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um poema de paul verlaine

circunspecção

dá tua mão, não respira, senta aqui, à
sombra desta árvore onde morre a brisa
aos suspiros da copa cor de cinza
que o lívido luar acaricia.

imóveis, baixemos a mirada pia
sem pensar, sonhemos. deixemos à guisa
do amor e da alegria que amenizam
e em nossa cabeça a coruja pia

para quê esperar? discreta e contida
que nossas almas prossigam
essa calma e essa serena morte solar

silêncio, em meio à paz noturna:
não é bom vir em seu sono atrapalhar
a natureza, essa deusa feroz e taciturna.

(tradução livre leve e solta: leo gonçalves)

o limpador de chaminés

na neve um ponto negro vai
chorando ‘arre ‘arre em tom de ai!
onde seu pai & sua mãe hão de estar?
eles foram para a igreja rezar.

porque alegre as urzes me mostro,
e sorrio sob a neve que cai:
me vestiram as vestes da morte,
e me ensinaram o canto em tom de ai.

e porque alegre cantei & dancei
eles pensam que não me ferem:
e vão louvar a deus & seu padre & o rei
que criam um céu da nossa miséria.

é um poema de william blake que traduzi em parceria com o mário alves coutinho em “canções da inocência e experiência” (veja a capa aí do lado). em destaque, os dois versos que mais combinam com a minha revolta neste instante. tão brasil.

um poema de william burroughs

dia de ação de graças, 28 de novembro de 1986

agradeço pelo peru selvagem e os pombos passageiros, destinados a virar merda nas saudáveis tripas americanas.

agradeço por um continente a espoliar e envenenar.

agradeço pelos índios por garantirem uma módica dose de desafio e perigo.

agradeço pelas vastas manadas de bisões para matar e depelar e depois deixar as suas carcaças à putrefação.

agradeço pelos troféus de caça de lobos e coiotes.

agradeço pelo sonho americano, por inventar lorotas até que elas brilhem à luz do dia.

agradeço pela klu klux klan. aos policiais que matam negros e os contabilizam. às decentes beatas de igreja com suas mesquinhas, interesseiras, feias e perversas caras.

agradeço pelos adesivos de “mate uma bicha em nome de jesus cristo.

agradeço pela aids de laboratório.

agradeço pela proibição e pela guerra contra as drogas.

agradeço por um país onde a ninguém é permitido cuidar da seus próprios problemas.

agradeço por uma nação de dedos-duros.

agradeço, sim, todas as lembranças – ok, deixa eu ver o que você tem nas mãos!

você foi sempre uma dor de cabeça e uma encheção de saco.

agradeço pela última e maior traição do último e maior sonho dos sonhos humanos.

(tradução de leo gonçalves)

deixo o original (Thanksgiving Day Nov. 28, 1986) no vídeo de gus van sant

what can i hold you with? (um poema inglês de jorge luis borges)

de que modo eu posso te abraçar?
eu te ofereço estreitas ruas, poentes desesperados, a lua dos subúrbios gastos.
eu te ofereço a amargura de um homem que olhou longamente a lua solitária.
eu te ofereço meus ancestrais, meus mortos, os fantasmas que os vivos honraram em mármore: o pai do meu pai assassinado na fronteira de buenos aires, duas balas atravessadas nos pulmões, barbado e morto carregado por seus soldados no couro de uma vaca; o avô de minha mãe – com apenas vinte e quatro anos – encabeçando uma carga de trezentos homens no peru, agora fantasmas sobre desvanecidos cavalos.
eu te ofereço qualquer insight que possa haver em meus livros, qualquer hombridade ou humor na minha vida.

eu te ofereço a lealdade de um homem que nunca foi leal.

eu te ofereço o cerne de mim mesmo que achei de certo modo – o coração central que não aposta em palavras, que não trafega com sonhos e é intocado pelo tempo, pela alegria, pelas adversidades.
eu te ofereço a memória de uma rosa amarela vista ao pôr-do-sol, anos antes de você nascer.
eu te ofereço explanações sobre você mesma, teorias sobre você mesma, notícias autênticas e surpreendentes sobre você mesma.
eu posso te dar a minha solidão, a minha escuridão, a fome do meu coração; estou tentando subornar-te com incertitude, com perigo, com derrota.

(tradução: leo gonçalves)

o borges é um sujeito muito raro. melhor conhecido como prosador, foi também um grande poeta – um marco da lingua castelhana, grande influência de gerações e gerações na literatura argentina. e não só: também produziu bons ensaios sobre o tema, sendo que hoje, um poeta interessado em se aprimorar conceitualmente sobre sua arte perde muito se não tiver acesso às essas reflexões. por outro lado, sua posição conservadora se refletia em sua produção. isso não o impediu de ser um dos mais transgressores artistas do século xx. curioso é que como poeta, a preferência é por uma forma mais tradicional (quem se interessar, publiquei aqui no salamalandro há algum tempo um soneto dele chamado “swedenborg”). voltando de diamantina, tive o desejo de ler poemas dele. qual não foi a surpresa ao encontrar este poema que me parece esteticamente “selvagem”, apaixonado e racional ao mesmo tempo. e escrito em inglês! quando eu gosto tanto de um poema assim, fico emocionado e preciso “lê-lo melhor”. e “ler melhor” significa traduzir. não quis pôr o original aqui porque o blogspot não oferece muito bons recursos na formatação do poema e com esta trabalheira já basta o poema em português. mas quem quiser conhecer o original (é sem dúvida muito mais bonito que a tradução), é só clicar aqui: www.primrose.com/borges

A carta do vidente Rimbaud

Rimbaud

“EU é um outro. Se o cobre amanhece clarim, não é culpa dele. Isso para mim é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento. Eu a olho eu a escuto: meu arco toca a corda: a sinfonia se agita nas profundezas, ou vem de um salto em meio à cena.”

“O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o conhecimento de si mesmo, inteiro; ele busca sua alma, ele a observa, tenta, aprende (instrui). A partir do momento que ele a conhece, ele deve cultivá-la; isso parece simples: em todo cérebro se cumpre um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; há também outros que atribuem a si mesmos seus progressos intelectuais!”

“O poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele exaure em si mesmo todos os venenos, para então guardar apenas as quintessências. Inefável tortura na qual necessita de toda a fé, toda a força sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo sábio! – pois ele chega ao desconhecido! uma vez que ele cultivou sua alma, já rico, mais que todos! Ele chega ao desconhecido, e quando, enlouquecido, ele acabaria por perder a inteligência de suas visões, ele as viu! Que ele estoure em seu sobressalto pelas coisas inaudíveis e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!”

Lá pelos idos de 2005, em meio às conspirações do grupoPOESIAhoje, nós alunos de Maurício Salles Vasconcelos (autor de Rimbaud na América e outras iluminações (Estação Liberdade, 2000) falávamos muito de Jean Arthur Rimbaud. Pensávamos, citando o autor de Une saison en enfer na parafernalização dos sentidos e nem sequer tínhamos lido McLuhan. Procurávamos pela “Carta do vidente”, famosa carta escrita a Paul Démeny e na época era difícil encontrá-la em português. Resolvi traduzir.

Quem quiser lê-la na íntegra, é só clicar aqui.

aimé césaire

aimé césaire é um dos mais interessantes poetas vivos pelo mundo afora. foi ele que, ao lado de léopold sédar senghor, encabeçou o movimento da negritude no final dos anos 30. aliás, foi ele quem cunhou este termo que passou a ser usado em toda manifestação de afirmação dos negros ao ponto de perder a força original (césaire queria tirar a palavra de sua condição pejorativa e usá-la ao favor de uma cultura: a cultura das “folhas que resistem ao vento”. em outras palavras: transformar o tabu em totem.)

assim como seu camarada, césaire é uma das melhores cabeças que surgiram no século xx.

na última segunda-feira, dia 25 de junho, ele comemorou seus 94 anos. infelizmente, não o conheço pessoalmente ainda, mas me senti privilegiado em ser contemporâneo dele.

deixo aqui a minha homenagem: a tradução de um poema recente, publicado em um livro chamado “moi, laminaire”. saravá césaire (que significa ave caesar)!


palavra-macumba

a palavra é mãe dos santos
a palavra é pai dos santos
com a palavra serpente é possível atravessar um rio
povoado de jacarés
me acontece desenhar uma palavra no chão
com uma palavra fresca pode-se atravessar o deserto
de um dia
existem palavras remo para afastar tubarão
existem palavras iguana
existem palavras sutis essas são palavras bicho-pau
existem palavras de sombra com despertadores em cólera faiscante
existem palavras Xangô
me acontece de nadar malandro nas costas de uma palavra golfinho

mot macumba
le mot est père des saints/le mot est mère des saints/avec le mot couresse on peut traverser un fleuve/peuplé de caïmans/il m’arrive de dessiner un mot sur le sol/avec un mot frais on peut traverser le désert/d’une journée/il y a des mots bâtons-de-nage pour écarter les squales/il y a des mots iguanes/il y a des mots subtils ce sont des mots phasmes/il y a des mots d’ombre avec des réveils en colère d’étincelles/il y a des mots Shango/il m’arrive de nager de ruse sur le dos d’un mot dauphin

um poema de juan gelman

sobre a poesia

haveria um par de coisas por dizer/
que não é muito lida por ninguém/
que esses ninguém são poucos/
que estão todos preocupados com a crise mundial/ e

com o assunto de comer a cada dia/ trata-se
de um assunto importante/ me lembro
quando tio juan morreu de fome/
dizia que nem se lembrava de comer e que para ele não tinha problema/

problema veio foi depois/
é que não havia dinheiro para comprar caixão/
e quando finalmente o caminhão municipal passou para levá-lo/
tio juan parecia um passarinho/

o pessoal do municipal olhou para ele com desprezo ou com desdém/ murmuravam
que eram sempre incomodados/
que eram homens e enterravam homens/ e não
passarinhos como tio juan/ especialmente

porque o tio foi cantando piu piu a viagem inteira até o crematório municipal/
e sentiram-se desrespeitados e estavam muito ofendidos/
e quando davam-lhe um tapinha para calar a boca/
o piu piu voava pela cabine do caminhão e eles sentiam que ouviam um piu piu na cabeça/ tio

juan era assim/ adorava cantar/
e não via por que não cantar depois de morto/
foi para o forno cantando piu piu/ as cinzas saíram e ainda deram uns pios/
os companheiros do municipal se deram com os sapatos cinzentos de vergonha/ bem mas

voltando à poesia/
agora os poetas passam muita dificuldade/
não são muito lidos por ninguém/ esses ninguém são poucos/
o ofício perdeu prestígio/ para o poeta está cada dia mais difícil

conseguir o amor de uma menina
ser candidato a presidente/ ser patrocinado por um mecenas/
que um guerreiro faça façanhas para que ele as cante/
que um rei lhe pague cada verso com três moedas de ouro/

e não se sabe se é porque acabaram as mulatas/ os mecenas os guerreiros/ os reis/
ou simplesmente os poetas/
ou foram as duas coisas e é inútil
quebrar a cabeça com uma coisa dessas/

bonito é saber que a gente pode cantar piu piu
nas horas mais estranhas/
tio juan depois de morto/ eu agora
para você gostar de mim/

Esta tradução foi publicada pela primeira vez em 1998 no www.tanto.com.br. O poema faz parte do livro hacia el sur. no vídeo, o original na voz do autor.

um poema de juan gelman

outras partes

juan gelman

¿ouviste/ coração?/ vamos
com a derrota a outra parte/
com este animal a outra parte/
os mortos a outra parte/

que não façam ruído/ calados como estão/ nem
se ouça o silêncio de seus ossos/
seus ossos são animaizinhos de olhos azuis/
sentam-se mansos à mesa/

roçam dores sem querer/
não dizem uma só palavra de seus balaços/
têm uma estrela de ouro e uma lua na boca/
aparecem na boca dos que amaram/

passam notícias de seus sonhos/
arrastam suas lágrimas com uma toalhinha atrás como que varrendo o padecer/
como que não querendo molhá-lo/
para que o padecer estale e arda e faça assento aonde se sentar e pensar outra vez/

vamos/ coração/ a outro canto/
é ruim que não possas tirar os pés da tristeza/
embora seja tristeza que beija a mão que empunhou o fuzil e triunfou/
e tem coração e guarda em seu coração uma mulher e um homem passando como tigres pelo céu do sul/

uma mulher e um homem como tigres enjaulados na memória do sul/
beijando filhinhos que nunca mais irão crescer/
companheiros que nunca mais vão crescer a agora cosem
a terra ao ar/ cosem teu coração/ coração/ seus animais/

vamos com esta cadela a outra parte/
não temos direito de incomodar/
nosso único direito é começar outra vez
sob a luz do sol sereno/

os limites do céu mudaram
agora estão cheios de corpos que se abraçam
e dão abrigo e consolo e tristeza
com uma estrela de ouro e uma lua na boca/

com um animal na boca olhando o cintilar
dos companheirinhos que semearam coração
e levantam seu coração ardente
como uma aldeia de beijos/

(tradução: leo gonçalves)

olha aí o original:

otras partes

¿oíste/ corazón?/ nos vamos
con la derrota a otra parte/
con este animal a otra parte/
los muertos a otra parte/

que no hagan ruido/ callados como están/ ni
se oiga el silencio de sus huesos/
sus huesos son animalitos de ojos azules/
se sientan mansos a la mesa/

rozan dolores sin querer/
no dicen una sola palabra de sus balazos/
tienen una estrella de oro y una luna en la boca/
aparecen en la boca de los que amaron/

pasan noticias de sus sueños/
arrastran sus lágrimas con un pañuelito detrás como barriendo el padecer/
como no queriendo mojarlo/
para que el padecer estalle y arda y haga asiento donde sentarse a pensar otra vez/

nos vamos/ corazón/ a otra parte/
hace mal que no podrás sacar los pies de la tristeza/
aunque es tristeza que besa la mano que empuñó el fusil y triunfó/
y tiene corazón y guarda en su corazón una mujer y un hombre pasando como tigres por el cielo del sur/

una mujer y un hombre como tigres enjaulados en la memoria del sur/
besando hijitos que nunca más van a crecer y ahora cosen
la tierra al aire/ cosen tu corazón/ corazón/ sus animales/

vámonos con esta perra a otra parte/
no tenemos derecho a molestar/
nuestro solo derecho es empezar otra vez
bajo la luz del sol sereno/

los límites del cielo cambiaron/
ahora están llenos de cuerpos que se abrazan
y dan abrigo y consolación y tristeza
con una estrella de oro y una luna en la boca/

con un animal en la boca mirando el centellear
de los compañeritos que sembraron corazón
y levantan su corazón ardiente
como un pueblo de besos/

leo gonçalves e juan gelman na unipac

no próximo sábado, dia 16 de junho, estarei na unipac de congonhas, a convite das professoras juliana leal e karla cipreste, para uma conferência-leitura da e sobre a poesia de juan gelman. aproveito para começar a desenvolver uma proposta que venho pensando de unir uma performance poética a uma apresentação conceitual da poesia. vamos ver no que dá.

exílio

aqui/palavra que foi cão

pela cavala que dizia/
já não há nada a fazer/
está a luz/que tanta sombra fez/

por isso você dói tanto/
beleza?/me bate
como se fosse seu irmãozinho?/
boca de seu arrabalde?/

o que é você?/quem é você?/diga-me um pouco?/
já não será daqui quando nos fomos/
nem me deixa tirar a mão
do fogo de não ser/

(do livro isso. unb, 2004)