tristeza e dor, digno de pena e criações de ongs para enviar esmolas, estamos aceitando que a África que corre em nosso sangue é também esta.

Vincent Harisdo lembra que “gran putas” não é um palavrão, mas um grande elogio. Algo como “Xangô o fodão” ou “o puta deus Xangô”. Um oriki. Um oriki para nos lembrar que “gran putas” é esse povo que troa xangô pelo mundo afora, a começar pela dupla e seu ngunzu denso.

Para quem quiser conhecê-lo melhor: http://harisdo.free.fr/

Para quem quiser ouvir Bashir Sanogo: www.myspace.com/bachirsanogo
Quem quiser ler o poema de Manuel Zapata Olivela, olha aí o link para baixar o pdf: /chango-el-gran-putas-afro

A poesia de Juan Gelman no Brasil

Dibaxu
Dibaxu/Debajo/Debaixo
Universidade Federal do Ceará, 2009

Traduzido por Andityas Soares de Moura e publicado no final de 2009, Dibaxu traz uma coleção de 29 poemas amorosos. Uma curiosidade: Juan não os escreveu em espanhol, sua língua mãe, mas na língua dos judeus da península ibérica, o sefardita. “Sou de origem judia, mas não sefardita, e suponho que isso teve a ver com o assunto”, comenta o poeta. Trata-se de um idioma antigo, que está nas próprias origens da língua espanhola. É, entre outras coisas, o idioma do Cantar de mio Cid, poema fundador do povo castelhano. Apesar de antigo, o sefardita não é uma língua morta. “O acesso a poemas como os de Clarisse Nikoïdski, novelista em francês e poeta em sefardita, desvelaram essa necessidade que em mim dormia”, revela o poeta, outra vez no “Escólio”, incluído na publicação. E arremata: “a sintaxe sefardita me devolveu um candor perdido e seus diminutivos, uma ternura de outros tempos que está viva e, por isso, cheia de consolo”. O livro brasileiro vem em versão trilíngüe (sefardita, português e espanhol), seguindo o caminho proposto pelo próprio poeta em sua publicação original (sefardita-espanhol).

O livro faz parte da coleção Nossa Cultura e nasce graças ao apoio do poeta Floriano Martins.

Com/posições
Com/posições
Crisálida, 2007

Com/posições foi traduzido por Andityas Soares de Moura. Um livro híbrido, onde Juan Gelman recria a poesia de poetas árabes e judeus antigos fazendo deles ao mesmo tempo parceiros e heterônimos. Assim, os autores “traduzidos” vão desde o rei Davi até a poetas árabe-espanhóis da idade média, o período conhecido como Al-Andaluz. Mas a escolha dos poemas ali presentes não é sem razão: ele se vale das vozes antigas para falar de sua própria condição de exilado.

O livro, além de trazer na íntegra os poemas “Com/posições” (Com/posiciones, no original), traz também um precioso prefácio do tradutor e uma entrevista com Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves, originalmente publicada em 2005 no Suplemento Literário de Minas Gerais por ocasião do lançamento do livro Isso.

Isso.
UnB, 2004
O livro Isso não é uma antologia. Gelman o havia publicado pela primeira vez no livro Interrupciones II, reunião, além deste, dos livros Bajo la lluvia ajena (notas al pie de una derrota), Hacia el sur e Com/posiciones. Foi traduzido por mim e por Andityas Soares de Moura, a convite de Henryk Siewierski, da editora UnB e publicado em 2004. Um trabalho apaixonado que teve a grande honra da leitura do próprio autor no ato da tradução. Como a visão dos tradutores sobre a poesia é bastante díspare, acabamos por travar um interessante embate, o que fez com que o trabalho tomasse um caráter todo especial de comunhão democrática, vindo à tona, tanto na tradução quanto na introdução, um pouco da poética de cada um dos três: o mestre, é claro, Juan, e seus alunos: Leo Gonçalves e Andityas.
O livro Isso integra a coleção Poetas do Mundo que já trouxe para o nosso idioma poetas como Tahar ben Jelloun, Czesław Miłosz, Miodrag Pávlovitch, Francis Ponge, Lucian Blaga, e. e. cummings, Edwin Morgan, Yosano Akiko e outros.

Amor que serena, termina?.
record, 2001
Amor que serena, termina? é um belo panorama da poesia de Juan Gelman. Traduzido por Eric Nepomuceno e revisada por Chico Buarque de Holanda. Conhecido por traduzir muito do que há de melhor em literatura latino-americana no Brasil, neste livro, Nepomuceno se entrega a um desafio inédito para ele: traduzir poesia. Conta-se que a record relutou por algum tempo até se convencer a publicar este livro, afinal livro de poesia não vende no país da batucada.

Puentes/Pontes.
Fondo de Cultura Económica, 2004

Este é um interessante projeto da Fondo de Cultura Económica, organizado por Heloísa Buarque de Holanda, Jorge Monteleone y Teresa Arijón. O propósito: pensar a poesia como ponte que une mundos. Trata-se de uma alentada antologia (537 páginas) que inclui poetas brasileiros e argentinos. Na lista: Paulo Leminski, Lamborghini, Affonso Ávila, Bayley e, é claro, Juan Gelman. A tradução deste foi feita pelo poeta e tradutor sérgio alcides e nos dá um ótimo panorama das faces do poliedro que é a poesia de Juan.


Poesia argentina – 1940/1960.
Iluminuras

Esta antologia foi organizada pela acadêmica Bella Jozef, que além deste livro, é autora também de alguns estudos sobre a poesia latino-americana contemporânea. É um panorama da poesia argentina de uma época criativa e febril na poesia daquele país. Mostra o aparecimento do surrealismo, da poesia beatnik, por exemplo. Além do juan (apenas 2 poemas, maravilhosos e muito bem traduzidos, por sinal), tem lá uma boa seleção de outros poetas.

11 de setembro dez anos depois

(Clique na imagem para me ouvir falar o poema WTC Babel S. A.)

Já não somos mais os mesmos desde o dia 11 de setembro de 2001. Nossa percepção estética, nossa visão de mundo, as bases da negatividade nietzschiana que nos habitavam ganharam novos aspectos desde o atentado ao World Trade Center.

Muita gente se levantou contra este fato, tocados pelos milhares de mortos. No entanto, não foram os mortos que alteraram nosso olhar. Mesmo porque não os vimos. O atentado do WTC foi o espetáculo trágico mais higiênico da história: nenhuma gota de sangue foi exposta. Apenas poeira. Apenas escombros. Frames. E a inauguração da estética do looping, adotada em todos os noticiários sensacionalistas desde então.

Godard dizia que o cinema jamais seria o mesmo depois de Auschwitz. Poderíamos repetir a fórmula e dizer: nossos olhos já não são mais os mesmos depois do 11 de setembro.

Cresci sob o clima da guerra fria. Ao longo da infância e da adolescência, assisti e por vezes participei de maniqueísmos falseadores. Super Homem contra Lex Lutor. He-man contra o Esqueleto. O bem contra o mal. Não era possível gostar de Beatles se você gostasse de Rolling Stones. Led Zeppelin ou Deep Purple. USA ou URSS.

O mundo mudou. A queda do muro de Berlim, o fim da União Soviética, as mudanças nas aparências políticas soavam amargas. Talvez ninguém mais se lembre, mas até o dia 10 de setembro de 2001, o mundo ainda olhava amedrontado para o fantasma do socialismo e a bomba atômica escondida por detrás dele (que poderia ser lançada por ele ou por seu arqui-inimigo, o fantasma do capitalismo). Ao amanhecer do dia seguinte, começava a tentativa de implantação de um novo maniqueísmo, um maniqueísmo que pretendia se tornar absoluto. O mais fácil de todos os maniqueísmos, posto que o inimigo era milenar: o islamismo. Saímos da guerra fria para a guerra morna, a guerra descafeinada.

Mas o que importa, a alteração ocorrida nas nossas relações humanas não dizem respeito ao acontecimento em si. O que há é que o atentado coroou um aprendizado que vínhamos desenvolvendo ao longo das últimas décadas do fin-de-siècle: a reconciliação dos aparentes opostos. Casamentos de céu e inferno. Novos reencontros de raças. Novas mestiçagens poéticas e inusitadas. Nomadismos transbordados da filosofia.

Já não nos é permitido olhar para as coisas de maneira generalizada, como tão bem aprendemos com as fórmulas da mídia. A comunidade-mundo se tornou pequena. Não apenas a internet nos deu a impressão de proximidade: há também uma melhoria e acessibilidade aos aeroportos. O fenômeno não é apenas brasileiro.

Desde o acontecimento, aprendemos que é urgente e necessário saber olhar através. Aprendemos que o sistema político que nos governa hoje já não é o capitalismo, mas o capital. Que o comunismo ficou insosso e, depois da revelação do que ocorria nos bastidores de suas ditaduras, nos parece hoje tão cruel quanto o nazismo. Que o mundo de aparências que os políticos produzem para os nossos olhos já não basta. Que a normalpatia já não nos salva.

Mas mais importante do que tudo isso: há dez anos que descobrimos que as palavras realmente importam. O WTC pode ter sido fruto de uma algaravia, resultado da incomunicabilidade humana. O WTC pode ter sido uma faceta da Babel que o Sonho Americano sucitava. Mas hoje, mais do que nunca, e mesmo para honrar os mortos do atentado (que não foram em menor quantidade que os negros linchados no Mississipi, que os mortos em Hiroshima e Nagazaki, que os índios extirpados do continente americano, que os antigos sábios da oceania, os opositores às ditaduras militares da América Latina nos anos 60, 70 e 80), devemos aprender o peso das palavras. Porque mais do que nunca, poetas, elas significam. Elas importam.

Poro lança livro em BH

O lançamento acontece em dois lugares, dois momentos.

Dia 10/3/2011 (quinta-feira) 20h – Auditório da Escola Guignard
Bate papo com Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!
Mediadora: Janaina Melo
Endereço Rua Ascânio Burlamarque, 540 Mangabeiras – Belo Horizonte – MG
Telefone: (31) 3194 9305

Dia 12/3/2011 (sábado) 15h – Praça do Bar do Orlando (Santa Tereza)
Festa na rua para celebrar a publicação + Banquinha do Poro (com distribuição de panfletos e venda de livros, dvds e bottoms “perca tempo”)
Os DJs Lucas Miranda (Oscilloid) e João Perdigão participam com uma palinha no som
Endereço: Rua Alvinópolis com Rua Dores do Indaía, Santa Tereza – Belo Horizonte – MG
Praça próxima à Parada do Cardoso e Bar do Orlando (Pescador)*Nas duas ocasiões o livro estará a venda pelo preço promocional de R$30,00

Mais informações no blogue do Poro:

www.poro.redezero.org

Dia 10/3/2011 (quinta-feira) 20h – Auditório da Escola Guignard
Bate papo com Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!
Mediadora: Janaina Melo
Endereço Rua Ascânio Burlamarque, 540 Mangabeiras – Belo Horizonte – MG
Telefone: (31) 3194 9305

Dia 12/3/2011 (sábado) 15h – Praça do Bar do Orlando (Santa Tereza)
Festa na rua para celebrar a publicação + Banquinha do Poro (com distribuição de panfletos e venda de livros, dvds e bottoms “perca tempo”)
Os DJs Lucas Miranda (Oscilloid) e João Perdigão participam com uma palinha no som
Endereço: Rua Alvinópolis com Rua Dores do Indaía, Santa Tereza – Belo Horizonte – MG
Praça próxima à Parada do Cardoso e Bar do Orlando (Pescador)*Nas duas ocasiões o livro estará a venda pelo preço promocional de R$30,00

Ações poéticas do Poro

Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos. Em edição bilíngue, o livro do Poro chegou desviando discurso. Premiado pelo Programa Brasil Arte Contemporânea da Fundação Bienal de São Paulo e Ministério da Cultura, é um trabalho belíssimo e de extremo cuidado com mínimas minúcias, cores, palavras, pixels. Organizado pelo Marcelo Terça-Nada e a Brígida Campbell, tem edição bilíngue (inglês-português) e traz textos de: Daniela Labra (pesquisadora e curadora – Rio de Janeiro), André Mesquita (pesquisador e ativista – São Paulo), Newton Goto (artista, pesquisador e curador – Curitiba), André Brasil (pesquisador da área de comunicação – Belo Horizonte) , Wellington Cançado & Renata Marquez (arquitetos, curadores e pesquisadores – Belo Horizonte), Anderson Almeida (escritor – Belo Horizonte), Luiz Carlos Garrocho & Daniel Toledo (pesquisadores e criadores cênicos – Belo Horizonte), Ricardo Aleixo (poeta, curador e ativista cultural – Belo Horizonte).

Para saber mais, clique no link:
www.poro.redezero.org/livro/

Saudações à Dilma Roussef

Não quero esconder a minha felicidade em ter pela primeira vez uma mulher na presidência da república. Não que o gênero seja importante no caso. Por exemplo, imaginemos que a mulher eleita fosse a Roseana Sarney ou a Mônica Serra… acho que não cairia bem. E como diz meu amigo Ricardo Aleixo, o que muda é só o que há entre as pernas de quem manda.

Estou orgulhoso é de ter pela primeira vez uma ex-guerrilheira na presidência da república. Alguém de carne e osso que realmente lutou contra um regime que destruiu a memória do país, desapareceu, matou e desumanizou milhares de brasileiros. Que colocou o Brasil como capacho do capitalismo exploratório norteamericano. E outros tanto ques.

Mas não votei em Dilma Roussef por causa disto. Votei porque ela representa um projeto que tem melhorado o Brasil. Temos agora uma presidente habilidosa e capaz. A que melhor garantirá o desenvolvimento da democracia brasileira ainda tão frágil e mal resolvida em seus 21 aninhos de existência.

Em tempo: estar entusiasmado com a vitória de uma candidata, não significa manter-me cego às falcatruas e politicagens que todo governo até aqui tem feito. A oposição mais forte ao governo Lula não tem sido de grande força, com PSDB de um lado com sua política retrógrada e uma esquerda da esquerda com um radicalismo pouco inteligente, blindado. Mas acho que para ver a coisa melhorar, será necessário que cada vez mais nos saibamos políticos nós mesmos e façamos nós mesmos aquilo que queremos diferente. Em todo caso, a prática tem mostrado que lutar contra os desacertos de governos petistas tem resultado mais frutífero.

E agora, mãos à obra.

Um poema de Juan Gelman

À PINTURA

Dénise trabalha no Musée du Louvre buffet do 1º piso,
entre mesas ou ingleses ela conduz seu corpo com toda a decisão,
sua bunda é mais sonora que os mundos de Rubens
e é parecida com a esquina das pombas da Avenue des Champs Élysées.

Todo o dia o dia todo se mexendo se mexendo
solta espécie de pássaros que revoam ao seu redor
e a descrevem no ar saudando a grande cidade
antes de regressar docemente à sua carne.

Dénise trabalhava e nunca havia visto a Gioconda
mas seu quarto em Poissonnière
era um país sempre disposto para o amor,
Toda noite seu cheiro batia nas janelas.

Quando abraçava o homem olhava para a porta
como se a ternura fosse entrar de repente,
dela às vezes voavam pássaros escuros
como uma tristeza depois de haver amado.

(do Juan Gelman, tradução provisória de Leo Gonçalves)

A LA PINTURA

Dénise trabaja en el Musée du Louvre buffet del ler. piso,
entre mesas o ingleses ella conduce su cuerpo con toda decisión,
su culo es más sonoro que los mundos de Rubens
y se parece a la esquina de las palomas de l’Avenue des Champs Elysées.

Todo el día todo el día moviéndose moviéndose
suelta especie de pájaros que revolotean a su alrededor
y la describen en el aire saludando al gran pueblo
antes de regresar dulcemente a su carne.

Dénise trabajaba y nunca había visto a la Gioconda
pero su cuarto en Poissonniére
era un país siempre dispuesto para el amor,
cada noche su oleaje golpeaba las ventanas.

Cuando abrazaba al hombre miraba hacia la puerta
como si la ternura fuese a entrar de repente,
a veces se le volaban pájaros oscuros
como una tristeza después de haber amado.

Juan Gelman, no livro Gotán

Dibaxu/Debaixo, Juan Gelman

Acaba de sair pela editora da Universidade Federal do Ceará a primeira edição brasileira do livro Dibaxu/Debaixo de Juan Gelman, com tradução do meu amigo Andityas Soares de Moura. O livro faz parte da coleção Nossa Cultura e nasce graças ao apoio do poeta Floriano Martins.

Dibaxu é um trabalho singular. Escrito entre 1983 e 1985, traz uma coleção de 29 poemas amorosos. Uma curiosidade: Juan não os escreveu em espanhol, sua língua natural, mas na língua dos judeus da península ibérica, o sefardita. “Sou de origem judia, mas não sefardita, e suponho que isso teve a ver com o assunto”, comenta o poeta. Trata-se de um idioma antigo, que está nas próprias origens da língua espanhola. É, entre outras coisas, o idioma do Cantar de mio Cid, poema fundador do povo castelhano. Apesar de antigo, o sefardita não é uma língua morta. “O acesso a poemas como os de Clarisse Nikoïdski, novelista em francês e poeta em sefardita, desvelaram essa necessidade que em mim dormia”, revela o poeta, outra vez no “Escólio”, incluído na publicação. E arremata: “a sintaxe sefardita me devolveu um candor perdido e seus diminutivos, uma ternura de outros tempos que está viva e, por isso, cheia de consolo”. O livro brasileiro vem em versão trilíngüe (sefardita, português e espanhol), seguindo o caminho proposto pelo próprio poeta em sua publicação original (sefardita-espanhol).

Há poucos livros de Juan Gelman publicados no Brasil. O primeiro foi o trabalho de Eric Nepomuceno, a belíssima antologia Amor que serena, termina?, ao que se seguiu Isso, publicada pela UnB e traduzida por mim e pelo Andityas (ver capa ao lado). Pela editora Crisálida, o livro Com/posições, também tradução de Andityas. Como o tradutor bem lembra, Juan Gelman possui uma das características mais interessantes (a meu ver) para um poeta no mundo contemporâneo: a diversidade. Dono de variadas técnicas na criação poética, foi uma das mais poderosas vozes nos anos 70 e 80, período de resistência contra a ditadura militar argentina. Despaegado dos rótulos, o premiadíssimo Juan Gelman tem mostrado sempre novas e surpreendentes faces ao longo de seus mais de 30 livros. Segundo consta, seus poemas eram memorizados e recitados às escondidas para os presos políticos, circulavam como alimento para a revolta entre os ativistas de esquerda e davam uma nota de esperança aos que continuavam sonhando uma Argentina livre. O escritor Julio Cortázar achava que “Talvez o mais admirável [na poesia de Gelman] seja sua quase impensável ternura ali onde mais se justificaria o paroxismo do rechaço e da denúncia, sua invocação de tantas sombras por meio de uma voz que sossega e arrulha, uma permanente carícia de palavras sobre tumbas ignotas”. Seu poema “Gotán” (tango na gíria lunfardo), escrito nos anos 60, está entre os mais conhecidos poemas argentinos.

A escolha de Andityas Soares de Moura em traduzir justamente os poemas sefarditas se faz pela mais pura confluência. Admirável conhecedor da língua portuguesa e amante da diversidade, o poeta-tradutor publicou, em 2003, o livro OS enCANTOS, um livro único no Brasil, com versos escritos em português, galego, provençal, catalão, francês, italiano, latim. Uma desbabel neolatina, na qual se entrevê, como em Juan Gelman, uma busca apaixonada pelas raízes da língua. Como se buscar as raízes da língua fosse buscar as próprias raízes da poesia. Para completar a edição, o leitor de Dibaxu/Debaixo ganha um último presente: uma série de poemas de autoria do próprio Andityas nos quais ele assume ter-se deixado influenciar pela poética social de Juan Gelman.

Dibaxu/Debaixo foi uma das melhores coisas que recebi neste final de 2009. Tomara que chegue às livrarias do sudeste. Para quem quiser uma palhinha, aí vai:

XX.

não tens porta/chave/
não tens fechadura/
voas de dia/
voas de noite/

o amado cria o que se amará/
como tu/chave/
tremendo
na porta do tempo/

******

no tenis puarta/yave/
no tenis sirradura/
volas di nochi/
volas didia/

lu amadu cría lu qui si amará/
comu vos/yave/
timblandu
nila puarta dil tiempu

******

no tienes puerta/llave/
no tienes cerradura/
vuelas de noche/
vuelas de día/

lo amado crea lo que se amará/
como tú/llave/
temblando
en la puerta del tiempo/

Da delicadeza ou o anel que tu me deste

oiticica010_g

Mário de Andrade, lá no Losango Cáqui, dizia: “a máquina de escrever do meu mano foi roubada/isso também entra na poesia/porque ele não tinha dinheiro para comprar outra.

No dia 16 de outubro, minha amiga Cinthia Mendonça teve sua mochila roubada. O conteúdo: uma câmera fotográfica, um laptop, dois celulares que o fabricante havia cedido a título de empréstimo para a realização do projeto no qual está atualmente envolvida, além de outros objetos pessoais. Levaram objetos de valor financeiro contável, mas a memória contida ali dentro era de valor inestimável.

Viajante assumida, pode-se dizer que a mochila da Cinthia continha uma parte bem considerável de seus pertences. Sua chegada a BH inclui um certo desejo de pousar uns tempos por aqui. Chegou de Recife em julho deste ano. Participava do programa Interações Estéticas da Funarte, em colaboração com a lendária Lia de Itamaracá. Em agosto participou da MIP2 e performou o Sobreabismos numa das calçadas do viaduto Santa Tereza (ironia que a tenham roubado justamente embaixo desse viaduto, ressaltando ainda mais o abismo). Tudo ela ia registrando, transformando em novos projetos. Bons tempos os do Mário, em que o ladrão roubava a máquina de escrever mas não levava o que saía dela.

Foi a Cinthia quem me relatou do incêndio sobre as obras do Hélio Oiticica. Fiquei abismado, é claro, com tudo. Hélio Oiticia incendiado era para mim, à primeira vista, uma espécie de contra-revolução. Uma chacina. Tudo isso já foi muito dito. Quem soube do incêndio e recebeu a primeira informação, vinda do irmão do Hélio, de que 90% havia se perdido e depois não soube mais, lamentou a grosseria da cultura brasileira, despreocupada em manter vivas as descobertas e invenções dos seus melhores artistas. E, como sempre, é preciso lembrar do prestígio que gozam suas obras em outras partes do mundo, evocar o reconhecimento vindo de outros lugares que teriam de certa forma um poder de melhor legitimar a originalidade do nosso quase heliogábalo. E eu aqui pensando: “que pena que não são capazes de reconhecer por si mesmos o que está evidente diante de seus próprios olhos”. Conversando com a Cinthia, a gente concluía que um trabalho de arte, neste mundo em que vivemos, é muito delicado e pode ir para os ares como mera fumacinha, prestes a desaparecer na memória dos viventes.

Apesar da perda irreparável das obras de Oiticica (por mais que reformem), acabamos por achar que tudo não teria passado de uma auto combustão. Estamos falando de um artista que não queria inventar uma obra-artefato. Suas criações possuíam o caráter de projeto e ele propunha que elas fossem reproduzidas, refeitas, copiadas. A idéia foi mais ou menos comprovada quando, logo depois, César Oiticica encontrou os metaesquemas praticamente intactos.

Hélio é o deus sol do fogo e da justiça, um xangô grego: pode queimar o que bem entender. Mas acredito que o Oiticica quereria incendiar as mentes. Dar às artes uma dimensão menos estagnada e menos arraigada às leis do mercado e da academia. O incêndio (e o roubo dos objetos da Cinthia) não terão sido em vão se tiverem acendido o fogo dos questionamentos sobre arte, vida e memória. Se os artistas voltarem a querer entrar em todas as estruturas e explodir com elas. Agora, começam a aparecer aqui e ali pela web afora os vídeos realizados por e em torno à obra de HO (procurem no google). Se for este o rescaldo final do incêndio, agradecerei aos deuses sempre que puderem incendiar uma obra mais.