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um poema de william blake

o sorriso

há um sorriso que é de amor
e há um sorriso de maldade,
e há um sorriso de sorrisos
onde os dois sorrisos têm parte.

e há uma careta que é de ódio,
e há uma careta de desdém
e há um careta de caretas
que te esforças pra esquecê-la bem,

pois ela fere o coração no cerne
e finca fundo na espinha dorsal
não um sorriso que seja inédito
mas único sorriso solitário.

e entre o berço e o túmulo
somente uma vez se sorri assim;
e uma vez havendo sorrido
todas as misérias têm seu fim.

(tradução livre leve e tosca: leo gonçalves)

o limpador de chaminés

na neve um ponto negro vai
chorando ‘arre ‘arre em tom de ai!
onde seu pai & sua mãe hão de estar?
eles foram para a igreja rezar.

porque alegre as urzes me mostro,
e sorrio sob a neve que cai:
me vestiram as vestes da morte,
e me ensinaram o canto em tom de ai.

e porque alegre cantei & dancei
eles pensam que não me ferem:
e vão louvar a deus & seu padre & o rei
que criam um céu da nossa miséria.

é um poema de william blake que traduzi em parceria com o mário alves coutinho em “canções da inocência e experiência” (veja a capa aí do lado). em destaque, os dois versos que mais combinam com a minha revolta neste instante. tão brasil.

revista etcetera #19 já está no ar

está no ar a revista etcetera#19. belíssima como sempre, traz artigos, poemas, contos e entrevistas sempre de ótima qualidade. para acessá-la, o endereço é www.revistaetcetera.com.br. em outros números, o salamalandro colaborou com poemas. desta vez, tem o artigo “william blake hoje”. mas a revista traz muito mais: artigo sobre o “new journalism”, entevista com o cineasta sérgio bianchi e mais e mais.

Sobre tigres, lobos e cordeiros

Marcelo Coelho

Folha de S.Paulo, 22 de junho de 2005

Indicações de livros são sempre coisa arriscada; a rigor, só deveriam ser feitas a amigos próximos, a pessoas cujos interesses conhecemos bem. Mas quem atualmente se decepciona com o governo, quem já está decepcionado há tempo e quem nunca teve ilusão nenhuma a esse propósito talvez tire proveito de um pequeno e clássico livro de poemas de William Blake (1757-1827) que, pela primeira vez, é traduzido na íntegra para o português.

Trata-se de “Canções da Inocência e da Experiência”, livro lançado neste ano pela editora Crisálida, de Belo Horizonte, com tradução de Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves.

Alguns poemas de Blake estão presentes em todas as antologias da literatura inglesa. São simples de ler, difíceis de entender e quase impossíveis de traduzir: é o caso de “O Tigre”, texto hipnótico, obsessivo, que parece perseguir o seu leitor.

“Tyger Tyger, burning bright,/ In the forests of the night;/What immortal hand or eye,/Could frame thy fearful symmetry?” A estrofe inicial se repete no fim, como que “enjaulando” o poema, e as traduções não conseguem domá-lo completamente. “Tigre, tigre, flamante fulgor/ Nas florestas de denso negror,/Que olho imortal, que mão poderia/ Te moldar a feroz simetria?” – assim era a tradução de Paulo Vizioli, numa coletânea publicada há 20 anos.

Mário Coutinho e Leonardo Gonçalves mantêm a exótica ortografia do original e buscam seguir o ritmo de tambor na selva: “Tygre, Tygre, fogo ativo,/ Nas florestas da noite vivo;/ Que olho imortal tramaria/ Tua temível simetria?”.

Melhor; ainda assim, parece mais fácil entender “in the forests of the night” em inglês mesmo, do que acompanhar a pirueta do “nas florestas da noite vivo”…

O poema, em todo caso, continua encadeando suas perguntas: “Que profundezas, que céus,/ Acendem os olhos teus? (…) Que martelo? Que elo? Tua mente/ Vem de qual fornalha ardente?”. Em inglês: “In what distant deeps or skies,/Burnt the fire of thine eyes? (…) What the hammer? what the chain,/ In what furnace was thy brain?”.

As seis estrofes repetem a mesma inquietação: de onde vem, quem criou, quem forjou esse animal terrível? O tom de ameaça culmina numa última questão: “Did he who made the Lamb make thee?” (“Quem te fez, fez também o Cordeiro?”, traduz Paulo Vizioli).

O clima de terror romântico, a concisão e a eletricidade de alguns versos tornam “O Tigre” um poema inesquecível. Mas, de minha parte, sempre me pareceu que havia algo de inconvincente, não sei se de exagerado, de sensacionalista, naquilo tudo… Talvez porque um tigre não me pareça o animal mais terrível, mais demoníaco de toda a criação. A beleza do felino depõe, a meu ver, bastante a favor do Pai Celeste – que talvez não estivesse tão inspirado quando fez o cordeiro. De qualquer modo, um poema sobre o lobo, ou o chacal, talvez funcionasse melhor… Preferências zoológicas à parte, para mim é como se o poema de Blake estivesse tentando dizer uma “outra coisa” que não se revela; sua simplicidade não se entrega, parece fechar-se em si mesma.

Mas “O Tigre” pertence à segunda parte do livro – as “Canções da Experiência”. Daí a vantagem da edição completa: é que na primeira parte, as “Canções da Inocência”, pode-se ler o poema que faz par com esse. Trata-se, é claro, de “O Cordeiro” e imita a mais boboca e fofinha canção de ninar que alguém possa querer: “Cordeirinho, quem te fez?/ Pois tu sabes quem te fez?/ Deu-te a vida e deu-te pasto,/ Ribeirinho e largo prado;/ Lã macia e sem malícia (…)”.

Em inglês, chama a atenção a mesma rima em “ight”, que era tão sinistra no caso do tigre: “Little Lamb who made thee/Dost thou know who made thee/ Gave thee life & bid the feed,/ By the stream & o’er the mead; /Gave thee clothing of delight/ Softest clothing wooly bright (…)”.

Com esta edição bilíngüe, o leitor pode então apreciar o paralelismo, as simetrias entre os poemas da primeira parte e os da segunda. Nas “Canções da Inocência”, lemos versos otimistas sobre um limpadorzinho de chaminés que cumpre, feliz, o seu dever e vai para o Céu. Nas “Canções da Experiência”, a realidade é bem outra. O prefácio de Mário Coutinho e Leonardo Gonçalves acrescenta informações importantes sobre aquele ofício, uma das mais horríveis modalidades de trabalho infantil inventadas pelo homem. Só crianças muito pequenas, é claro, podiam entrar nas chaminés para limpá-las; “seus joelhos e cotovelos, usados para subir, sangravam e ficavam em carne viva”.

Blake, dizem os prefaciadores, foi sempre considerado um místico, um louco, um ingênuo pelos seus contemporâneos. Há, aliás, uma frase linda da sra. Blake a respeito dele: “Convivo muito pouco com meu marido. Ele está sempre no Paraíso”. Gonçalves e Coutinho ressaltam a exatidão convicta com que o poeta denunciava os horrores do capitalismo inglês. Citam, por fim, o crítico Northrop Frye, para quem Blake pode ser lido em qualquer época e parecerá sempre estar se referindo às questões da atualidade.

Questões da atualidade? Não gosto de pensar que a velha “inocência” petista deu lugar à “experiência” destes dias de Delúbio e Marcos Valério. Seria nobilitar, como feitos de maturidade política, os entendimentos estarrecedores do partido com o fisiologismo. Não é também “maturidade”, entretanto, o que se elogia quando Palocci e sua equipe recebem o assentimento do mercado? Quem fez Delúbio não fez Palocci?

Mas o poema de Blake, com seus cordeiros e tigres, não me parece vir tão a propósito agora quanto a frase de outro poeta, Paul Valéry: um lobo, diz ele, nada mais é que um cordeiro assimilado.