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BH: Carnaval e Política

Talvez Belo Horizonte seja hoje um caso único na política brasileira. Primeiro do lado do poder: as notícias quase não circulam fora de Minas, o que permite aos políticos fazer o que bem entendem e ainda serem admirados como salvadores da pátria. É o caso do ex-governador e atual senador Aécio Neves, que criou um sistema de censura branca em todo o estado, fez muita demagogia, manteve tudo como estava antes dele ou piorou um pouco mais alguns pontos. Para sair bonito na fita, criou um centro administrativo nos confins da cidade, dificultando o acesso do povo ao poder de uma maneira pomposa – o projeto do cidade administrativa (que ganhou o apelido de Nevesland) é de Oscar Niemeyer. No mais, muita corrupção, drogas e arbitrariedade, coisas que não aparecem na revista Caras. Outro que sai bonito na fita é o atual prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda. Amigo dos endinheirados, trata a cidade como uma empresa – que ele administra com pouquíssima visão de futuro, já que seu projeto mais ambicioso é a imediatista Copa do Mundo. Recentemente, apareceu em pesquisas como o prefeito brasileiro com maior nível de aprovação, embora exista um movimento Fora Lacerda! e inumeráveis manifestações cotidianas nas ruas e nas redes sociais contra ele.

Mas não são só as falcatruas que passam de liso para os ansiosos de informação. Desde que Márcio Lacerda proibiu o uso da Praça da Estação para atividades públicas, começou a surgir um movimento alegre e carnavalesco na cidade que está gerando a maior dor de cabeça para a prefeitura. Incomodados com a proibição, jovens da cidade decidiram fazer a “Praia da Estação” e esta passou a ser um importante ponto de encontro, para o qual converge a maioria dos os movimentos de contestação política da cidade. Me lembro das vezes em que fui: uma hora em que se pode estar livre dos afazeres cotidianos, conversando livremente sobre as coisas da cidade. Nos intervalos entre um papo e outro, toma-se um refrescante banho na fonte da praça, aos gritos de “Hei, polícia, a praia é uma delícia!”. Márcio Lacerda, sem querer, transformou a Praça da Estação numa Ágora, e agora a coisa cresce cada dia mais.

Envolvidos com as questões urbanas da cidade, a população se une para reclamar seus direitos. Momento memorável aconteceu na última quinta-feira (dia 09/fev). Eis o caso: os vereadores belorizontinos haviam decidido que mereciam um reajuste salarial de 61,8%. A notícia foi escandalosa e a imprensa local não deixou o caso em brancas nuvens. O povo protestou. Resultado: o prefeito vetou o aumento. Os vereadores bateram o pé. Se reuniram novamente para votar a derrubada do veto. Porém desta vez, havia uma multidão assistindo, filmando, protestando, pressionando. Os vereadores não tiveram a coragem de manter o veto contra a vontade dos manifestantes (clique aqui para assistir a alguns momentos da votação). Comentário geral: “Com o povo em cima, a coisa anda”.

É bonito ver que essa mudança de atitude, esse desejo de participação tenha surgido por dentro da alegria e da paz. Não sei de nenhuma notícia de manifestante que tenha tentado agredir alguém, machucar um colega ou mesmo um policial. Nada disso. Tudo é feito em meio ao clima carnavalesco que, de repente, tomou conta da cidade. Quando a coisa vai por esse lado, não há nada que as autoridades consigam fazer. A coisa penetra na alma do povo e todo mundo dança, pula, batuca. Não foi o que ocorreu com a canção “Na coxinha da madrasta”, de Flávio Henrique (clique aqui para ouvi-la na voz de Juliana Perdigão)? O autor a havia disponibilizado na internet para participar do Concurso de Marchinhas Mestre Jonas. Mas eis que, ofendido com o caso, o vereador Leo Burguês resolveu acionar seu advogado e ameaçar o compositor, acusando-o de ofensa e difamação. Restultado: por causa disto, a marchinha ganhou ainda maior notoriedade. O povo entusiasmado reduplicou e disponibilizou a canção em blogs, colocou a letra nas redes sociais e protestou muito. “Tira a mão/tira a mão/é hora de dar um basta/a grana da população foi parar/na cozinha da madrasta”, diz o refrão da marchinha que ganhou o concurso e certamente se tornará um hino pela mudança de atitude dos políticos na cidade. Caso raro: a notícia acabou se espalhando para fora de Minas. Aí está um fato que pode estragar de vez a carreira política de Leo Burguês.

Essa coesão política assim tão espontânea, para mim, é um caso inédito. O carnaval possui de fato um potencial político incrível, quando surge do desejo das pessoas que criam a festa. Tudo parece muito bonito, mas é preciso ficar alerta: o ineditismo está deixando os políticos e os policiais completamente desorientados. Usam métodos antiquados para um fato completamente novo. Chegam truculentos, lançam bombas para dispersar a festa, sprays de pimenta, acuam, agridem fisicamente manifestantes e foliões. Aconteceu ontem mesmo no desfile da Banda Mole, o pré-carnaval da cidade. Um verdadeiro vexame. Um verdadeiro perigo.

Desarme a violência em você

Minas Gerais é o segundo estado brasileiro em quantidade de pessoas negras e seus descendentes. Esta é uma marca da mineiridade pouco comentada. Mas o traço afro tem sido a fonte do que de melhor tem-se produzido no estado. Das Noites do Griot aos duelos de MC, a cultura afro-brasileira e suas variantes tem recriado (e, talvez, subvertido) a famosa “mineiridade”.

Pois no último domingo, um visível ato de racismo chocou a cidade de Belo Horizonte. O rapper, produtor, e educador social Ice Band foi brutalmente atacado num bar do bairro Santa Efigênia. A discussão surgiu por acharem que ele era um pedinte. A conclusão desastrosa foi um linchamento que o deixou com uma clavícula quebrada, dentes afundados, vários hematomas pelo corpo, o joelho ferido e a alma dilacerada clamando por justiça. Ao procurar a polícia, também foi mal recebido. Sendo, inclusive, identificado como perturbador da ordem.

Por isso, hoje, sexta-feira, 03 de dezembro, haverá um Duelo de MCs para lançar a campanha DESARME A VIOLÊNCIA EM VOCÊ. Leia abaixo a convocatória.

Para quem não sabe, Ice Band, o Hudson, é um sobrevivente da guerrilha urbana. Ex-bandido, traz no próprio corpo as marcas de sua história. Sua vida hoje é dedicada a tirar os jovens da situação arriscada do crime como educador social. É convidado para falar de sua experiência em todo o Brasil e é respeitado por rappers e artistas. O conheci em 2008 por ocasião do lançamento da revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro, nº 6, na qual ambos colaboramos. Uma pessoa dócil e agradável, casado com a generosa jornalista Janaína Cunha Melo com quem tem um filho.

Esperamos que a justiça seja feita, que os agressores sejam realmente punidos e que esse tipo de situação (tema de um dos raps do Ice Band) pare de ocorrer definitivamente.

Para saber mais sobre o triste fato, leia as notícias no Estado de Minas, no jornal O tempo e com destaque especial, esta crônica de Silvana Mascagna. Sugiro ainda, muito especialmente, que você ouça um pouco do trabalho do Ice Band lá no Myspace.

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CONVOCATÓRIA

O Centro de Referência Hip Hop Brasil, a Família de Rua e o Coletivo Nospegaefaz convidam militantes do hip hop, ativistas dos movimentos sociais e populares, artistas, representantes de organizações da sociedade civil e amigos a participarem do lançamento da campanha DESARME A VIOLÊNCIA EM VOCÊ, nesta sexta-feira, dia 3 de dezembro, a partir das 20h, no Duelo de MC’s, em frente à Serraria Souza Pinto.

Esta ação presta solidariedade irrestrita ao rapper e arte-educador Hudson Carlos de Oliveira, o Ice Band, que foi covardemente agredido domingo passado, em crime de motivação racista e de intolerância,em frente ao monumento de homenagem a Zumbi dos Palmares, no bairro Santa Efigênia.

A partir de agora, todas as sextas-feiras um muro da cidade receberá a intervenção de um artista plástico de periferia, até que o processo judicial se encerre com a condenação dos culpados por este ato de barbárie que fere a dignidade humana e os direitos civis de todos os brasileiros. Em defesa da vida, da liberdade e da justiça, participe.

Informações: crh2b@yahoo.com.b

Belo Horizonte, Belorizontem

Nasci numa cidade de nome aparentemente bonito. Sendo assim, fiquei procurando, desde menino, o tal belo horizonte. Quis acreditar que as montanhas ao lado eram de fato bonitas. Mas que diabo, não via o sol nascer nem se pôr entre elas, embora soubesse que ele se escondia em algum lugar. Eu não achava belo o horizonte da minha cidade.

Um dia veio o papa João Paulo II e disse com seu sotaque polaco-romano: “Que belo horizonte!”, enquanto olhava para a Serra do Curral. O povo acreditou. Mas não. Não foi o papa que deu esse nome pra cidade. Ele achava que estava sendo original falando assim, mas eu desconfiava desde pequeno que ele tinha se deixado iludir pelo nome da cidade. Não é bom dizer isso por aí, porque os belorizontinos ficaram tão felizes com o arrebato do papa que sacralizaram direitinho a conversa dele. Belo belo era o jasmineiro que havia na praça que ganhou o nome do Papa, belas as sardas das meninas que brincavam na rua, a gíria do neguinhos que andavam de chinelo, belo o tom de verde que pegava na grama no final de setembro. Mas não o horizonte.

Daí que sempre desconfiei desse nome. Invejava aqueles topônimos bonitos, de uma palavra só, muitas vezes de composição tupi: Araçuaí, Almenara, Itaúna, Sabará, Itu, Paraty, Piratininga, Sorocaba, Pirapora, Ubatuba, Bocaiúva, Barbacena, Botucatu, Paracatu, Cordisburgo (cidade do coração, nome latino), Indianápolis (cidade dos índios, nome grego). Ou então aqueles que alguém tira da topografia: Serra das Araras, Barra do Guaicuí, Rio Acima, Rio Abaixo, Rio das Ostras. Mas não. Eu tive o azar de nascer numa cidade de nome composto e pouco significativo. Um adjetivo qualificativo (feio, bonito, belo, horroroso) e um substantivo abstrato (o que é um horizonte? montanha ou estepe? floresta ou edifício? utopia ou um talvez perene?)

“Belo”, em qualquer língua, é um qualificativo ambíguo. Designa, em princípio (todo mundo sabe), aquilo que é bonito ou mais que bonito: “Fulano vive numa bela casa”. Mas pode servir também para criticar: “que belo papel você está fazendo, com esse chororô”. Na língua francesa, essa palavra serve às vezes como partícula, mudando o significado do radical: belle-mère (bela-mãe), beau-père (belo-pai), belle-soeur (bela irmã), beau-frère (belo-irmão) significam respectivamente sogra (ou então madrasta), sogro, cunhada e cunhado. Neste caso, a dupla beau-belle (belo-bela) significam qualquer coisa como “quase”, ou “falso”, ou “meio”.

Quando os especuladores imobiliários querem inventar um bairro novo, pelo menos no Brasil, colocam nomes compostos que supostamente elogiam a paisagem: Bela Vista, Vista Alegre, Boa Vista, Nova Vista. Quando acaba o repertório, começam a inventar outras composições do mesmo gênero, só que em francês ou em italiano. Daí que em Belo Horizonte tem também o bairro Belvedere, que significa bela vista em italiano. E ouvi dizer outro dia que estavam construindo um condomínio Bellevue (bela vista em francês), não sei se é verdade.

Para quem não sabe, minha cidade natal foi inaugurada em 1897 e nasceu sob o discurso da Utopia. A primeira capital do estado de Minas Gerais era Vila Rica de Ouro Preto. Um nome promissor, próprio para um lugar que, com todo o ouro extraído de suas jazidas, ajudou a financiar a pompa e a circunstância dos ingleses e sua revolução industrial, o século de ouro espanhol, a fidalguia portuguesa e os governos absolutistas do século XVIII. Com a grana que saía daquelas minas, Vila Rica tinha potencial para se tornar a capital de todo o império português daqui, de lá e de além lá.

Mas a república foi proclamada em 1889 e na década seguinte tinha de fazer valer. Não demorou nada, uma comunidade de sertanejos inconformados com a subida absurda dos impostos e com a complicação de suas vidas (embora acabada a escravidão, ou mesmo por isto, estavam sendo tratados como escravos – situação que se repetiu em todo o mundo do trabalho na época, incluindo os imigrantes que chegavam da Itália, do Leste europeu e do Japão), começaram a seguir um líder profético (Antônio Conselheiro) que se dizia monarquista. Inimigos da república de Marechal Deodoro e Floriano Peixoto, fundaram em Belo Monte (yes, mais um elogio à paisagem) a primeira verdadeira república do Brasil e deram-lhe o nome de Canudos. O governo republicano se viu numa estranha crise que balançou a opinião pública. Canudos virou símbolo da insurreição anti-republicana. Dentre as inúmeras contribuições dos sertanejos de lá para o mundo contemporâneo, está a palavra “favela”, que designa o tipo de comunidade em que se transformou o povoado de Canudos.

Meu amigo, o poeta e belorizontino como eu, Ricardo Aleixo, cantou em seu livro Maquina zero a seguinte pedra (e aqui acrescento também os meus palpites de pseudo historiólogo): na proclamação da república, os governantes decidiram mudar o local da capital de Minas Gerais. Vila Rica de Ouro Preto era um lugar barroco, com suas ruas volutas, ladeiras antigas e becos sem saída. E como todo governante sabe, é preciso haver meios de cercar e render o povo, sempre que surge alguma rebelião. O exemplo era a reforma de Paris em 1848, realizada depois da Comuna. Assim, escolheram a região do Curral d’El Rey para ser a nova cidade nova (mais uma tabula-rasolândia) e lhe apelidaram com um nome que rima e nega ao mesmo tempo a insurgente Canudos, a alternativa a Belo Monte: Belo Horizonte.

Com a idade, fui aprendendo a gostar do horizonte da minha cidade (ser humano se habitua a tudo). Passei achar a serra do curral até bonitinha. Especialmente depois que, ao visitar o terraço do edifício Niemeyer, na praça da Liberdade, notei que toda Belo Horizonte está cercada de favelas. Por onde se olha, qualquer montanha daquelas que compõem o horizonte, encontram-se comunidades, vilarejos pobres e revoltados, nichos de alguns dos poucos habitantes realmente revoltosos do país. Belo Horizonte, é praticamente um congo, um quilombo entre as montanhas.

Mas aprendi também que em Belo Horizonte o horizonte, a perspectiva, acaba logo ali. E um dia, meu corpo e meus desejos não couberam mais nos limites do Curral d’El Rey.