O GATO E O PASSARINHO
Um vilarejo escuta entristecido
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro do vilarejo
E foi o único gato do vilarejo
Que devorou pela metade o passarinho
E o passarinho para de cantar
E o gato para de ronronar
E de lamber o focinho
E o vilarejo faz para o passarinho
Um maravilhoso funeral
E o gato que é convidado
Segue o cortejo atrás do caixãozinho de palha
Onde o pássaro morto está deitado
Carregado por uma menina
Que não para de chorar
Se eu soubesse que isso te machucaria tanto
Lhe diz o gato
Eu o teria comido inteirinho
E depois teria dito
Que havia visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Para um lugar que fica tão longe
Que não se pode jamais voltar
Você teria sofrido menos
Apenas tristeza e saudade
Não se deve nunca fazer as coisas pela metade.
***
LE CHAT ET L’OISEAU
Un village écoute désolé/Le chant d’un oiseau blessé/C’est le seul oiseau du village/Et c’est le seul chat du village/Qui l’a à moitié dévoré/Et l’oiseau cesse de chanter/Le chat cesse de ronronner/Et de se lécher le museau/Et le village fait à l’oiseau/De merveilleuses funérailles/Et le chat qui est invité/Marche derrière le petit cercueil de paille/Où l’oiseau mort est allongé/Porté par une petite fille/Qui n’arrête pas de pleurer/Si j’avais su que cela te fasse tant de peine/Lui dit le chat/Je l’aurais mangé tout entier/Et puis je t’aurais raconté/Que je l’avais vu s’envoler/S’envoler jusqu’au bout du monde/Là-bas où c’est tellement loin/Que jamais on n’en revient/Tu aurais eu moins de chagrin/Simplement de la tristesse et des regrets//Il ne faut jamais faire les choses à moitié.
Jacques Prévert. Histoires. Paris: Gallimard, 1946.
Postei este poema pela primeira vez em 2006, quando o Salamalandro ainda era no blogspot. Agora, depois de idas e vindas, textos e lidas, aqui vai outra vez, revisado. Para quem quiser ler, comparar, malfalar e criticar (todas as opções são benvindas, comentem aí), incluí o original. Você também pode ouvi-lo aqui, na voz de divertidas crianças francesas.
ou como dizia o mestre yoda: “do or do not, there is no try”
Muito bom…
Gostei do gato. Muito. E do poema, tanto. Ainda mais, de ouvi-lo.
Mas saudade nunca é apenas. Só pra constar.
lu,
é verdade. mas sem o choro da despedida e com a dúvida do reencontro, a saudade é diferente.
no original não é saudade. é lamento, regret. mas não rima. só pra constar.
beijos.
tudo constando, inclusive que sou uma pentelha, deixa eu dizer que com saudade ficou bem mais bonito e que há mentiras tão ternas que operam como verdades, por isso o gato é tão cativante 😉
Lu, a verdade é um brinquedo ficcional.
Ou como diz o Quintana: “A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”.
E daí que quem começa um papo bom assim com uma pessoa verborrágica como eu deve saber que é difícil parar. Mas o mote é bom e Quintana também escreveu: “porque um verdadeiro poema continua sempre”.
Pensando na verdade, lembrei do Lacan (yes, meu xodó): “digo sempre a verdade, não toda, pois dizê-la toda é impossível, não há palavras para tanto”. E o gato dizendo de um lugar tão longe que não se pode voltar, é justo uma verdade que não se pode dizer toda, né?
Lu, mesmo esse poema pode ter mil leituras. Eu gosto dessa aí. Mas a verdade é que a tensão entre mentira e verdade me comove pouco. O que mais me emociona é a inventividade do gato-prévert. Inventividade pra mim é tudo. Daí que eu concordo com o Manoel de Barros: a invenção é superior à verdade. Beijos.
Não é tão legal escrever uma coisa e ser lida de outra? É um dos belos matizes da linguagem. Pois se o que eu acho de mais comovente na tensão mentira-verdade é o que ela proporciona de inventividade e como desloca o olhar do que é apenas para o que pode ser tanto.
Prévert é um grande poeta, com seu humor corrosivo e seu olhar sacana e tão atual, debochando da caretice reinante ontem, hoje e sempre.
Abraço
Cesar Cardoso