Transatlântico musicado

Alguns de meus poemas têm uma função mágica para mim. Como se sua existência e sua vocalização fossem capazes de me proporcionar, a mim, seu autor e a quem quer que se aproprie dele, uma espécie de cura. Assim é para mim este poema “Transatlântico”, que aparece no meu mais recente livro, o Use o assento para flutuar.

É um poema em ritmo de mar. De tal forma que quer transformar o monossílabo mar em ação, em verbo infinitivo e suas conjugações. Que são vento, léu, deriva. Principalmente deriva. A deriva para a qual topei me entregar e que me levou, apesar de todos os reveses da vida, e que me permitiu conhecer tantos lugares, tanta poesia e, principalmente, tanta gente incrível.

Foi numa dessas derivas, perambulando por Paraty que conheci a linda cantora Elizabeth Woolley. Nos encantamos rapidamente um pelo outro. Logo, a deriva do poema também a encontrou e ela, uma mulher marinha, com sua voz de onda, musicou este que eu pensava ser um poema imusicável.

Em pouco tempo, Elizabeth, a Guzzi, como chamam seus amigos mais próximos, se tornou imprescindível para mim e agora somos parceiros com esta, outra e outras músicas que ainda virão.

Agradeço a ela por tornar real para mim o sonho da música. Estamos juntos na deriva-mundo.

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Elizabeth Woolley é uma alma em busca dos próprios sons. Filha do contrabaixista Pete Woolley, irmã da pianista Louise Woolley, ela compõe, canta, toca violão e piano e emociona o público com bossas, jazz e outros ritmos que ela mistura em sua própria música. Se lançou como intérprete no disco Guzzi e como compositora nos discos Infindável e o infantil Urubububu.

Atualmente, ela desenvolve o projeto “Cartas de amor”, musicando poema de autores diversos, principalmente mulheres (tenho orgulho de estar entre elas com este “Transatlântico”). As canções são arranjadas por ela e seus amigos que se reúnem de tempos em tempos para gravar ao vivo. As filmagens, gravações e edições são realizadas por Flávio Tsusumi e em seguida deixadas no youtube.

Para saber mais sobre ela, vá para o site www.elizabethwoolley.com

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Transatlântico (Elizabeth Woolley/Leo Gonçalves)

Voz : Elizabeth Woolley.
Poema falado: Leo Gonçalves.
Guitarra e Arranjo: Michel Leme.
Baixo Acústico: Bruno Migotto.
Percussão (Cajón): Rodrigo Digão Braz.
Vídeo, áudio e edição: Flávio Tsusumi.

Consciências negras

Mulatos – uma história haitiana

Agostino Brunias

“Haiti onde a negritude pôs-se de pé pela
primeira vez e disse que acreditava na sua humanidade”

Aimé Césaire
Diário de um retorno ao país natal

O surgimento da Ilha de Saint Domingue, assim como da maioria das antilhas, coincide com a história do cultivo da cana-de-açúcar no novo mundo. A ocupação europeia se deu a partir de 1492, quando Cristóvao Colombo, recém chegado, deu-lhe o nome de Hispaniola. Seus primeiros habitantes, o povo Arauaque, foi completamente dizimado e expulso pelos espanhóis que a colonizaram e que mais tarde tiveram que dividir aquele território com os franceses. O cultivo da cana-de-açúcar começa no século XVII e inaugura naquele país uma sociedade nova, cruel, abusiva. Fazendeiros brancos franceses que administram enormes plantations com mão de obra negra. Enormes contingentes de africanos trazidos continuamente ao longo daqueles dois séculos. Ao que parece, sua maioria era proveniente do golfo do Benin, Angola, Congo e noroeste da África.

Em meados do século XVIII, aquela sociedade já havia se tornado um tanto mais complexa: dirigida por uma aristocracia branca enraizada mas que se considerava francesa, atendendo sempre aos comandos do rei da França que sempre enviava pessoas para fiscalizar os rendimentos. Não é preciso ser muito imaginativo para saber que tal aristocracia não era nada amena, nada gentil e que se sentia no direito de cometer as maiores atrocidades. Seja entre eles mesmos. Maiores ainda em relação aos seus objetos, os negros, que eram torturados, estuprados, dilacerados em praça pública para servir de exemplo e para manutenção do poder.

Além desses, com o encontro das raças, surgem também os novíssimos filhos de Saint Domingue: os mulatos. Estes não se reconheciam como brancos, mas eram filhos deles e por isso conviviam em situação especial. Não se viam como negros, embora não renegassem suas mães. Mas sentiam superiores a eles. Em idade apropriada, muitos eram enviados para a França onde estudavam em pé de igualdade com os aristocratas franceses do continente. No continente, a discriminação de cor era menor, não apenas porque estava na moda entre as cortesãs o uso de perucas crespas. Se engajavam no exército francês, ganhavam conhecimentos de fidalguia e, como tinham boas relações, se sentiam “superiores” a seus progenitores negros. De volta à ilha, produziam um modo de vida mais focado que o de seus pais brancos. Adquiriam fazendas. Produziam uma vida, na medida do possível, “honesta”, ganhavam reconhecimento e simpatia. Também possuíam escravos negros, mas não os tratavam tão mal. Depois da Revolução Francesa, ainda, alguns deles ganhariam seus representantes no congresso e defenderiam interesses haitianos. Mesmo assim: eram escravocratas e não desejavam de maneira alguma a mudança desse fato.

Sim: as classes sociais eram assim: brancos (aristocracia), mulatos (uma espécie de classe média ou burguesia) e negros (em sua maioria escravos, mas um ou outro possuindo liberdade e seu pedacinho de terra).

É nesse contexto socio-cultural que a ilha deu origem à primeira independência latino-americana, liderada por homens negros de quem jamais se esperava que tivessem forças suficientes para sobrepor o jugo em que estavam metidos. Especialmente porque antes, os brancos haviam tentado dar um golpe (que foi rapidamente sufocado pela coroa) e os mulatos tentaram também sem sucesso realizar a sua revolução.

Esses são os relatos de dois grandes historiadores antilhanos: Aimé Césaire (o poeta martinicano) e C. L. R. James (nascido em Trinidad) em seus livros Toussaint Louverture – La Révolution française et le problème colonial (Paris: Présence Africaine, 1981) e Os Jacobinos Negros: Toussaint Louverture e a revolução de São Domingos (São Paulo: Boitempo, 2000), respectivamente.

Segundo eles, a revolução que transformou o país de Saint Domingue em Haiti (ou Ayiti, conforme grafam os crioulofalantes de lá), esta que foi a primeira independência e a primeira abolição de uma escravidão do Novo Mundo (desistindo de contar com a independência dos Estados Unidos, um país completamente diferente no contexto das Américas), foi possível, em primeiro lugar, devido à grande coesão da classe que se sublevou. Césaire comenta que os negros comandados por Toussaint Louverture logo perceberam que nem brancos, nem mulatos e muito menos a tão “libertária” revolução francesa daria importância para eles. Que se quisessem sair da condição em que se encontravam, teriam que consegui-la com as próprias mãos. O elemento surpresa, somado ao imenso número de homens engajados em sua guerra, sua tenacidade, a capacidade estratégica e a grande agilidade de pensamento de seus líderes seriam alguns dos ingredientes para o sucesso da empreitada que, obviamente, não se deu sem percalços e que, além disto, ao se cumprir não trouxe a esperada paz para aquela nação crioula.

Voltando ao tema dos mulatos: o observador ficará estarrecido ao ver que o argumento da cor fará dos mulatos seres petulantes, capazes de se achar superiores a seus antepassados negros e a tratar o branco com toda a reverência, buscando constantemente “fazer parte” daquela sociedade que havia implantado seus projetos (a França) e da que permanecia (os brancos haitianos) em seu país. A depender dos mulatos de Saint Domingue, aquela seria eternamente uma sociedade de costumes brancos com mão de obra negra.

Quando penso nessa história, me é inevitável comparar com o Brasil. A presença dos fatos históricos antilhanos na nossa memória, bem como a de seus mitos, nos foi completamente apagada. No século XIX temia-se uma haitianização do Brasil, uma vez que as revoltas de negros pipocavam pelo país. Imagino que naquele tempo, a repressão ao negro se acirrou em vários cantos. Nosso país, cuja estrutura social é muito mais complexa em muitos sentidos, permanece um país de mulatos que se querem brancos. Precisa citar exemplos? Tenho muitos. Alguns deles têm sido meu lugar de convívio no local de trabalho nos últimos dias. Mas antes que prolongue demais o papo de hoje, deixo aqui apenas esta pérola do Gilberto Freyre, nosso grande historiador, mas também um adepto da estranha brancocracia brasileira:

Todo Brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo ─ há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil ─ a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se declinam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.

(Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933)

Em outras palavras: segundo Freyre, a participação negra e indígena na formação do Brasil se deu apenas através de uma constante subserviência. Amas de leite, mulatinhas que treparam com seus “superiores” brancos desinteressados de sua possível paternidade, pouco se importando com seus filhos vindouros. Pessoas “de cor” com quem tiveram apenas prazeres e nenhuma responsabilidade. Esse “nós”, a quem ele se refere, sendo uma elite com devir branco, ainda que sejam um nós com uma pinta “mongólica ou de jenipapo”. Nenhuma importância é proclamada no aspecto intelectual ou na formação da poiésis brasileira. O que é, no mínimo, um modo de manter através do discurso, e de maneira populista, um status de servidão para quem possa ser identificado na cor negra ou mulata. Não estou negando com isto a importância do Gilberto Freyre.

Sim, por mais que se queira elogiar as belezas da mestiçagem e seus arredores, não dá para negar que o que queremos é uma civilização de brancos que atravessam a rua com medo de uma turma de inofensivos moleques que caminham juntos pela calçada. Um país em que as balas de borracha cegam brancos e daí surge uma grande comoção, mas que as balas de verdade acertam quem é da periferia e essa periferia é negra e ninguém se importa quando esses morrem. Um país que aceita a ideia de que “o cara de bicicleta atropelou o carrão importado do filho do ricaço”. Um país que quer que se dê cotas para negros (não sou contra) para que estes possam finalmente se inserir, mesmo sem os recursos para se manter ali, nos meandros de uma cultura branca, de uma elite que pretende ser branca, independentemente da cor.

Ainda vale dizer, embora eu saiba o quanto isso possa gerar conversas prolongadas, que aqui não se trata de biologia, de questões sanguíneas, mas sim de aspectos culturais e socio-culturais. De convívio de igual para igual. De oportunidades iguais nos grandes e pequenos cargos. Que ninguém negue os valores das ações afirmativas conquistadas e a conquistar, mas que todos saibam que queremos bem mais que isso. Como queriam também os caras da revolução haitiana.

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Livros consultados:
Césaire, Aimé. Diário de um retorno ao país natal (Cahier d’un retour au pays natal), tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012.
Césaire, Aimé. Toussaint Louverture: La Révolution française et le problème colonial. Paris: Présence Africaine, 1981.
Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933.
James, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.

Beatriz Preciado: Nós dizemos revolução

Beatriz Preciado

Publicado no caderno “Culture” do jornal Libération de 20 de março de 2013, este artigo de Beatriz Preciado continua atual. Faz pensar nas discussões em torno a partidarismos e apartidarismos nas manifestações que ocorrem no Brasil hoje, o massacre que a mídia faz sobre os Black Blocs (nosso talvez Occupy brasileiro) e a incapacidade que a mentalidade política centenária tem para compreender as múltiplas revoluções possíveis nos dias atuais. Para postar aqui, traduzi com uns toques do meu amigo Josaphat Franca Fonseca Neto (que foi também quem me indicou a leitura do texto). Quem quiser ler o original, ele está aqui: www.liberation.fr

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NÓS DIZEMOS REVOLUÇÃO
Beatriz Preciado

Parece que os gurus da velha Europa colonial estão ultimamente obstinados a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy Indignados, aleijado-trans-bicha-intersexual e pospornô, que nós não poderemos fazer a revolução porque nós não temos uma ideologia. Eles dizem “ideologia” como minha mãe dizia “marido”. Ora, nós não precisamos nem de ideologia nem de marido. Nós as novas feministas não precisamos de marido porque não somos mulheres. Da mesma forma que não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem comunismo nem liberalismo. Nem a ladainha católico-muçulmana-judia. Falamos outra língua. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem domesticar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos “montemos nos cavalos para escaparmos juntos do abatedouro global”. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem inclusão. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, branco-negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos: vocês sabem muito bem que seu aparelho de produção de verdades não funciona mais… De quantos Galileus precisaremos desta vez para reaprendermos a nomear as coisas nós mesmos? Eles nos proporcionam a guerra econômica a golpes de facão digital neoliberal. Mas nós não vamos chorar pelo fim do Estado-providência porque o Estado providência era também o hospital psiquiátrico, o centro de inclusão de deficientes, a prisão, a escola patriarcal-colonial-heterocentrada. É tempo de colocar Foucault na dieta aleijado-queer e escrever a Morte da clínica. É tempo de convidar Marx para um atelier eco-sexual. Nós não vamos encenar o Estado disciplinar contra o mercado neoliberal. Esses dois aí já fizeram um acordo: na nova Europa, o mercado é a única razão governamental, o Estado se torna um braço punitivo cuja única função é a de recriar a ficção da identidade nacional através do medo securitário. Nós não queremos nos definir nem como trabalhadores cognitivos nem como consumidores farmacopornográficos. Não somos Facebook, nem Shell, nem Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não queremos produzir franceses, tampouco produzir europeus. Não queremos produzir. Somos a rede viva descentralizada. Recusamos uma cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução. Queremos uma cidadania total definida pela divisão das técnicas, dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a nova guerra limpa se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é a paz, o afeto total. Eles dizem crise. Nós dizemos revolução.

Poemas com a boca

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Na revista Mallarmargens, você lê uma pequena série de poemas meus que reuni sob o título de “Poemas com a boca”. São ao todo 5 poemas. Deles, um é inédito e outro, publicado anteriormente na versão impressa da revista Celuzlose deste ano, ganhou nova versão na Mallarmargens. Os outros três estão no meu livro Use o assento para flutuar, de 2012. Eu poderia comentar algo mais a respeito aqui, mas acho melhor você ir lá e conferir a proposta, o propósito e o tom.

Veja o link: www.mallarmargens.com

Modo de usar & co. #4

Modo de usar e co. #4

Tenho em minhas mãos meu exemplar da revista impressa Modo de usar & co., editada por Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck. A edição, como sempre, está belíssima e conta com a participação de uma turma admirável, dos quais enumero apenas alguns: Omar Khouri, Ricardo Aleixo, Reuben da Cunha Rocha, Edimilson de Almeida Pereira, Juliana Krapp, Jussara Salazar, Fabiano Calixto, Ismar Tirelli Neto, Veronica Stigger, todos com poemas matadores. Isso sem falar nas traduções de Pier Paolo Pasolini, John Cage, Ovidio, Eiríkur Örn Norðdahl, entre outros.

Colaboro neste número com a tradução do poema “Elegia para a Rainha de Sabá”, de Léopold Sédar Senghor. Peça a seu livreiro. Eu já tenho o meu.

Poesia em tempos de marketing

O poeta Charles Baudelaire, viciado em fluoxetina.
O poeta Charles Baudelaire, viciado em fluoxetina nos dias de hoje.

Poesia azucrina. Um poeta deve acreditar no que faz até as últimas consequências. Poetas querem ser reconhecidos antes mesmo de escrever os poemas. Os poemas não serão lidos. Não serão comentados. Não ganharão likes. Não serão favoritados. Não ganharão o Jabuti. Não concorrerão ao prêmio Portugal Telecom. Os poetas não serão convidados a participar da Frankfurt Buchmesse. Na Flip, os poetas poderão comprar ingressos a cinquenta reais para assistir às mesas de debate. Os assuntos discutidos lá serão todos irrelevantes ou quase. O tema que o poeta defende até os ossos não passará nem perto dos assuntos criados pelos organizadores de seu festival literário preferido. Tudo porque não foi o poeta-que-defende-suas-ideias-até-as-vísceras que organizou e, ainda que fosse, o projeto passaria por um grupo tão grande de burocratas e marqueteiros que, ao chegar à forma final, estaria tudo dilapidado.

O poeta só apita sobre seu próprio texto. Quando seu livro for para uma editora, corre o risco de ser tesourado pelo assistente editorial. Se não souber defender suas ideias até o miolo, o texto publicado será uma cópia da cópia da cópia da cópia de terceiro grau do mundo das ideias do seu autor. Ao ser publicado, o poeta também, salvo em casos honrosos (e em muitos, horrorosos), não palpitará no design gráfico. Poderá apenas apreciar ou depreciar. Alguns editores até podem ouvir seus terríveis protestos, revoltado que está com a capa nada a ver. Mas o voto ou o veto na hora de fechar o livro é do editor. Uma escolha que, aliás, estará limitada às limitações técnicas e estéticas do diagramador e seus acordos com a editora.

O melhor vendedor de um livro de poemas é o próprio autor. Isso não quer dizer que, ao fazer o marketing pessoal, ele vá ganhar uma legião de fãs. James Joyce foi um fracasso. Quando estava para ganhar reconhecimento, morreu. Kafka não publicou seus próprios livros e, no leito de morte, pediu para queimá-los. Dava tempo. Fernando Pessoa só viu um de seus livros impresso. Mensagem é um grande livro, mas não o seu melhor. Nem o mais popular. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, sua frase mais célebre, é citada todos os dias fora de contexto. Deixou de ser verso pra virar chavão de autoajuda. A alma teve que deixar o Pessoa antes que os autônimos e heterônimos dele passassem a ser os mais lidos, citados, adorados e psicografados da língua portuguesa.

Bons escritores são odiados pelos críticos e o público não os entende. Ser amigo de poetas não faz um poeta poeta. Imitar as fórmulas dos outros, citar autores conhecidos, perambular entre escritores, ser coisa pública na república das letras não garante qualidade. Qualidade não é poesia, poesia não é qualidade. Reconhecimento não possibilita bons poemas, por mais que a alma não seja pequena. Poetas precisam é de dinheiro. Reconhecimento vem com o tempo. Mas o tempo não gosta de poemas ruins. Nem quem não defende o poema até a espinha dorsal. Se for um soneteiro sonolento, se for um rimador de meia tigela, se seu plano é agradar o leitor, ele não sairá nunca da mediocridade. Talvez seja melhor ser medíocre. O público gosta de mediocridades. Twilight sempre existiu e sempre fez sucesso em todos os tempos.

Um bom poema azucrina. Quem quiser gostar que goste. Quem não gostar, que se desgaste. Pound fazia uma analogia com a ciência: o pesquisador neófito aprende o conhecimento que chegou até ele antes de se arrogar um descobridor. Quando o novo chega, apenas um pequeno grupo é capaz de compreender. O restante da turba sabe apenas execrar. Freud foi execrado. Galileu foi pra forca. Acharam que Einstein era um baleleiro. Só depois é que suas ideias se tornaram unanimidades. Poetas inventam o mundo – o seu próprio mundo. Caos e cosmos se agregam e desagregam num poema. É destruindo que se constrói. Poetas precisam de bons psicólogos, mas estes precisam ser mais inteligentes que aqueles, o que pode não ser muito fácil de achar. O que é original incomoda, ninguém entende. O psicólogo pode querer destruir a originalidade do poeta. Poetas mentem muito. Baudelaire hoje estaria viciado em Fluoxetina.

Se o poeta quer, tem que insistir. Defender com unhas e dentes, jogar pedra se for preciso. Pixar se for preciso. Encher o saco. O esforço pelo poema não vale a pena. Não vale um centavo. Não vale uma menção no jornal. Nem nos classificados. Não vale uma tuitada. Não dá prestígio. Talvez uma meia dúzia de bombons e nada mais. Tentar lucrar com isso te matará de fome. Poemas assassinam, agridem, desumanizam o autor. O poema é ingrato. Do poema só sai poesia. Só isso. Nada mais. Divirta-se com poesia. Ou desista.

Crimes charmosos, simpáticos & deliciosos do Monsieur Tristan Tzara

Tristan_tzara

«« os pixadores são os únicos artistas contemporâneos (além dos hackers e skatistas) q mantêm a posição de criminosos (…) «« pixo transmídia «« futurismo da imaginação arcaica

Reuben da Cunha Rocha e Tazio Zambi

A Randomia é uma revista psicotrópica, tudo cuidado nos mínimos detalhes, subversão pulsante e atenta a todo seu poder de vandalismo. A lista do novo número é foda, com direito a revelações e descascadas, desempoeiramentos de armas letais e coisas quetais. José Roberto Aguilar, N. H. Pritchard, Rosaire Appel, Kodwo Eshun, José Irion Neto, Edgardo Antonio Vigo, Nicanor Parra, Violeta Cenzi, Niko Vassilakis e seus tradutores. Colaboro com a tradução de alguns dos crimes charmosos, simpáticos & deliciosos do senhor Tristan Tzara, o papá do dadá. Leia lá:

http://www.randomia.com.br/

Antes da criação do mundo e notícias de minha mãe

Yeats

Dois poemas de W. B. Yeats que falam da passagem do tempo, espécie de carpe diem às avessas. “Antes da criação do mundo” é a voz de uma mulher que se embeleza, não porque seja vaidosa, mas porque vive em busca do arquirrosto, da arquibeleza, da imagem mítica de si mesma, como quem buscasse a língua original da comunicação olho-no-olho. Sua amargura (“E se ao olhar um homem/Ainda que seja meu amado,/Meu sangue se congela/E meu peito fica estagnado?”), lembra um pouco a impenetrabilidade das femmes-fatales tão caras à geração simbolista, especialmente as que aparecem em poetas como Swinburne e Pierre Louÿs. Algo lá no fundo, os ovidianos “medicamina faciei femineae”, talvez, dizem: o tempo há de seguir em frente, mas continuarei buscando aquela que fui “antes da criação do mundo”.

A “well-beloved” do poeta é a vítima dos consoladores de rapina que chegam para dizer que não há problema em ver que a juventude aos poucos desaparece no seu rosto, ao que o poeta protesta. A fascinação daquilo que é difícil, tema de um outro poema de Yeats, também parece atuar aqui. O rosto da mulher amada se faz mais belo com o passar do tempo, diz o coração do poeta. O tempo só faz o belo mais belo.

Esses dois poemas que eu e Clarice Goulart traduzimos (nossa primeira parceria, preparem-se que aí vêm muitas outras!), ganharam morada apropriadíssima num site chamado “Musa rara”. Afinal, não seriam musas raras essas mulheres de Yeats?

Em tempo: participei na semana passada do Menu de Poesia, sarau que acontece no CCSP a cada mês organizado por Maria Alice Vasconcelos. Na abertura do evento, ouvimos em grande deleite o texto do Edson Cruz (editor do Musa Rara) sobre sua afroascendência afirmativa. Frases como “Sim, os argumentos que livram o negro das armadilhas do discurso colonial podem se constituir em uma nova forma de idealização do negro”, ou “Sim, as expressões “escritor negro”, “literatura negra” ou “literatura afro-brasileira” podem rotular e aprisionar mais ainda, mas instauraram e ainda instauram um debate necessário e urgente”, ou ainda “Sim, o opositor não é o brasileiro branco, mas o brasileiro preconceituoso”, ficaram ecoando em minha mente nos dias seguintes. Fico feliz que ele tenha decidido tornar públicas num sentido mais amplo as palavras que ele proferiu.

Leia os dois poemas de William Butler Yeats aqui:
http://www.musarara.com.br/antes-da-criacao-do-mundo

E o texto “Afroascendente afirmativo” de Edson Cruz aqui:
http://www.musarara.com.br/afroascendente-afirmativo

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Na Modo de Usar e Co.
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Aproveitando este segundo tema, na semana passada apareceu na franquia virtual da revista Modo de Usar e Co., mais um poema congolês traduzido por mim. Desta vez, se trata de “Notícias de minha mãe” (Nouvelles de ma mère) de Jean-Baptiste Tati Loutard.

Para lê-lo, é no:
www.revistamododeusar.blogspot.com.br