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Juan Gelman, uma despedida

Foto: Archivo/El Universal (www.eluniversal.com.mx)
Foto: Archivo/El Universal (www.eluniversal.com.mx)

lenços

 

“adeusadeus” dizia/sacudindo seu coração como um lenço/
“adeusadeus” dizia/
na bondade da tarde/desfolhando-se
já quase lento como uma árvore/da vereda de defronte

chegavam-lhe ânsias/desastres/vozes
que o tempo mudou/porque também há sóis e luas
em uma voz/e uma voz pode cair como a noite/
deitar/morrer tremendo de astros/levantar

cheia de sol/e os meninos da vereda de defronte
tinham uma tarde na voz/
a tarde em que ele dizia “adeusadeus” a todo mundo/
aos trens que chegam e aos trens que vão/

adeus ao coração que voa e ao vôo do coração/
adeus à árvore da tarde/
ao tempo desfolhado/
adeus ao menino que passou/

do livro Isso (UnB, 2004)

*

Juan Gelman se foi e eu estou um pouco órfão.

A primeira vez que um livro de Juan Gelman apareceu em minhas mãos foi em 1996, trazido por minha amiga Rosana Vallesillo. Interrupciones II. Os poemas logo me entusiasmaram pelo seu ritmo, pelo surrealismo das imagens, pelo clima de tango e pelo amargo humor. Durante dois anos este livro não saiu da minha vista um instante sequer. Se aprendi a falar espanhol, isso se deve em grande parte a esse livro.

Naquele tempo, na minha roda de amigos, intercambiávamos descobertas de poesia que mais nos agradavam. A poesia de Juan Gelman é uma celebração da amizade. Eu queria compartilhar com eles os poemas que lia, mas como fazê-lo sem traduzir? Se hoje me dedico de alguma maneira à arte da tradução, isso começou com os poemas de Juan Gelman.

Em 1998, o site www.tanto.com.br publicou minha tradução de “sobre a poesia”, poema que se tornou um clássico na minha vida e que sempre recito onde quer que eu vá.

Andityas Soares de Moura frequentava a livraria onde eu trabalhava. Falei para ele que gostava desse poeta e quando ele adquiriu o livro Amor que serena termina, primeira antologia de Juan que tinha acabado de sair pela editora Record, em tradução de Eric Nepomuceno (não me lembro o ano) Gelman se tornou também um dos poetas favoritos do meu amigo. Com Andityas, sempre troquei muita correspondência.

Me lembro muito bem de uma tarde de maio de 2003, quando eu estava na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ao acessar meus emails encontrei uma mensagem do Andityas com o título BUEEEEMMMMMMMBBBBAAAAAA!, onde ele dizia com muito entusiasmo que havia conseguido o endereço eletrônico de Juan Gelman. A partir de então, passamos a nos corresponder com ele. Falávamos de vários assuntos, mostrávamos a ele nossas traduções que ele revisava e discutia conosco.

Uma série de acasos fez com que publicássemos o livro Isso pela UnB em 2004. Um trabalho feito em parceria entre os tradutores e que contou com total apoio linguístico e poético do próprio autor. Celebrávamos uma amizade. Depois da publicação, pouco a pouco a correspondência foi se arrefecendo, mas vez por outra dávamos notícias uns dos outros.

Em 2012, enquanto eu preparava parte da programação do Fliv – Festival Literário de Votuporanga, escrevi para Juan no meu tosco español del plata:

“Hoy por la tarde estuve leyendo en el periódico la bonísima noticia de que venís al Brasil en abril! Esto me ha alegrado mucho. He leído allí que estabas abierto a propuestas para participar de eventos literarios en otras ciudades del Brasil.”

Fiz-lhe o convite para participar do Fliv, ao que ele me respondeu dizendo que não poderia:

“No sé qué diario leíste, pero nunca me propusieron eso y a estas alturas lamentablemente no puedo moverme de Brasilia ni llegar antes del 14 para irme el 20. Siento mucho perder esta oportunidad de conocernos de persona.”

Perguntou se eu continuava escrevendo, ao que lhe respondi que se tivesse deixado os versos, hoje estaria louco.

Ele me responde:

“El Fondo de Cultura Económica acaba de publicar mi obra reunida –que también saldrá en Argentina y España  – pero no puedo dejar de escribir por tus mismas razones, porque el que está enfermo y loco es este mundo.”

Não quis perder a oportunidade de “conocer a Juan de persona”: fui a Brasília. Ao final de sua fala, fui falar com ele. “Oye, por qué no venís en la tardecita y tomamos una taza de café?”, me disse.

Cheguei às 18h. Ele estava hospedado na zona dos hotéis de Brasília, ao lado do eixão. Pedimos ao recepcionista para nos indicar o café do hotel, mas estava fechado. Saímos à rua a procura de um lugar. Mas em Brasília não há esquinas, quanto menos cafés. A não ser em shopings. Caminhamos lentamente até o outro lado do eixão, não sem antes enfrentarmos o estranho trânsito daquela cidade. Não encontrando um café, sentamos num trailer para tomar cerveja e conversamos intensamente durante uma hora, fumamos vários cigarros e fomos abordados por pedintes para os quais ele sorria. Não dava dinheiro, mas oferecia cigarros. Me contou de seus exílios, da saudade dos amigos, falamos de poesia, política e trocamos presentes. Quando falamos do divertido filme El lado oscuro del corazón, que tem em seu roteiro poemas dele, ele me disse: “esa película realizó un sueño mío, que era el de pagar la cuenta del bar con un poema. En Buenos Aires, yo solía preguntar al mesero si yo podía pagar con un poema. Y qué lástima, siempre decía no.”

Tinha um metro e oitenta, olhar triste e sorriso de criança. Não vivia de nostalgias, estava atento às coisas de seu tempo, ao mundo de agora, à vida de agora. Tinha uma alma generosa e gostava de se dedicar aos seus afetos. Por fim, acabou me contando algumas impressões que teve a meu respeito nos tempos em que eu estava em Belo Horizonte e mostrou agudíssima percepção do que eu estava vivendo. Nos despedimos, não nos vimos mais, embora eu tivesse o desejo de me organizar (há vários anos que penso nisso) para fazer uma visita em sua cidade adotada, a Ciudad de México.

Sobre esta experiência de Brasília, escrevi em espanhol o poema “Um par de coisas por dizer”, que aparece em português no meu livro mais recente (que por sinal foi prefaciado por ele).

UN PAR DE COSAS QUE DECIR
para Juan Gelman

que no hay la salud del mundo
que seguiremos cantando aunque
que no hay belleza suficiente
que éste exilio es de aquella parte
que el eje lleva gente de hierro
aunque sea hierro anémico
como la vida la vida enferma
que no nos cuesta querer una vida más limpia
aunque en brasilia no haya esquinas donde
tomar una taza de café
que los aires no estarán más buenos
sin el olor del humo
que la memoria no es quizás
ni tango ni rosa engalanada
o labirinto necesario
sino una caricia de la verdad
aunque sea verdad que sea mentira
habría un par de cosas sí
un par de cosas que decir
que seguiremos diciendo

*

Juan foi um personagem importante para a história do mundo. Sua luta pela memória dos desaparecidos durante as ditaduras militares foi muito mais que poesia. Ao encontrar os restos mortais do filho, morto num campo de concentração do Uruguai, não se deu por satisfeito. Mais tarde, encontrou também sua neta, Macarena Gelman e a luta nunca cessou, mesmo assim. Havia ainda mais gente, muito mais gente a ser encontrada.

Como jornalista, fazia o que a maioria da imprensa não faz: investigava e contava sobre as tramas recônditas dos que humilham e ofendem o mundo. Dizia o que ninguém tem coragem de dizer e tratava isso com seriedade. Um pouco dos seus textos jornalísticos podem ser lidos no seu blog www.juangelman.net.

Sua poesia extremamente multifacetada, tinha uma imensa pluralidade de vozes. Vozes por dentro e por fora. Boas para a recitação, dizia o que os ninguéns diriam. Experimentava muito. Criava personas, se reinventava linguisticamente. Se nos anos 1960 buscava o linguajar do tango, o lunfardo e o porteñol (como no livro Gotán), nos anos 1970, fazia incursões nas entranhas da língua. Seu livro Citas y Comentarios trazia recriações de Santa Teresa de Ávila  e San Juan de la Cruz. Outro livro do gênero é Com/posições, que o Andityas traduziu e publicou pela Crisálida. Mas foram as experimentações de Dibaxu que me intimaram a buscar também, em minha própria poesia, as entranhas ocultas da língua brasileira. A poesia dele trazia essa mesma ambiguidade de sua pessoa: escrita de ternura extrema no lugar onde deveríamos encontrar o ódio e o desespero. Uma escrita de violência e calma juntas, sem nunca cair no hermetismo vazio, na falta ou na aparente falta do que dizer.

Embora tenha morrido aos 83 anos, eu tinha a impressão de que ainda viveria muitos anos. Mas a morte não marca dia. Pessoas que me conhecem, quando souberam da notícia, vieram carinhosamente me dizer que ele, certamente, estará em lugar melhor neste momento. Talvez seja egoísta dizer isso, mas a presença de Juan no planeta nos mantinha (a nós que queremos “una vida más limpia que esta”) um pouco protegidos da mentira e do esquecimento.

Hoje, sem Juan, nossa responsabilidade aumenta imensamente. Que os deuses o recebam como merece. O homem que se foi não era apenas um. E teremos que ser inúmeros por ele. Talvez sim, talvez ele esteja em lugar melhor. Mas nós não.

***
Abaixo, mais 3 poemas do livro Isso, porque não há meio melhor de lembrá-lo e prestar-lhe homenagens:
somos

e como é isso que encurva?/
avança o tempo pelas têmporas?/
aqui sangram ao sol
da injustiça/mismamente/

e logo/que pouquinho/
sede que encova estas paredes/
tanta dor/tanta dor/
e já me calo/já

venha/irmãozinho/são seus cavalinhos/
e tudo o que pensam/
e como ficam bonitos
quando falam ao contrário/

*
o pássaro

alma/você ergue seu sonhar?/maldito pelos
que sofreram por sonhar?/e te espancam
para que se cale?/e
dizem que está equivocada?/que

não venha com seus sonhos?/
que há dor suficiente?/que olhe o
pássaro que tranqüilo cruza o céu?/
bota seu ovo no esquecimento?/

*

mundo

da rosa que amo/como cuidarei?/
não lhe faço mal?/
não a estrago?/
não lhe corto os pés?/

e este acabar?/este estar
como não estar?/e como ir-se
de ti/rosa?/
ajuntar a dor ao já sido?/

não entristecer-te a bondade/
que no mais dos dias se queima?/
e nada?/e tudo?/e mesmo nunca?/
e que não chores?/

Me: We

Publico abaixo a tradução de um ensaio curto do poeta e professor Dan Hanrahan que traça uma rápida leitura sobre Muhammad Ali, o campeão do Boxe que foi amigo de Malcolm X e um ativista do Movimento Negro estadunidense. A reflexão foi publicada originalmente no site www.pilsenportal.com, no dia 26 de janeiro de 2012.

Me: we

O caminho adiante num poema de Muhammad Ali
(por Dan Hanrahan)

Ao chegarmos ao fim do primeiro mês de 2012 e contemplar a miríade de questões que nos pesam e pressionam como comunidade e como nação, relembro um comentário feito por George Plimpton. Quando chamado a refletir sobre o caráter e o gênio do peso pesado e poeta improvisador norteamericano Muhammad Ali, o lendário escritor e editor da Paris Review falou de um poema de duas palavras. Plimpton ouviu o campeão recitar o poema a uma grande multidão certa vez nos anos 1970. Ali proclamou simplesmente: “Me: We”. Plimpton e as pessoas que estavam presentes ficaram comovidos. Plimpton nunca esqueceu a sabedoria destilada.

Me: We. É esse movimento em pensamento e ação que pode transformar e agir sobre todas as questões que os Estados Unidos e o mundo enfrentam. Emissões de carbono causando um aumento na temperatura global? Me: We. Desigualdade brutalizante entre os ricos e os pobres? Me: We. O surgimento de tensões a respeito das questões de imigração? Me: We. Tensões éticas e religiosas surgindo e se manifestam explicitamente dentro da sociedade? Me: We.

We não é um conceito absoluto para o Homo sapiens: 95% da história humana foram gastos com grupos de caçadores e coletores de 75 a 150 pessoas que, tentando sobreviver e florescer ao longo desses muitos milênios, tinham que manter uma atitude de compartilhamento. Os membros de tribos que tentaram guardar recursos individualmente poderiam ser expulsos, uma situação que poderia facilmente levá-los à morte. Na realidade, um esforço hercúleo foi requerido para convencer humanos a agir contra sua mais profunda natureza e procurar cumpri-lo de um modo puramente individualista – na maioria das vezes através de acumulação de bens de consumo e da busca por status social que a acumulação de riqueza proporciona.

Como foi detalhado brilhante, bem humorada e às vezes terrivelmente no filme do documentarista Adam Curtis, The century of the self (O século do self), exibido pela BBC, Edward Bernays, o sobrinho de Sigmund Freud, conhecido como o criador do marketing moderno, usou a manipulação dos mais irracionais impulsos da psique humana ao criar desejos onde antes não havia. Como Paul Mazer, um banqueiro de Wall Street que trabalhava para a Lehman Brothers nos anos 1930 declarou: “Devemos fazer com que os Estados unidos deixem de ser uma cultura de necessidades para uma cultura do desejo. O povo precisa estar treinado para desejar, para querer novas coisas, mesmo antes de as velhas terem se consumido por completo. Os desejos do homem devem ofuscar suas necessidades.”

Nossas verdadeiras necessidades são atendidas através do salto sugerido pelo poema, “Me: We”. Como para nossos desejos, vamos dar-lhes indulgências e celebrá-los enquanto eles não privam os outros de suas necessidades e quando temos certeza de que são, de fato, nossos desejos. Nossos verdadeiros desejos são realizados através da conexão humana, conexão com a natureza, conexão com algo maior. Me: We. Se no nosso leito de morte nos lembramos de um broche de diamante, isso acontece porque o broche era de nossa mãe ou avó ou foi adquirido sob o signo do compartilhamento com uma irmã que costumava usá-lo numa noite de lua cheia durante a primavera. Me: We.

(Tradução de Leo Gonçalves)

Transatlântico musicado

Alguns de meus poemas têm uma função mágica para mim. Como se sua existência e sua vocalização fossem capazes de me proporcionar, a mim, seu autor e a quem quer que se aproprie dele, uma espécie de cura. Assim é para mim este poema “Transatlântico”, que aparece no meu mais recente livro, o Use o assento para flutuar.

É um poema em ritmo de mar. De tal forma que quer transformar o monossílabo mar em ação, em verbo infinitivo e suas conjugações. Que são vento, léu, deriva. Principalmente deriva. A deriva para a qual topei me entregar e que me levou, apesar de todos os reveses da vida, e que me permitiu conhecer tantos lugares, tanta poesia e, principalmente, tanta gente incrível.

Foi numa dessas derivas, perambulando por Paraty que conheci a linda cantora Elizabeth Woolley. Nos encantamos rapidamente um pelo outro. Logo, a deriva do poema também a encontrou e ela, uma mulher marinha, com sua voz de onda, musicou este que eu pensava ser um poema imusicável.

Em pouco tempo, Elizabeth, a Guzzi, como chamam seus amigos mais próximos, se tornou imprescindível para mim e agora somos parceiros com esta, outra e outras músicas que ainda virão.

Agradeço a ela por tornar real para mim o sonho da música. Estamos juntos na deriva-mundo.

*

Elizabeth Woolley é uma alma em busca dos próprios sons. Filha do contrabaixista Pete Woolley, irmã da pianista Louise Woolley, ela compõe, canta, toca violão e piano e emociona o público com bossas, jazz e outros ritmos que ela mistura em sua própria música. Se lançou como intérprete no disco Guzzi e como compositora nos discos Infindável e o infantil Urubububu.

Atualmente, ela desenvolve o projeto “Cartas de amor”, musicando poema de autores diversos, principalmente mulheres (tenho orgulho de estar entre elas com este “Transatlântico”). As canções são arranjadas por ela e seus amigos que se reúnem de tempos em tempos para gravar ao vivo. As filmagens, gravações e edições são realizadas por Flávio Tsusumi e em seguida deixadas no youtube.

Para saber mais sobre ela, vá para o site www.elizabethwoolley.com

*

Transatlântico (Elizabeth Woolley/Leo Gonçalves)

Voz : Elizabeth Woolley.
Poema falado: Leo Gonçalves.
Guitarra e Arranjo: Michel Leme.
Baixo Acústico: Bruno Migotto.
Percussão (Cajón): Rodrigo Digão Braz.
Vídeo, áudio e edição: Flávio Tsusumi.

Consciências negras

Mulatos – uma história haitiana

Agostino Brunias

“Haiti onde a negritude pôs-se de pé pela
primeira vez e disse que acreditava na sua humanidade”

Aimé Césaire
Diário de um retorno ao país natal

O surgimento da Ilha de Saint Domingue, assim como da maioria das antilhas, coincide com a história do cultivo da cana-de-açúcar no novo mundo. A ocupação europeia se deu a partir de 1492, quando Cristóvao Colombo, recém chegado, deu-lhe o nome de Hispaniola. Seus primeiros habitantes, o povo Arauaque, foi completamente dizimado e expulso pelos espanhóis que a colonizaram e que mais tarde tiveram que dividir aquele território com os franceses. O cultivo da cana-de-açúcar começa no século XVII e inaugura naquele país uma sociedade nova, cruel, abusiva. Fazendeiros brancos franceses que administram enormes plantations com mão de obra negra. Enormes contingentes de africanos trazidos continuamente ao longo daqueles dois séculos. Ao que parece, sua maioria era proveniente do golfo do Benin, Angola, Congo e noroeste da África.

Em meados do século XVIII, aquela sociedade já havia se tornado um tanto mais complexa: dirigida por uma aristocracia branca enraizada mas que se considerava francesa, atendendo sempre aos comandos do rei da França que sempre enviava pessoas para fiscalizar os rendimentos. Não é preciso ser muito imaginativo para saber que tal aristocracia não era nada amena, nada gentil e que se sentia no direito de cometer as maiores atrocidades. Seja entre eles mesmos. Maiores ainda em relação aos seus objetos, os negros, que eram torturados, estuprados, dilacerados em praça pública para servir de exemplo e para manutenção do poder.

Além desses, com o encontro das raças, surgem também os novíssimos filhos de Saint Domingue: os mulatos. Estes não se reconheciam como brancos, mas eram filhos deles e por isso conviviam em situação especial. Não se viam como negros, embora não renegassem suas mães. Mas sentiam superiores a eles. Em idade apropriada, muitos eram enviados para a França onde estudavam em pé de igualdade com os aristocratas franceses do continente. No continente, a discriminação de cor era menor, não apenas porque estava na moda entre as cortesãs o uso de perucas crespas. Se engajavam no exército francês, ganhavam conhecimentos de fidalguia e, como tinham boas relações, se sentiam “superiores” a seus progenitores negros. De volta à ilha, produziam um modo de vida mais focado que o de seus pais brancos. Adquiriam fazendas. Produziam uma vida, na medida do possível, “honesta”, ganhavam reconhecimento e simpatia. Também possuíam escravos negros, mas não os tratavam tão mal. Depois da Revolução Francesa, ainda, alguns deles ganhariam seus representantes no congresso e defenderiam interesses haitianos. Mesmo assim: eram escravocratas e não desejavam de maneira alguma a mudança desse fato.

Sim: as classes sociais eram assim: brancos (aristocracia), mulatos (uma espécie de classe média ou burguesia) e negros (em sua maioria escravos, mas um ou outro possuindo liberdade e seu pedacinho de terra).

É nesse contexto socio-cultural que a ilha deu origem à primeira independência latino-americana, liderada por homens negros de quem jamais se esperava que tivessem forças suficientes para sobrepor o jugo em que estavam metidos. Especialmente porque antes, os brancos haviam tentado dar um golpe (que foi rapidamente sufocado pela coroa) e os mulatos tentaram também sem sucesso realizar a sua revolução.

Esses são os relatos de dois grandes historiadores antilhanos: Aimé Césaire (o poeta martinicano) e C. L. R. James (nascido em Trinidad) em seus livros Toussaint Louverture – La Révolution française et le problème colonial (Paris: Présence Africaine, 1981) e Os Jacobinos Negros: Toussaint Louverture e a revolução de São Domingos (São Paulo: Boitempo, 2000), respectivamente.

Segundo eles, a revolução que transformou o país de Saint Domingue em Haiti (ou Ayiti, conforme grafam os crioulofalantes de lá), esta que foi a primeira independência e a primeira abolição de uma escravidão do Novo Mundo (desistindo de contar com a independência dos Estados Unidos, um país completamente diferente no contexto das Américas), foi possível, em primeiro lugar, devido à grande coesão da classe que se sublevou. Césaire comenta que os negros comandados por Toussaint Louverture logo perceberam que nem brancos, nem mulatos e muito menos a tão “libertária” revolução francesa daria importância para eles. Que se quisessem sair da condição em que se encontravam, teriam que consegui-la com as próprias mãos. O elemento surpresa, somado ao imenso número de homens engajados em sua guerra, sua tenacidade, a capacidade estratégica e a grande agilidade de pensamento de seus líderes seriam alguns dos ingredientes para o sucesso da empreitada que, obviamente, não se deu sem percalços e que, além disto, ao se cumprir não trouxe a esperada paz para aquela nação crioula.

Voltando ao tema dos mulatos: o observador ficará estarrecido ao ver que o argumento da cor fará dos mulatos seres petulantes, capazes de se achar superiores a seus antepassados negros e a tratar o branco com toda a reverência, buscando constantemente “fazer parte” daquela sociedade que havia implantado seus projetos (a França) e da que permanecia (os brancos haitianos) em seu país. A depender dos mulatos de Saint Domingue, aquela seria eternamente uma sociedade de costumes brancos com mão de obra negra.

Quando penso nessa história, me é inevitável comparar com o Brasil. A presença dos fatos históricos antilhanos na nossa memória, bem como a de seus mitos, nos foi completamente apagada. No século XIX temia-se uma haitianização do Brasil, uma vez que as revoltas de negros pipocavam pelo país. Imagino que naquele tempo, a repressão ao negro se acirrou em vários cantos. Nosso país, cuja estrutura social é muito mais complexa em muitos sentidos, permanece um país de mulatos que se querem brancos. Precisa citar exemplos? Tenho muitos. Alguns deles têm sido meu lugar de convívio no local de trabalho nos últimos dias. Mas antes que prolongue demais o papo de hoje, deixo aqui apenas esta pérola do Gilberto Freyre, nosso grande historiador, mas também um adepto da estranha brancocracia brasileira:

Todo Brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo ─ há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil ─ a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se declinam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.

(Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933)

Em outras palavras: segundo Freyre, a participação negra e indígena na formação do Brasil se deu apenas através de uma constante subserviência. Amas de leite, mulatinhas que treparam com seus “superiores” brancos desinteressados de sua possível paternidade, pouco se importando com seus filhos vindouros. Pessoas “de cor” com quem tiveram apenas prazeres e nenhuma responsabilidade. Esse “nós”, a quem ele se refere, sendo uma elite com devir branco, ainda que sejam um nós com uma pinta “mongólica ou de jenipapo”. Nenhuma importância é proclamada no aspecto intelectual ou na formação da poiésis brasileira. O que é, no mínimo, um modo de manter através do discurso, e de maneira populista, um status de servidão para quem possa ser identificado na cor negra ou mulata. Não estou negando com isto a importância do Gilberto Freyre.

Sim, por mais que se queira elogiar as belezas da mestiçagem e seus arredores, não dá para negar que o que queremos é uma civilização de brancos que atravessam a rua com medo de uma turma de inofensivos moleques que caminham juntos pela calçada. Um país em que as balas de borracha cegam brancos e daí surge uma grande comoção, mas que as balas de verdade acertam quem é da periferia e essa periferia é negra e ninguém se importa quando esses morrem. Um país que aceita a ideia de que “o cara de bicicleta atropelou o carrão importado do filho do ricaço”. Um país que quer que se dê cotas para negros (não sou contra) para que estes possam finalmente se inserir, mesmo sem os recursos para se manter ali, nos meandros de uma cultura branca, de uma elite que pretende ser branca, independentemente da cor.

Ainda vale dizer, embora eu saiba o quanto isso possa gerar conversas prolongadas, que aqui não se trata de biologia, de questões sanguíneas, mas sim de aspectos culturais e socio-culturais. De convívio de igual para igual. De oportunidades iguais nos grandes e pequenos cargos. Que ninguém negue os valores das ações afirmativas conquistadas e a conquistar, mas que todos saibam que queremos bem mais que isso. Como queriam também os caras da revolução haitiana.

——
Livros consultados:
Césaire, Aimé. Diário de um retorno ao país natal (Cahier d’un retour au pays natal), tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012.
Césaire, Aimé. Toussaint Louverture: La Révolution française et le problème colonial. Paris: Présence Africaine, 1981.
Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933.
James, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.

Beatriz Preciado: Nós dizemos revolução

Beatriz Preciado

Publicado no caderno “Culture” do jornal Libération de 20 de março de 2013, este artigo de Beatriz Preciado continua atual. Faz pensar nas discussões em torno a partidarismos e apartidarismos nas manifestações que ocorrem no Brasil hoje, o massacre que a mídia faz sobre os Black Blocs (nosso talvez Occupy brasileiro) e a incapacidade que a mentalidade política centenária tem para compreender as múltiplas revoluções possíveis nos dias atuais. Para postar aqui, traduzi com uns toques do meu amigo Josaphat Franca Fonseca Neto (que foi também quem me indicou a leitura do texto). Quem quiser ler o original, ele está aqui: www.liberation.fr

*

NÓS DIZEMOS REVOLUÇÃO
Beatriz Preciado

Parece que os gurus da velha Europa colonial estão ultimamente obstinados a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy Indignados, aleijado-trans-bicha-intersexual e pospornô, que nós não poderemos fazer a revolução porque nós não temos uma ideologia. Eles dizem “ideologia” como minha mãe dizia “marido”. Ora, nós não precisamos nem de ideologia nem de marido. Nós as novas feministas não precisamos de marido porque não somos mulheres. Da mesma forma que não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem comunismo nem liberalismo. Nem a ladainha católico-muçulmana-judia. Falamos outra língua. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem domesticar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos “montemos nos cavalos para escaparmos juntos do abatedouro global”. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem inclusão. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, branco-negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos: vocês sabem muito bem que seu aparelho de produção de verdades não funciona mais… De quantos Galileus precisaremos desta vez para reaprendermos a nomear as coisas nós mesmos? Eles nos proporcionam a guerra econômica a golpes de facão digital neoliberal. Mas nós não vamos chorar pelo fim do Estado-providência porque o Estado providência era também o hospital psiquiátrico, o centro de inclusão de deficientes, a prisão, a escola patriarcal-colonial-heterocentrada. É tempo de colocar Foucault na dieta aleijado-queer e escrever a Morte da clínica. É tempo de convidar Marx para um atelier eco-sexual. Nós não vamos encenar o Estado disciplinar contra o mercado neoliberal. Esses dois aí já fizeram um acordo: na nova Europa, o mercado é a única razão governamental, o Estado se torna um braço punitivo cuja única função é a de recriar a ficção da identidade nacional através do medo securitário. Nós não queremos nos definir nem como trabalhadores cognitivos nem como consumidores farmacopornográficos. Não somos Facebook, nem Shell, nem Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não queremos produzir franceses, tampouco produzir europeus. Não queremos produzir. Somos a rede viva descentralizada. Recusamos uma cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução. Queremos uma cidadania total definida pela divisão das técnicas, dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a nova guerra limpa se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é a paz, o afeto total. Eles dizem crise. Nós dizemos revolução.

Poemas com a boca

mallar 02

Na revista Mallarmargens, você lê uma pequena série de poemas meus que reuni sob o título de “Poemas com a boca”. São ao todo 5 poemas. Deles, um é inédito e outro, publicado anteriormente na versão impressa da revista Celuzlose deste ano, ganhou nova versão na Mallarmargens. Os outros três estão no meu livro Use o assento para flutuar, de 2012. Eu poderia comentar algo mais a respeito aqui, mas acho melhor você ir lá e conferir a proposta, o propósito e o tom.

Veja o link: www.mallarmargens.com

Modo de usar & co. #4

Modo de usar e co. #4

Tenho em minhas mãos meu exemplar da revista impressa Modo de usar & co., editada por Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck. A edição, como sempre, está belíssima e conta com a participação de uma turma admirável, dos quais enumero apenas alguns: Omar Khouri, Ricardo Aleixo, Reuben da Cunha Rocha, Edimilson de Almeida Pereira, Juliana Krapp, Jussara Salazar, Fabiano Calixto, Ismar Tirelli Neto, Veronica Stigger, todos com poemas matadores. Isso sem falar nas traduções de Pier Paolo Pasolini, John Cage, Ovidio, Eiríkur Örn Norðdahl, entre outros.

Colaboro neste número com a tradução do poema “Elegia para a Rainha de Sabá”, de Léopold Sédar Senghor. Peça a seu livreiro. Eu já tenho o meu.