Juan Gelman, uma despedida

Foto: Archivo/El Universal (www.eluniversal.com.mx)
Foto: Archivo/El Universal (www.eluniversal.com.mx)

lenços

 

“adeusadeus” dizia/sacudindo seu coração como um lenço/
“adeusadeus” dizia/
na bondade da tarde/desfolhando-se
já quase lento como uma árvore/da vereda de defronte

chegavam-lhe ânsias/desastres/vozes
que o tempo mudou/porque também há sóis e luas
em uma voz/e uma voz pode cair como a noite/
deitar/morrer tremendo de astros/levantar

cheia de sol/e os meninos da vereda de defronte
tinham uma tarde na voz/
a tarde em que ele dizia “adeusadeus” a todo mundo/
aos trens que chegam e aos trens que vão/

adeus ao coração que voa e ao vôo do coração/
adeus à árvore da tarde/
ao tempo desfolhado/
adeus ao menino que passou/

do livro Isso (UnB, 2004)

*

Juan Gelman se foi e eu estou um pouco órfão.

A primeira vez que um livro de Juan Gelman apareceu em minhas mãos foi em 1996, trazido por minha amiga Rosana Vallesillo. Interrupciones II. Os poemas logo me entusiasmaram pelo seu ritmo, pelo surrealismo das imagens, pelo clima de tango e pelo amargo humor. Durante dois anos este livro não saiu da minha vista um instante sequer. Se aprendi a falar espanhol, isso se deve em grande parte a esse livro.

Naquele tempo, na minha roda de amigos, intercambiávamos descobertas de poesia que mais nos agradavam. A poesia de Juan Gelman é uma celebração da amizade. Eu queria compartilhar com eles os poemas que lia, mas como fazê-lo sem traduzir? Se hoje me dedico de alguma maneira à arte da tradução, isso começou com os poemas de Juan Gelman.

Em 1998, o site www.tanto.com.br publicou minha tradução de “sobre a poesia”, poema que se tornou um clássico na minha vida e que sempre recito onde quer que eu vá.

Andityas Soares de Moura frequentava a livraria onde eu trabalhava. Falei para ele que gostava desse poeta e quando ele adquiriu o livro Amor que serena termina, primeira antologia de Juan que tinha acabado de sair pela editora Record, em tradução de Eric Nepomuceno (não me lembro o ano) Gelman se tornou também um dos poetas favoritos do meu amigo. Com Andityas, sempre troquei muita correspondência.

Me lembro muito bem de uma tarde de maio de 2003, quando eu estava na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ao acessar meus emails encontrei uma mensagem do Andityas com o título BUEEEEMMMMMMMBBBBAAAAAA!, onde ele dizia com muito entusiasmo que havia conseguido o endereço eletrônico de Juan Gelman. A partir de então, passamos a nos corresponder com ele. Falávamos de vários assuntos, mostrávamos a ele nossas traduções que ele revisava e discutia conosco.

Uma série de acasos fez com que publicássemos o livro Isso pela UnB em 2004. Um trabalho feito em parceria entre os tradutores e que contou com total apoio linguístico e poético do próprio autor. Celebrávamos uma amizade. Depois da publicação, pouco a pouco a correspondência foi se arrefecendo, mas vez por outra dávamos notícias uns dos outros.

Em 2012, enquanto eu preparava parte da programação do Fliv – Festival Literário de Votuporanga, escrevi para Juan no meu tosco español del plata:

“Hoy por la tarde estuve leyendo en el periódico la bonísima noticia de que venís al Brasil en abril! Esto me ha alegrado mucho. He leído allí que estabas abierto a propuestas para participar de eventos literarios en otras ciudades del Brasil.”

Fiz-lhe o convite para participar do Fliv, ao que ele me respondeu dizendo que não poderia:

“No sé qué diario leíste, pero nunca me propusieron eso y a estas alturas lamentablemente no puedo moverme de Brasilia ni llegar antes del 14 para irme el 20. Siento mucho perder esta oportunidad de conocernos de persona.”

Perguntou se eu continuava escrevendo, ao que lhe respondi que se tivesse deixado os versos, hoje estaria louco.

Ele me responde:

“El Fondo de Cultura Económica acaba de publicar mi obra reunida –que también saldrá en Argentina y España  – pero no puedo dejar de escribir por tus mismas razones, porque el que está enfermo y loco es este mundo.”

Não quis perder a oportunidade de “conocer a Juan de persona”: fui a Brasília. Ao final de sua fala, fui falar com ele. “Oye, por qué no venís en la tardecita y tomamos una taza de café?”, me disse.

Cheguei às 18h. Ele estava hospedado na zona dos hotéis de Brasília, ao lado do eixão. Pedimos ao recepcionista para nos indicar o café do hotel, mas estava fechado. Saímos à rua a procura de um lugar. Mas em Brasília não há esquinas, quanto menos cafés. A não ser em shopings. Caminhamos lentamente até o outro lado do eixão, não sem antes enfrentarmos o estranho trânsito daquela cidade. Não encontrando um café, sentamos num trailer para tomar cerveja e conversamos intensamente durante uma hora, fumamos vários cigarros e fomos abordados por pedintes para os quais ele sorria. Não dava dinheiro, mas oferecia cigarros. Me contou de seus exílios, da saudade dos amigos, falamos de poesia, política e trocamos presentes. Quando falamos do divertido filme El lado oscuro del corazón, que tem em seu roteiro poemas dele, ele me disse: “esa película realizó un sueño mío, que era el de pagar la cuenta del bar con un poema. En Buenos Aires, yo solía preguntar al mesero si yo podía pagar con un poema. Y qué lástima, siempre decía no.”

Tinha um metro e oitenta, olhar triste e sorriso de criança. Não vivia de nostalgias, estava atento às coisas de seu tempo, ao mundo de agora, à vida de agora. Tinha uma alma generosa e gostava de se dedicar aos seus afetos. Por fim, acabou me contando algumas impressões que teve a meu respeito nos tempos em que eu estava em Belo Horizonte e mostrou agudíssima percepção do que eu estava vivendo. Nos despedimos, não nos vimos mais, embora eu tivesse o desejo de me organizar (há vários anos que penso nisso) para fazer uma visita em sua cidade adotada, a Ciudad de México.

Sobre esta experiência de Brasília, escrevi em espanhol o poema “Um par de coisas por dizer”, que aparece em português no meu livro mais recente (que por sinal foi prefaciado por ele).

UN PAR DE COSAS QUE DECIR
para Juan Gelman

que no hay la salud del mundo
que seguiremos cantando aunque
que no hay belleza suficiente
que éste exilio es de aquella parte
que el eje lleva gente de hierro
aunque sea hierro anémico
como la vida la vida enferma
que no nos cuesta querer una vida más limpia
aunque en brasilia no haya esquinas donde
tomar una taza de café
que los aires no estarán más buenos
sin el olor del humo
que la memoria no es quizás
ni tango ni rosa engalanada
o labirinto necesario
sino una caricia de la verdad
aunque sea verdad que sea mentira
habría un par de cosas sí
un par de cosas que decir
que seguiremos diciendo

*

Juan foi um personagem importante para a história do mundo. Sua luta pela memória dos desaparecidos durante as ditaduras militares foi muito mais que poesia. Ao encontrar os restos mortais do filho, morto num campo de concentração do Uruguai, não se deu por satisfeito. Mais tarde, encontrou também sua neta, Macarena Gelman e a luta nunca cessou, mesmo assim. Havia ainda mais gente, muito mais gente a ser encontrada.

Como jornalista, fazia o que a maioria da imprensa não faz: investigava e contava sobre as tramas recônditas dos que humilham e ofendem o mundo. Dizia o que ninguém tem coragem de dizer e tratava isso com seriedade. Um pouco dos seus textos jornalísticos podem ser lidos no seu blog www.juangelman.net.

Sua poesia extremamente multifacetada, tinha uma imensa pluralidade de vozes. Vozes por dentro e por fora. Boas para a recitação, dizia o que os ninguéns diriam. Experimentava muito. Criava personas, se reinventava linguisticamente. Se nos anos 1960 buscava o linguajar do tango, o lunfardo e o porteñol (como no livro Gotán), nos anos 1970, fazia incursões nas entranhas da língua. Seu livro Citas y Comentarios trazia recriações de Santa Teresa de Ávila  e San Juan de la Cruz. Outro livro do gênero é Com/posições, que o Andityas traduziu e publicou pela Crisálida. Mas foram as experimentações de Dibaxu que me intimaram a buscar também, em minha própria poesia, as entranhas ocultas da língua brasileira. A poesia dele trazia essa mesma ambiguidade de sua pessoa: escrita de ternura extrema no lugar onde deveríamos encontrar o ódio e o desespero. Uma escrita de violência e calma juntas, sem nunca cair no hermetismo vazio, na falta ou na aparente falta do que dizer.

Embora tenha morrido aos 83 anos, eu tinha a impressão de que ainda viveria muitos anos. Mas a morte não marca dia. Pessoas que me conhecem, quando souberam da notícia, vieram carinhosamente me dizer que ele, certamente, estará em lugar melhor neste momento. Talvez seja egoísta dizer isso, mas a presença de Juan no planeta nos mantinha (a nós que queremos “una vida más limpia que esta”) um pouco protegidos da mentira e do esquecimento.

Hoje, sem Juan, nossa responsabilidade aumenta imensamente. Que os deuses o recebam como merece. O homem que se foi não era apenas um. E teremos que ser inúmeros por ele. Talvez sim, talvez ele esteja em lugar melhor. Mas nós não.

***
Abaixo, mais 3 poemas do livro Isso, porque não há meio melhor de lembrá-lo e prestar-lhe homenagens:
somos

e como é isso que encurva?/
avança o tempo pelas têmporas?/
aqui sangram ao sol
da injustiça/mismamente/

e logo/que pouquinho/
sede que encova estas paredes/
tanta dor/tanta dor/
e já me calo/já

venha/irmãozinho/são seus cavalinhos/
e tudo o que pensam/
e como ficam bonitos
quando falam ao contrário/

*
o pássaro

alma/você ergue seu sonhar?/maldito pelos
que sofreram por sonhar?/e te espancam
para que se cale?/e
dizem que está equivocada?/que

não venha com seus sonhos?/
que há dor suficiente?/que olhe o
pássaro que tranqüilo cruza o céu?/
bota seu ovo no esquecimento?/

*

mundo

da rosa que amo/como cuidarei?/
não lhe faço mal?/
não a estrago?/
não lhe corto os pés?/

e este acabar?/este estar
como não estar?/e como ir-se
de ti/rosa?/
ajuntar a dor ao já sido?/

não entristecer-te a bondade/
que no mais dos dias se queima?/
e nada?/e tudo?/e mesmo nunca?/
e que não chores?/

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