Nunca fui muito chegado a árvores genealógicas. Trabalhei vários anos em livrarias. Do lado de trás do balcão, ouvi muita gente maluca dizer que estava recompondo a lista de seus ancestrais. Lembro-me de uma senhora que procurava um livro de heráldica. Ela queria ter um modelo do brasão da família, que tinha suas orígens alem-mar e que teria chegado dos portos portugueses em grandes caravelas. Não me lembro bem o sobrenome, deve ser algo como “silva” ou “andrade”, sei lá. Eu olhava a tudo com um suspeitoso interesse e ela me perguntou: “você já fez a sua árvore genealógica?” ao que respondi: “não há muito o que procurar”. Depois de saber que o meu sobrenome era Gonçalves ela me disse a queima-roupa: “você certamente é de origem espanhola, com esses traços árabes… procure saber”.
Sempre me pareceu, então, que as pessoas interessadas nesse tipo de genealogia estavam mesmo é procurando um jeito de levantar a auto-estima, adivinhando supostos ancestrais ilustres que corroborassem a existência moral dos que aqui estão. E, é claro, para que isso acontecesse, o antepassado deveria forçosamente vir da europa ou quando muito um árabe ou um judeu. Indígenas não. Nem africanos, que só servem pra sujar o sangue da família. Ou seja: o que eu iria procurar?
Mas recentemente, motivado por minhas leituras em torno a questões étnico-raciais, resolvi escarafunchar. O objetivo é tentar chegar o mais perto possível do que teria sido a minha origem biológica. Filhos de quais povos teriam se unido para chegar até isso que sou? Comecei a pesquisa de modo simples: entrevistando meus pais. Em seguida, pretendo entrevistar outras pessoas da família e depois ir às cidades onde nasceram alguns dos nossos antepassados em busca de documentos, matrículas, registros de nascimentos e de aquisição de escravos, notícias de imprensa, coisas que apontem para alguma informação mais clara.
Já tenho alguns apontamentos: meu avô paterno, Vitalino Francelino Gonçalves, nasceu em Santo Antônio do Monte, Minas Gerais. Reza a lenda que era neto de índios. Mas não sabemos de qual etnia eram e nem se a informação é verdadeira. De qualquer forma, flagro o velho lá em Abaeté (cidade natal de meu pai) sobrevivendo, em meio a diversas atividades do campo, de seu artesanato em cambaúba (chapéus, peneiras) e de seus pilões talhados em toros de madeira – objetos necessários à vida cotidiana naquela época e lugar, mas que não eram fabricados por qualqueres. O sobrenome, Gonçalves, meu avô herdara de seu pai, Egydio Francelino Gonçalves, mas não de seu avô, que se chamava Manoel Domingos Francelino. Fica então a pergunta: de onde teria saído o Gonçalves? Não se sabe. Aquela heráldica senhora que me desculpe, mas não foi da Espanha. E a julgar que meu tataratataravô era de fato indígena, nem mesmo o Francelino parece ter nascido com a família.
De acordo com a certidão de casamento, meu avô era filho legítimo, mas minha avó, Jacinta Maria de Jesus, era uma filha “natural” (ou seja, sem pai) de Josefa Maria de Jesus – uma negra nascida uns dois ou três anos depois da lei do ventre livre e crescida na fazenda dos Melosos, município de Abaeté. Minha avó, aliás, também nasceu ali, No ano de 1905. Seu pai, um branco, chamava-se Lino Leite. Meu pai, que conheceu dona Josefa quando ela já estava no final da vida, certa vez perguntou-lhe em que ano ela tinha nascido e ela disse que não sabia, pois tinha perdido o batistério. Porém respondeu: “tenho 76 anos”. estava em 1950. Meu pai conta também que ela ajudava a mãe em seus trabalhos enquanto esta era ainda escrava.
No lado materno também tenho algumas informações ainda bem vagas: tanto meu avô quanto minha avó eram filhos de mãe negra e pai branco. Os pais de meu avô não eram casados. Os de minha avó, eram. Minha avó era da família Carmo, vinda da cidade de Moeda. Mas os bisavôs, os homens daquela geração não tiveram um papel muito marcante na construção da unidade familiar. O papel deles parece ter sido o de reprodutores. Meu avô materno faleceu no ano em que nasci. Os velhos, pais dos meus avós, não tomaram conhecimento de que de seus cromossomos nascia um tipo de família com fortes características africanas e indígenas, com a convivência constante de pais, tios, primos, irmãos, cunhados e cunhadas. Famílias matriarcais. Matriarcas que eles fizeram questão de esquecer. E nisso eles foram muito bem correspondidos, pois sabe-se muito pouco a respeito deles.
São esses os primeiros apontamentos para a minha genealogia. Nada de herói fundador. Nada de mito familiar. No fundo, sou um descendente de pessoas de parcas finanças, e muitos trabalhos. Como a maioria dos brasileiros. Tristealegres, provavelmente. Nascidos no país da utopia. O paraíso perdido entre as montanhas.
Mas como eu disse, o trabalho está só no começo. Vejamos até onde consigo chegar. Vejamos de qual povo banto sou herdeiro. Será mesmo banto? Será que descobrirei qual língua meus antepassados canibais falavam?
Enquanto não tenho a resposta, fico com a imagem da velha Josefa, uma senhora com um semblante bem velho, alta e gorda, uma saia comprida e rodada, badalando feito um sino aos movimentos de subida e descida de quem chega andando de muito longe. Josefa aparece no horizonte de uma antiga roça com casa de pau-a-pique enquanto um bando de crianças gritam alegres depois de avistá-la: “evem Vó Izefa!”