Da palavra macumba ao Poemacumba

 

Palavra com destino diverso e adverso é esta palavra “macumba”.

Remanescente, como muitas, do vocabulário dos africanos trazidos para o lado de cá do Atlântico, de origem banto, com possíveis etimologias em quimbundo, umbundo e quicongo. É palavra de múltiplos significados, sobreviventes e desesperados, em meio às confusas corruptelas que a fala conseguiu salvar sob as chibatadas, as mordaças e a opinião alheia.

No dia a dia, ela é usada com dupla conotação. Por um lado, ela é a oferenda colocada nos locais próprios dos cultos religiosos pertencentes. Encruzilhadas, cemitérios, beiras de estrada, nascentes, cachoeiras. Na faceta pejorativa, não de todo descolada desta primeira, significa feitiço, prodígio para fazer o mal a uma determinada pessoa ou grupo de pessoas. É daí que vem o “chuta que é macumba”, expressão em voga nos dias de hoje. Supõe-se que a pessoa, ao se deparar com a oferenda, poderá ser atingida pelo sortilégio. E chutar é uma forma de tentar desfazê-lo.

O Novo dicionário Banto do Brasil de Nei Lopes, é uma importante leitura para quem se interessa pela filologia da língua brasileira. Convencido de que as matrizes da língua não estão somente na península ibérica, ele levanta diversas fontes para a etimologia de palavras insuspeitas. “Cara”, por exemplo, esta palavra que usamos como vocativo masculino, “o cara”, teria origem no vocábulo quimbundo “okala”, que significa homem. Plausível. Por isso mesmo, o dicionarista Houaiss aproveitou diversas acepções de Nei Lopes em seu monumental Dicionário da Língua Portuguesa.

Nele, podemos encontrar diversas possíveis etimologias para esta palavra macumba. Segundo Lopes, para alguns ela vem de dikumba, precedida do prefixo “ma”, que em algumas línguas banto é marca de plural. Dikumba quer dizer cadeado, fechadura, referindo-se à cerimônia de fechamento de corpos, mas também ao segredo presente nessas religiões de iniciação. Quem “chuta que é macumba”, está chutando algo que não conhece e não compreende. Chuta-se o segredo. Muitas vezes por medo de ser o destinatário do feitiço, mas também por ignorar absolutamente que os destinatários da maioria das oferendas são as próprias divindades. Uma farofa, pipoca e cachaça podem ser oferendas para Exu, o deus mensageiro. Milho é oferenda para Oxossi ou para Oxum. Acarajé é muito apreciada por Iansã. Amalá, um prato com inhame, é, conforme se diz, “comida de Xangô”. São as “Comidas de santo”. E isso não é segredo.

Mas Nei Lopes opina que a palavra macumba vem mesmo é de kumba, feiticeiro (palavra também quimbunda), com adição do mesmo prefixo plural. Sendo assim, não está errado quem diz que macumba é feitiço. Um respeitado pai de santo me disse que feitiço não existe. Mas conheço gente que já fez. Feitiço existe e não existe. Boas intenções existem. Más também. Acredita-se mais nas más do que nas boas? Feitiço é como o diabo do Guimarães Rosa, “vige é dentro da gente”. Todas as culturas, crenças e povos, sejam eles ciganos, celtas, iorubas, egípcios, núbios, indianos, guaranis, sempre souberam disto.

Relativizadores, na tentativa de purificar a impressão geral sobre as religiões de matriz africana, querem fazer que a palavra designe um instrumento musical parecido com o reco-reco (já vi quem dissesse também que o tal instrumento é uma espécie de tambor feito com a madeira de uma árvore específica). Se continuarmos seguindo a orientação de Nei Lopes, veremos que essa acepção está ligada a uma outra palavra do quimbundo: mukumbu, som.

Há lugares em que macumba é a filha-de-santo, as pessoas que praticam a religião. “Fulana, macumba do terreiro tal”. Nesse caso, sempre seguindo Nei Lopes, macumba seria proveniente do umbundo. Nesta língua, kumba é “família morando dentro do mesmo cercado” e também “conjunto de domésticos, serviçais e escravos”. Nesta mesma acepção, o falante brasileiro está habituado a dizer que fulano “é macumbeiro”, ou seja: fulano é da umbanda ou do candomblé.

Essas são as etimologias apresentadas no admirável Dicionário de Nei Lopes. Entre os simpatizantes e praticantes dos cultos ancestrais (candomblé, umbanda e suas variantes), macumba significa (simples e afetivamente) terreiro, ou seja, o local onde são feitos os rituais e também a sua prática.

Mas palavras têm seus próprios usos, independente da explicação que dermos e da sua etimologia. E aquelas de origem africana, especialmente as ligadas a seus cultos originais, possuem mesmo esse dom de dubiedade e são fácil alvo de preconceito para o maniqueísmo ocidental. Macumba não é a única. Muito já se falou, por exemplo, do pré-juízo que assola o nome do já citado orixá mensageiro, peça chave do panteão iorubá, Exu, identificado com o diabo no imaginário cristianizado. E, mais parecida com macumba, tem aquela que entrou negativamente para o vocabulário afroestadunidense e que passou para o Brasil com o mesmo enxurro (para usar uma palavra de Waly Salomão): voodoo, vodu, vodum.

Vodu é palavra de origem fon. Em candomblés brasileiros (conhecidos como Nação Jeje) e caribenhos, ela significa o mesmo que Orixá e Nkisi (Inquice, segundo a grafia mais aportuguesada). As práticas vodus são atividade central em países como o Haiti, a Martinica e outros lugares nas Antilhas e no Benin. Passaram para os Estados Unidos num período de migração antilhana para lá. Esse mesmo povo inseriu palavras novas no inglês estadunidense. Uma delas é Zombie. A prática vodu é, por exemplo, tema do filme Coração satânico (veja que aí já há o preconceito). É que a visível intolerância religiosa norte americana associa os vodus ao mal e à crendice de que vodu é o bonequinho usado com fins maléficos, cópia mágica de um corpo para feri-lo a distância. Mas cabe perguntar: tal prática fetichista existe? Sim. Assim como em outras culturas não ocidentais, existe o desejo de se fazer o bem ou o mal a uma pessoa que está distante. Mas toda e qualquer interpretação que eu tenha encontrado disso vem do olhar ocidental racionalista e generalizante, com total desdém pela cosmologia desses povos.

Foto: Layza Vasconcelos
Foto: Layza Vasconcelos

Entre 2011 e 2012, eu e a dançarina Kanzelumuka concebemos a ideia de um espetáculo de dança e voz intitulado Poemacumba. Apresentamos um primeiro esboço em novembro de 2011 na Casa das Rosas, num evento organizado por José Geraldo Neres e depois estreamos na Funarte, em 2012. Daí por diante, circulamos um pouco. Nos apresentamos em Londrina, Belo Horizonte e Goiânia. Nesse espetáculo, saudamos em corpo e palavra os Nkisis, ou seja, as divindades do panteão banto. Bombongira, Nkosi, Matamba, Kitembo, Kaviungo, Mutacalambô, Lemba e outros, são invocados e convocados pela minha fala e ritualizados em forma de dança por Kanzelumuka.

Quando me perguntam a qual das acepções estou me referindo no Poemacumba, respondo em primeiro lugar que se até os sacerdotes estão certos da inefetividade das intenções maléficas do candomblé, que direi eu que só encontrei valores éticos e muita alegria entre seus praticantes desde que comecei a ter contato com a religião em 2005.

Mas também digo que a ninguém é dado o direito de dar às palavras um sentido fechado. As palavras e seus efeitos nos precedem. Elas vieram antes de nós. Num poema, não posso dizer que estou falando isto em detrimento daquilo. O feitiço do poema é justamente este: permitir às palavras toda a pluralidade, toda a reverberação que elas guardam dentro de si. Elas podem até não significar absolutamente nada, mas todas têm uma importante função no búzio do poema. A poesia não é justamente essa magia de não querer controlar o incontrolável, mas vibrar com ele?

Na ontologia banto (e aqui faço referência ao admirável trabalho do Reverendo Tempels, que publicou em neerlandês o livro de nome A filosofia bantu), o cerne do mundo, o motor das ações humanas, é a força (ngunzu). E tudo o que há no mundo aponta para essa força, essa potência. E não seria justamente o ngunzu (energia vital, segundo a macumba) a força a que almeja todo e qualquer poema?

É função da arte retirar as coisas do lugar. Assuste-se quem for de se assustar. No Poemacumba, a corp-oralização das palavras é o eixo para a experiência-poema. A voz como veículo, o corpo como encantamento. A oralidade como linguagem corporal, o corpo como manifestejo, afeto, exaltação da beleza. A poesia (incorporação) como lugar de força. Ngunzu. Fala-feitiço. Daí que se a palavra macumba assusta a alguns, tanto melhor.

*

Em tempo: há um belo poema de Aimé Césaire exatamente com esse título: “mot macumba”, que traduzi como “palavra macumba”. Você o lê clicando aqui.

2 pensou em “Da palavra macumba ao Poemacumba

  1. Como disse o pensador de Tártu, o russo Iuri Lotmam “Cultura é memória”
    A cultura é uma inteligência coletiva e uma memória coletiva, isto é, um mecanismo supra-individual de conservação e transmissão de certos comunicados (textos) e da elaboração de outros novos. Assim que a memória comum (com seus textos comuns)possa ser sempre conservada e atualizada.
    Que essa poesia corp-oralizada esteja sempre imbricada nas nossas móveis tramas culturais, nas nossas micro-macrorrelações com a cultura, codificada, recodificada em novos e múltiplos signos.
    Deixo aqui uma dica para ampliar a conversa sobre Vodus. A quem interessar, assistir o documentário “ATLÂNTICO NEGRO: NA ROTA DOS ORIXÁS, do roteirista Victor Leonardi.
    Leo, adorei o texto e vida longa ao Poemacumba.
    Com um grande abraço, Lia Testa

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