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O lado escuro do coração

Dirigido por Eliseo Subiela, El lado oscuro del corazón (1992) é um filme engraçado, com Darío Grandinetti no papel principal falando poemas de Oliverio Girondo, Mario Benedetti e Juan Gelman. Narra a história de um poeta sedutor que transita pelas ruas de Buenos Aires à procura de consolos para sua existência surreal. Encontra várias mulheres nessa jornada. Ao fundo de todas elas, ressoa o último verso deste poema de Oliverio Girondo, com uma pequena adaptação do roteirista-diretor:

Pouco me importa se as mulheres têm os seios como magnólias ou como figos secos; uma pele de pêssego ou de papel de lixa. Dou uma importância igual a zero, ao fato de amanhecerem com um hálito afrodisíaco ou com um hálito inseticida. Sou perfeitamente capaz de suportar um nariz que tiraria o primeiro prêmio numa exposição de cenouras; mas isso sim! —e nisso sou irredutível— não lhes perdoo sob nenhum pretexto: que no saibam voar. Se não sabem voar, perdem seu tempo comigo.

[Me importa un pito que las mujeres tengan los senos como magnolias o como pasas de higo; un cutis de durazno o de papel de lija. Le doy una importancia igual a cero, al hecho de que amanezcan con un aliento afrodisíaco o con un aliento insecticida. Soy perfectamente capaz de soportarles una nariz que sacaría el primer premio en una exposición de zanahorias; ¡pero eso sí! —y en esto soy irreductible— no les perdono, bajo ningún pretexto, que no sepan volar. Si no saben volar ¡pierden el tiempo conmigo!]

Essa rotina antirrotina de Oliverio Fernandez (o nome do protagonista pode ser uma homenagem a Macedonio Fernandez e ao próprio Girondo) é, de repente, interrompida quando ele finalmente encontra uma que lhe responde: “Voos de instrução: 50 dólares. Voo de cabotagem: 70 dólares. Internacional é 100”. A paixão por essa bela puta literata (Sandra Ballesteros) é complicada e imoral. Um caminho difícil. Poetas trilham caminhos difíceis.

Girondo:

Eu, pelo menos, sou incapaz de compreender a sedução de uma mulher pedestre, e por mais empenho que ponha em concebê-lo, não me é possível nem tampouco imaginar que se possa fazer amor senão voando. [Yo, por lo menos, soy incapaz de comprender la seducción de una mujer pedestre, y por más empeño que ponga en concebirlo, no me es posible ni tan siquiera imaginar que pueda hacerse el amor más que volando.]

Em meio à narrativa fio-condutor, o poeta transita por angústias e vicissitudes próprias de quem se dedica à poesia. Recebe visitas habituais da Morte (Nacha Guevara), uma bela mulher com quem tem conversas bem íntimas. Enfrenta uma vida nômade devido às dificuldades de garantir suas finanças (“sou poeta, e quando preciso de algum dinheiro, me alugo: faço publicidade”). Paga a conta do bar com alguns versos, delira com seu amigo subversivo Gustavo (Jean-Pierre Reguerraz), que vez por outra vai preso por atentado ao pudor com suas esculturas sexuais e protesta: “a arte tem que ir para a rua, não pode ficar presa numa galeria”.

Momento especial é a aparição do poeta Mario Benedetti. Vestido de marinheiro, recita para uma das prostitutas do cabaré seu poema “Corazón coraza” em alemão. “Weil ich dich habe und nicht habe (…) weil die Nacht offene Augen hat”.

Embora feito já nos anos 90, o filme tem aquela aura meio cafona dos anos 80, com efeitos especiais um tanto toscos, moda e linguajar antiquados. Mas nada tira o encanto da poesia que aparece muito bem recitada por Darío Grandinetti. Isso sem falar nos gostosos boleros que aparecem aqui ali como pano de fundo (“hace falta que te diga/que me muero por tener/algo contigo/es que no te has dado cuenta/de lo mucho que me cuesta/ser tu amigo”).

De um tempo pra cá passei a curtir muito esse tipo de filme. Seja na forma de documentário, de biografia ficcional ou de pura ficção, o filme cujo personagem principal é um poeta tem um apelo todo especial nas bilheterias da minha tv. Desse mesmo gênero tem o novo sucesso nas salas de cinema cult do Brasil, Gainsbourg, o homem que amava as mulheres [Gainsbourg, vie héroïque], de Joan Sfar. E daí para: Uivo [Howl] de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, contando um momento da vida de Allen Ginsberg e Pan-cinema permanente, documentário sobre Waly Salomão, dirigido por Carlos Nader. E no gênero ficcional, há o admirável filme de Hal Hartley, As confissões de Henry Fool. Nem sempre esses filmes são de fato poéticos. Mas quando são, tornam-se uma oportunidade de se experimentar um novo suporte e leituras inusitadas para os poemas.

Infelizmente O lado escuro do coração não saiu no Brasil (pelo menos até onde sei). Como a maioria das produções que envolvem poesia, diga-se de passagem. Duvido que alguém o encontre nas nossas locadoras ou nas mostras de cinema. Mesmo assim, não custa pedir para os distribuidores. Diga a eles que se não arranjarem, você irá baixar pelo torrent.

*

(Este texto, escrito aos poucos para o Salamalandro, ganhou também uma reprise no blog Borboletas nos Olhos, da querida Luciana Nepomuceno.)

Um gato de Jacques Prévert

O GATO E O PASSARINHO

Um vilarejo escuta entristecido
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro do vilarejo
E foi o único gato do vilarejo
Que devorou pela metade o passarinho
E o passarinho para de cantar
E o gato para de ronronar
E de lamber o focinho
E o vilarejo faz para o passarinho
Um maravilhoso funeral
E o gato que é convidado
Segue o cortejo atrás do caixãozinho de palha
Onde o pássaro morto está deitado
Carregado por uma menina
Que não para de chorar
Se eu soubesse que isso te machucaria tanto
Lhe diz o gato
Eu o teria comido inteirinho
E depois teria dito
Que havia visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Para um lugar que fica tão longe
Que não se pode jamais voltar
Você teria sofrido menos
Apenas tristeza e saudade

Não se deve nunca fazer as coisas pela metade.

***

LE CHAT ET L’OISEAU

Un village écoute désolé/Le chant d’un oiseau blessé/C’est le seul oiseau du village/Et c’est le seul chat du village/Qui l’a à moitié dévoré/Et l’oiseau cesse de chanter/Le chat cesse de ronronner/Et de se lécher le museau/Et le village fait à l’oiseau/De merveilleuses funérailles/Et le chat qui est invité/Marche derrière le petit cercueil de paille/Où l’oiseau mort est allongé/Porté par une petite fille/Qui n’arrête pas de pleurer/Si j’avais su que cela te fasse tant de peine/Lui dit le chat/Je l’aurais mangé tout entier/Et puis je t’aurais raconté/Que je l’avais vu s’envoler/S’envoler jusqu’au bout du monde/Là-bas où c’est tellement loin/Que jamais on n’en revient/Tu aurais eu moins de chagrin/Simplement de la tristesse et des regrets//Il ne faut jamais faire les choses à moitié.

Jacques Prévert. Histoires. Paris: Gallimard, 1946.

Postei este poema pela primeira vez em 2006, quando o Salamalandro ainda era no blogspot. Agora, depois de idas e vindas, textos e lidas, aqui vai outra vez, revisado. Para quem quiser ler, comparar, malfalar e criticar (todas as opções são benvindas, comentem aí), incluí o original. Você também pode ouvi-lo aqui, na voz de divertidas crianças francesas.

Lambe-lambe no xerox

Sou um entusiasta do DO IT YOURSELF. Mais do que apenas fazer você mesmo, também me empolgo com o DO IT YOUR WAY, faça do seu jeito.

Isso me faz lembrar o quanto foram importantes para mim as ondas da poesia marginal, que me chegaram em plenos anos 90. Belo Horizonte tinha cheiro de mimeógrafo. Já não era tanto pelo projeto “marginal”, mas muito mais pelo “DO IT YOURSELF”, os poetas animados a fazer o que era de se fazer sem esperar apoios, governos, editores. Sintomaticamente, boa parte dos poetas com quem eu convivia era punk ou ex-punk. Era exatamente como eu ouvi o Marcelo Dolabela dizer em maio: uma nova geração de poetas, com outra influência da poesia marginal, com outra influência do Leminski, com outro olhar sobre a utopia. Dos que mais me envolvi naquela época estão o Marcelo Companheiro e a turma dos Dragões do Paraíso: Renato Negrão, Paulinha, Daniel Costa, Tati Tavares e os inesquecíveis saraus na Casa Rosa, o bar da Inês. A anarquia era a prova dos nove.

Há duas semanas, durante a Flip, decidi fazer eu também o meu panfleto. Lambe-lambe é um desses projetos que você topa fazer para experimentar. Com tiragem super pequena, posso alterá-lo, revisá-lo a cada nova edição. Pode ser que mude de nome, pode ser que mude algum poema, quem sabe o design, quem sabe os desígnios. Lambe-lambe é só o começo da história. Um jogo. Feita a tiragem, nada me impede de continuar preparando meu próximo livro, cujo nome pretendo também abandonar.

Depois de xerocado e grampeado é que fui me lembrar de onde eu havia emprestado o nome. “Lambe-lambe” é um poema da Ana Ramiro de que gosto muito (um beijo, Ana!!!). Quase um manifesto para mim. Já o meu Lambe-lambe são poemas com cuspe, tonta manifestação política. Poemas de amor de um projeto abandonado, mas não esquecido. É o meu LET’S DO IT, façamos. MY WAY nesse Lambe-lambe é a procura de uma fala urbana que penetre em tudo o que se faz, em tudo o que se vive. Cartazes nas vigas do Minhocão. Fotógrafo de praça. Pirulitos. Língua de fora de tanto perder tempo tentando fazer sentido. E estranhos vendedores ambulantes que te abordam com uma pergunta indiscreta, a propósito da mercadoria que têm em mãos: “Você gosta de poesia?”

Não foi só da Ana que fiz empréstimos: o principal e quem me lançou o mote foi o Chacal, ao me mostrar seu folheto Subversão, no qual reúne poemas éditos e inéditos [“Pessoas físicas são livres/para seguir seu caminho/sempre ao sabor do vento”]. Um projeto simples que, para mim, veio como uma lição de mestre. O livreto dele, feito no xerox, com pequenas colagens e posicionamentos políticos extremamente necessários nesses tempos de caretice crônica e poucas apostas est-éticas. “Voltando às origens”, ele disse.

Curtas-metragens/Courts-métrages

Foto: Flávia Mafra

Amanhã, para quem estiver em BH: lançamento do livro Curtas-metragens/Courts-métrages, da minha querida Camila Nicácio. Na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274 – Funcionários), a partir das 10h da manhã.

O livro foi escrito em francês e em português e a publicação é da Thot éditions. São 70 epifanias da Camila, sucintos texto-fotogramas repletos de lirismo e sensualidade com ilustrações da venezuelana Rosa Maria Unda Souk.

“(…) gosto desse minimalismo, da ironia fina e elegante e, por vezes, magoada, desses poemas-narrações, muito subtis, compreensivos das realidades miúdas do dia-a-dia se entrecruzando com melancolias várias. Até a sensualidade e a ternura são cuidadosas e discretas. (…) essa poesia, com voz própria, me faz lembrar, de algum modo, uma espécie de associação entre segmentos de Ana Cristina César e Adélia Prado. E os desenhos também são do meu agrado. Muito bem conseguidos, discretos, mas relacionados com a substância da poesia”.

(Pires Laranjeira, professor, escritor e crítico português, Universidade de Coimbra, Portugal).

Dois poemas de Thaís Guimarães

ABAIXO DO MERCADO DO PECADO
NÃO OLHE NÃO PENSE NÃO GRILE
DUAS QUADRAS ACIMA
NA RUA ARREPENDIDA
PEGUE ATALHO E NÃO RESPIRE
SUSPIRE SUSPIRE SUSPIRE

*

NOTURNA

A flor dos meus seios
Aguarda
A tua língua
O gosto da fala
Intraduzível
Em minha carne

do livro “Jogo de cintura”. Edições Dubolso, 1982


Thaís Guimarães é também autora de Reconstrução Adversa do Discurso Amoroso. Poesia. BH. Edições Gatinhos, 1983. Seu livro Bom Dia, Ana Maria. Poesia. Infantil. BH. Editora Vigília ganhou Prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial, 1987. A conheci com toda a sua contagiante inquietude em abril deste ano durante a ZIP.

Você também encontra poemas dela no site www.tanto.com.br

Birago Diop na Modo de Usar & Co.

Os que faleceram jamais se foram
Eles estão na Sombra que se ilumina
E na sombra que se enegrece.
Os Mortos não estão sob a Terra
Eles estão na Árvore que freme,
Estão na Madeira que geme,
Estão na Água que dorme,
Estão na Cabana, estão na Massa
Os mortos não estão mortos.

Birago Diop, “Sopro” (Souffle)

Na franquia eletrônica da Revista Modo de Usar e Co., editada por Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Angélica Freitas, apareceram hoje 3 poemas de Birago Diop, traduzidos por mim.

Pouca gente o conhece, mas a figura de Birago Diop tornou-se um ícone para mim. Amigo de Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, era um poeta bissexto. Celebrizou-se com seu livro Les Contes d’Amadou Koumba (1947), cujo personagem central é um griot.  Na sua minibiografia na Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, publicada em 1948 com prefácio de Jean-Paul Sartre, Senghor afirma: “é mais conhecido como contista. Mas na África Negra, a diferença entre prosa e poesia é mais uma questão de técnica e quão magra!”

Gosto muito de seu livro Leurres et lueurs (Présence Africaine, 1967). Especialmente os poemas “Souffle” [Sopro] e “Viatique” [Viático], nos quais o fetichismo pulula forte. Aí está um poeta para o paideuma (ou mãedeuma, segundo as tradições africanas) do Poemacumba.

Para você ler os poemas na Modo de Usar & Co., clique neste link:  www.revistamododeusar.blogspot.com

Conversa com Marcelo Dolabela


(Foto: Daniel Protzner)

A sorte que tive na primeira ZIP, podendo acompanhar boa parte da programação no mês de abril, não se repetiu em maio. Sei que no decorrer do mês aconteceram momentos inesquecíveis, como o bate-papo entre as admiráveis poetas Thais Guimarães, Mônica de Aquino, Mariana Botelho e Ana Elisa Ribeiro. Também teve o lançamento do livro O silêncio tange o sino, da Mariana Botelho, oficina com Álvaro Andrade Garcia e Henrique Roscoe, o 1mpar, teve exposição, intervenções e bate-papo com o Marcelo Kraiser e muito mais coisas as quais eu gostaria muito de estar presente.

Mas tive a honra de estar por lá no dia 12 de maio para uma enriquecedora conversa com Marcelo Dolabela, intermediada pelo Ricardo Aleixo. Dentre as coisas que mais falamos, a que considero mais importante é a profunda ausência dos poetas de minha geração. Não há publicações, não há esforços para se autopublicarem ou, quando há, não há grana. Pouco se pode dizer da maioria dos que escrevem e têm até, digamos, 40 anos. Também desapareceram os fanzines, as pequenas revistas, as autopublicações coletivas. Tudo ficou confinado a blogs, facebooks e outras facilidades que estão aí mais em prol das aparentes pessoalidades virtuais do que da veiculação de poesia.

Está lançado o desafio.

Revista Pitomba

Revista Pitomba

Uma das grandes alegrias de 2011 foi receber das mãos do meu amigo Reuben da Cunha Rocha um exemplar da revista Pitomba, produzida na cidade de São Luís, com o seguinte editorial ocupando as duas primeiras páginas:

Quer fazer, faz.

Organizada e editada pelo próprio Reuben e dois outros maranhenses da porra, o Bruno Azevedo e o Celso Borges, com textos e traduções deles mesmos e de outros de lá, a revista traz também poemas de Gregory Corso, Allen Ginsberg, Thurston Moore, alguma sátira e divertidas ilustrações. Tudo numa edição simples, barata e bem feita. Uma festa.

Um poema de Anderson Almeida

Guerra

Para Leo Gonçalves

Você para –
e se depara
com o guepardo.

Fogo nativo,
na noite
ativo.

Você para –
e o guepardo
repara.

Suas fibras
sem grades
se compassam.

Nas patas,
a pausa
se aperta.

Nos pés,
o passo
passa.

A espádua,
a espada
do guepardo.

A sua,
o olhar
crispado.

Ele dispara
e você, calado,
só encara.

(Seu corpo,
do medo,
isolado.)

Você, quieto,
ao seu embalo
se iguala.

Ele, solto,
a você imóvel
se equipara.

O respeito
mal resvala
a face felina

e o ataque,
cedo certo,
desanima,

e o anteparo
dessa ruga
lhe ampara.

A fera
se equipa
de cautela

e a estátua
em suas patas
se hospeda.

.

II

Outra arma
entre os dois
se aloja.

Fogo-falo,
contra a noite
feito fraco,

a distância,
a armadura
dessa arma.

O abuso
dessa ajuda
os ultraja

e o guepardo
se vira
contra a besta,

que de lá
já aponta
para a fera.

(Fulo,
você folia
por sua guerra.)

O guepardo,
ora irado,
se destaca –

predador
que voa
como pedra.

O estalo
do tiro
não o abala:

ele dispara
a si
contra a bala.

Anderson Almeida (1977), poeta belorizontino, foi premiado em vários concursos de poesia e não publicou nenhum de seus livros. Participou recentemente do livro Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos – ações poéticas do Poro. Considero-o um dos mais consistentes da minha geração e para mim é uma imensa honra ter um poema dele dedicado a mim e honra tão grande quanto esta é poder publicá-lo aqui no Salamalandro. Valeu Anderson!