Arquivo da categoria: Poesia & arredores

Belo Horizonte, Belorizontem

Nasci numa cidade de nome aparentemente bonito. Sendo assim, fiquei procurando, desde menino, o tal belo horizonte. Quis acreditar que as montanhas ao lado eram de fato bonitas. Mas que diabo, não via o sol nascer nem se pôr entre elas, embora soubesse que ele se escondia em algum lugar. Eu não achava belo o horizonte da minha cidade.

Um dia veio o papa João Paulo II e disse com seu sotaque polaco-romano: “Que belo horizonte!”, enquanto olhava para a Serra do Curral. O povo acreditou. Mas não. Não foi o papa que deu esse nome pra cidade. Ele achava que estava sendo original falando assim, mas eu desconfiava desde pequeno que ele tinha se deixado iludir pelo nome da cidade. Não é bom dizer isso por aí, porque os belorizontinos ficaram tão felizes com o arrebato do papa que sacralizaram direitinho a conversa dele. Belo belo era o jasmineiro que havia na praça que ganhou o nome do Papa, belas as sardas das meninas que brincavam na rua, a gíria do neguinhos que andavam de chinelo, belo o tom de verde que pegava na grama no final de setembro. Mas não o horizonte.

Daí que sempre desconfiei desse nome. Invejava aqueles topônimos bonitos, de uma palavra só, muitas vezes de composição tupi: Araçuaí, Almenara, Itaúna, Sabará, Itu, Paraty, Piratininga, Sorocaba, Pirapora, Ubatuba, Bocaiúva, Barbacena, Botucatu, Paracatu, Cordisburgo (cidade do coração, nome latino), Indianápolis (cidade dos índios, nome grego). Ou então aqueles que alguém tira da topografia: Serra das Araras, Barra do Guaicuí, Rio Acima, Rio Abaixo, Rio das Ostras. Mas não. Eu tive o azar de nascer numa cidade de nome composto e pouco significativo. Um adjetivo qualificativo (feio, bonito, belo, horroroso) e um substantivo abstrato (o que é um horizonte? montanha ou estepe? floresta ou edifício? utopia ou um talvez perene?)

“Belo”, em qualquer língua, é um qualificativo ambíguo. Designa, em princípio (todo mundo sabe), aquilo que é bonito ou mais que bonito: “Fulano vive numa bela casa”. Mas pode servir também para criticar: “que belo papel você está fazendo, com esse chororô”. Na língua francesa, essa palavra serve às vezes como partícula, mudando o significado do radical: belle-mère (bela-mãe), beau-père (belo-pai), belle-soeur (bela irmã), beau-frère (belo-irmão) significam respectivamente sogra (ou então madrasta), sogro, cunhada e cunhado. Neste caso, a dupla beau-belle (belo-bela) significam qualquer coisa como “quase”, ou “falso”, ou “meio”.

Quando os especuladores imobiliários querem inventar um bairro novo, pelo menos no Brasil, colocam nomes compostos que supostamente elogiam a paisagem: Bela Vista, Vista Alegre, Boa Vista, Nova Vista. Quando acaba o repertório, começam a inventar outras composições do mesmo gênero, só que em francês ou em italiano. Daí que em Belo Horizonte tem também o bairro Belvedere, que significa bela vista em italiano. E ouvi dizer outro dia que estavam construindo um condomínio Bellevue (bela vista em francês), não sei se é verdade.

Para quem não sabe, minha cidade natal foi inaugurada em 1897 e nasceu sob o discurso da Utopia. A primeira capital do estado de Minas Gerais era Vila Rica de Ouro Preto. Um nome promissor, próprio para um lugar que, com todo o ouro extraído de suas jazidas, ajudou a financiar a pompa e a circunstância dos ingleses e sua revolução industrial, o século de ouro espanhol, a fidalguia portuguesa e os governos absolutistas do século XVIII. Com a grana que saía daquelas minas, Vila Rica tinha potencial para se tornar a capital de todo o império português daqui, de lá e de além lá.

Mas a república foi proclamada em 1889 e na década seguinte tinha de fazer valer. Não demorou nada, uma comunidade de sertanejos inconformados com a subida absurda dos impostos e com a complicação de suas vidas (embora acabada a escravidão, ou mesmo por isto, estavam sendo tratados como escravos – situação que se repetiu em todo o mundo do trabalho na época, incluindo os imigrantes que chegavam da Itália, do Leste europeu e do Japão), começaram a seguir um líder profético (Antônio Conselheiro) que se dizia monarquista. Inimigos da república de Marechal Deodoro e Floriano Peixoto, fundaram em Belo Monte (yes, mais um elogio à paisagem) a primeira verdadeira república do Brasil e deram-lhe o nome de Canudos. O governo republicano se viu numa estranha crise que balançou a opinião pública. Canudos virou símbolo da insurreição anti-republicana. Dentre as inúmeras contribuições dos sertanejos de lá para o mundo contemporâneo, está a palavra “favela”, que designa o tipo de comunidade em que se transformou o povoado de Canudos.

Meu amigo, o poeta e belorizontino como eu, Ricardo Aleixo, cantou em seu livro Maquina zero a seguinte pedra (e aqui acrescento também os meus palpites de pseudo historiólogo): na proclamação da república, os governantes decidiram mudar o local da capital de Minas Gerais. Vila Rica de Ouro Preto era um lugar barroco, com suas ruas volutas, ladeiras antigas e becos sem saída. E como todo governante sabe, é preciso haver meios de cercar e render o povo, sempre que surge alguma rebelião. O exemplo era a reforma de Paris em 1848, realizada depois da Comuna. Assim, escolheram a região do Curral d’El Rey para ser a nova cidade nova (mais uma tabula-rasolândia) e lhe apelidaram com um nome que rima e nega ao mesmo tempo a insurgente Canudos, a alternativa a Belo Monte: Belo Horizonte.

Com a idade, fui aprendendo a gostar do horizonte da minha cidade (ser humano se habitua a tudo). Passei achar a serra do curral até bonitinha. Especialmente depois que, ao visitar o terraço do edifício Niemeyer, na praça da Liberdade, notei que toda Belo Horizonte está cercada de favelas. Por onde se olha, qualquer montanha daquelas que compõem o horizonte, encontram-se comunidades, vilarejos pobres e revoltados, nichos de alguns dos poucos habitantes realmente revoltosos do país. Belo Horizonte, é praticamente um congo, um quilombo entre as montanhas.

Mas aprendi também que em Belo Horizonte o horizonte, a perspectiva, acaba logo ali. E um dia, meu corpo e meus desejos não couberam mais nos limites do Curral d’El Rey.

outro poema de m. dolabela

Asilo Arkham (Redundância #2)

a Paulo Leão

mudamos de casa
mudamos pra casa ao lado
mudamos pra galeria em frente
mudamos pro Bairro da Saudade
mudamos pro Cemitério da Paz
mudamos do Curral del Rey

mudamos pro andar de cima
mudamos pros fundos
mudamos a cor do cabelo
mudamos de ramo
mudamos de telefone
mudamos e não te convidamos

mudamos de sexo
mudamos de droga
mudamos a roupa de cama
mudamos a mobília da sala
mudamos pro Asilo Arkham
mudamos enquanto era tempo

mudamos o canal de TV
mudamos a faixa do rádio
mudamos de idéia fixa
mudamos a página do livro
mudamos de ilusões perdidas
mudamos pra melhor atender

mudamos e compramos dólar
mudamos porque o mundo gira
mudamos porque a lusitana roda
mudamos de medicação
mudamos o pó de café
mudamos e passamos o ponto.

(BHZ 29 jul. 2000)

Bibliografia:
Marcelo Dolabela. Lorem Ipsus: antologia poética & outros poemas. BH: edição do autor, 2006

um poema de marcelo dolabela

Baladilha à maneira de W. M.

eu tenho mais versos pra escrever
que dor ou arrependimento
se tu me dizes que me amas
penso sempre em fingimento
mas se berras que me odeias
eu tenho o mesmo sentimento

eu tenho mais boca pra comer
que dente sal e alimento
se eu não divido minha cama
é porque adoro o relento
e quando serves a ceia
prefiro um outro argumento

pois eu tenho mais versos pra escrever
com o nanquim do meu tormento

Marcelo Dolabela. Lorem Ipsus: antologia poética & outros poemas. BH: Edição do Autor, 2006

Nada a dizer

O que interessa a Sahea é a criação de significados carregados de uma sutilíssima crítica ao status neutro e esvaziado que a linguagem adquiriu em nossos dias.

Marcelo Ariel

Marcelo Sahea está com livro novo. Ainda não li, mas o título se parece muito com as palavras que ouvi de Marcelo há um ano atrás no bate-papo após sua performance no Oi Futuro. Algo como “quanto mais você me entende, menos entendo”. Seu novo livro sai pela editora AnnaBlume e em breve deve estar nas livrarias. Quanto a mim, não vejo a hora de ter um exemplar em mãos.

Um poema de Juan Gelman

À PINTURA

Dénise trabalha no Musée du Louvre buffet do 1º piso,
entre mesas ou ingleses ela conduz seu corpo com toda a decisão,
sua bunda é mais sonora que os mundos de Rubens
e é parecida com a esquina das pombas da Avenue des Champs Élysées.

Todo o dia o dia todo se mexendo se mexendo
solta espécie de pássaros que revoam ao seu redor
e a descrevem no ar saudando a grande cidade
antes de regressar docemente à sua carne.

Dénise trabalhava e nunca havia visto a Gioconda
mas seu quarto em Poissonnière
era um país sempre disposto para o amor,
Toda noite seu cheiro batia nas janelas.

Quando abraçava o homem olhava para a porta
como se a ternura fosse entrar de repente,
dela às vezes voavam pássaros escuros
como uma tristeza depois de haver amado.

(do Juan Gelman, tradução provisória de Leo Gonçalves)

A LA PINTURA

Dénise trabaja en el Musée du Louvre buffet del ler. piso,
entre mesas o ingleses ella conduce su cuerpo con toda decisión,
su culo es más sonoro que los mundos de Rubens
y se parece a la esquina de las palomas de l’Avenue des Champs Elysées.

Todo el día todo el día moviéndose moviéndose
suelta especie de pájaros que revolotean a su alrededor
y la describen en el aire saludando al gran pueblo
antes de regresar dulcemente a su carne.

Dénise trabajaba y nunca había visto a la Gioconda
pero su cuarto en Poissonniére
era un país siempre dispuesto para el amor,
cada noche su oleaje golpeaba las ventanas.

Cuando abrazaba al hombre miraba hacia la puerta
como si la ternura fuese a entrar de repente,
a veces se le volaban pájaros oscuros
como una tristeza después de haber amado.

Juan Gelman, no livro Gotán

Revista de Autofagia nº3 – para baixar

Ótima notícia de carnaval no blogue do Bruno Brum: a Revista de Autofagia nº3 já está disponível para baixar, em formato pdf. A revista, que é levada na base da boa vontade por ele (Bruno) e o Makely, é publicada desde 2003 e já teve como colaboradores: Estrela Leminski, Amarildo Anzolin, Marcelo Sahea e tantos outros. Neste número 3 você poderá ler poemas de Allen Ginsberg traduzidos por mim (Leo Gonçalves), os trabalhos da série tramas de Marcelo Terça-Nada! (que inclusive foram belissimamente aproveitados na capa e no projeto gráfico da revista), uma entrevista com o escritor mineiro Sérgio Fantini, poemas de Joca Reiners Terron, Micheliny Verunschk, Guilherme Rodrigues, Letícia Féres, Fabrício Marques, Mônica de Aquino, poemas de Bill Knott e Keneth Rexroth traduzidos por Reuben da Cunha Rocha, e muito mais. Faça o download da revista e confira.

Qualquer dúvida, dê uma sacada no www.saborgraxa.wordpress.com

O amante da algazarra

Essa semana me deu na veneta de ler o livro O amante da algazarra – Nietzsche na poesia de Waly Salomão, dica da querida poetamiga Renata Cabral. O ensaio (um dos poucos existentes sobre o Sailormoon), foi escrito pelo também poeta Flávio Boaventura, o Boave. O texto, embora escrito para a academia, é de uma maravilhosa sagacidade e esperteza de linguagem. Coisa de quem conhece o peso das palavras. Enquanto eu lia, sentia aquela alegria esfuziante de quem está revendo amigos.

juan fiorini

quase sempre
penso tudo

quase tudo
nada peço

tudo penso
quase nada

nada penso
sempre quase

quase nada
sempre tudo

quase sempre
nada tudo.

(do livro quase nada sempre tudo, de juan fiorini)

Do que eu mais gosto no livro do Juan Fiorini, é que ele é vagabundo como eu, despretensioso “corpoema” a transitar pelas ruas da sua cidade, poesia sem pose e sem limites, pura brincadeira que nada nada “faz de cada um de nós um santuário de tudo e de si mesmo”.