Anderson Almeida e a vanguarda distraída

O poeta Anderson Almeida (na foto lendo o livro de Léopold Sédar Senghor) é um cara curioso. Muito vivo, exageradamente discreto. Quando nos conhecemos, ele não gostou dos meus poemas: ficamos grandes amigos. Lembro que em 1997, quando BH se preparava para uma celebração dos seus 100 anos, tínhamos o hábito de frequentar os bares da “Poesia Orbital”. Na ocasião tinha sempre algum poeta orbital falando versos em algum palco. Certa vez ele me disse: “cada vez que vejo um ator global falando versos de um poeta orbital, tenho mais certeza de que palcos não são o meu forte…” ou algo assim.

Nessa época a gente vivia intesamente este poema dele:

curtametragem

o homem pulou da ponte
e ao erguer a vista
e contemplar o horizonte
amou a vida e não viu por onde
retomar a subida

.

Desde então, a gente cometeu muita vida. Um dia ele me aparece com um calhamaço de uns 200 haicais completamente originais e inesperados. O silêncio dele nos últimos tempos me faz pensar neste haicai dele:

estou mudo
como borges era cego
e beethoven era surdo

Ele é um dos caras mais originais da minha geração. Nunca fez muita questão de mostrar o que escreve. Esconde dos holofotes, descansa no liso. Ele faz parte de uma vanguarda que chamo de “vanguarda distraída”. Linguagem urbana, vitalidade em cada vírgula. No meio da distração, ele cisma de vez em quando de enviar um poema para algum concurso. Ganha, claro. Lembro até que quando o conheci, tinha ganhado um prêmio de honra ao mérito num concurso de poesia latino-americana realizado na Alemanha.

Depois ele ficou entre os 5 melhores de uma revista chamdada Ipsis-Literis. Quando li os versos que ficaram em primeiro, gostei mas não amei. Apenas confirmei a insuficiência desses concursos. Os poemas que ficaram em primeiro lugar tinham todo um clima de aplicação das teorias aprendidas na academia, enquanto que nos poemas do Anderson (que mereciam de longe o primeiro lugar) parecia que a língua estava acabando de ser inventada, sem compromisso com a história da literatura, sem compromisso com ninguém, originais e consistentes. uma pena eu não estar com eles aqui (no meio de muitas mudanças, meus livros ficaram dispersos e não encontro mais nada).

Mas em todo caso, vou deixar dois outros, publicados no jornal estilingue #3 em 2004 enquanto ficamos na torcida para ele lançar logo um livro:

as ruas em alta velocidade se estraçalham em esquinas
as estradas não têm quinas

as ruas e as estradas tentam todos os meios de despitar-se
em curvas, em pontes, em bifurcações

as ruas de mãos dadas
uma rua sem saída é uma rua só

há poemas pobres e planos como ruas

o poema é uma rua fantasma
que atravessa uma cidade fantasma
onde passam navios fantasmas
que deixam garrafas com manuscritos

e que manuscritos
enchem de amantes submarinos
as cidades em ruína

.

durmo de olhos abertos
meu irmão e seus brinquedos de guerra
minha irmã e suas guerras de brinquedo
disputo com os escorpiões meus sapatos
pendurei o espelho e caíram todos os quadros
vasculho cabides e gavetas
mas nada de meu
infilitra na solidão uma calma cotidiana
chove
moro em um morro forte onde uma árvore grande foi derrubada por um raio
ter uma moto e acelerar sem temer a árvore atravessada
chuva que diz sim em clarões

.

17 pensou em “Anderson Almeida e a vanguarda distraída

  1. é, meu velho, só vc…

    “vanguarda distraída”, se fosse em nova york virava mania mundial.
    como o injustiçado “sentimento do mundo”.

    distraídos venceremos!

  2. entre a poesia e o romance e a bossa nova tropicana das ruas em contra mão; entre um ato… entre o silêncio e a distância das letras: o escrito! ainda que os livros não sejam mais como eram.procurei compreender o que ele me queria anunciar!

  3. poxa, Léo que maravilha isso que posso chamar de “ambrosia de idéias poéticas”, lançando e apropriando-me de um termo criado pelo Sérgio Augusto para se referiar ao ensaio. não conheço muito dos riscados do Anderson, mas adorei essa pequena coleta apresentada por ti. lembro que em 2004 eu indiquei ele para o meu lugar numa oficina literária com o Milton Hatoum na FLIP sem conhecê-lo. vim a conhecer a pessoa depois, e desde de então é um cara boa praça a beça. muitos são os bons poetas desta cidade em que qualqueres dizem sê-los. Anderson pertence à guarda da poesia vital. e isso é o que importa. no mais, saudades do amigo. sei que estive em falta contigo, mas hei de compensar isso. abracios, camará!

  4. O cara tem “pegada”. Duas coisas para se ressaltar: a qualidade dos poemas dele e a sua generosidade. É como se estivéssemos no “tempo da delicadeza”. Abraço.

  5. Anderson, o poeta é tão raro quanto o Anderson pessoa. Anderson, vc nao sabe como tenho ouvido os discos de vinil que vc me deu! Sou solidário com sua escrita e partidário de sua temática!

  6. Conheci o Anderson quando estava na 5a série. tinhamos como 11 anos. Necessario dizer que ele me aplicou dostoievski ja nessa epoca. Anderson sempre foi um cara tao brilhante quanto discreto.
    Fico muito feliz de ler esta coluna, pq no silencio da pouca convivencia que mantemos hoje, ela expressa parte da minha enorme admiraçao por este poeta e amigo.

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