você acredita que new york teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da terra se não se trabalhasse para wall street de ribeirão preto a cingapura, de manaus à libéria?
oswald de andrade
há algum tempo, a peça “o rei da vela” do oswald de andrade me espreita da prateleira. já a conhecia de vista. sabia passagens praticamente de cór. já tinha visto cenas bem e mal interpretadas. mas nunca tinha lido na íntegra. não tenho vergonha de dizer que não li ainda alguns dos livros mais indicados e indicáveis. talvez algum dia eu os leia. fazer o quê?
“o rei da vela” me espreitava lá da prateleira da estante. resolvi encará-lo. e me surpreendi. é uma das coisas mais interessantes que já li. uma radiografia do brasil e das relações inter-sociais que rolam aqui, escrita em 1933. extremamente atual.
uma peça de teatro engraçada não é necessariamente uma peça de humor. o humor aceita a fantasia. faz rir através da imaginação. a piadinha. o lugar comum. a maioria das “comédias” que se assistem hoje são peças de humor. ironia é diferente. você joga com o real. escancara as entranhas, as feridas do discurso. se as aparências enganam, a ironia caçoa das aparências. e o rei da vela é assim.
publicada em 1937, a peça teve sua primeira apresentação apenas em 1967, com a montagem revolucionária do grupo oficina – um marco na história do teatro brasileiro. como diz o próprio zé celso martinez corrêa: “em 1967 a terra estava em transe”. demorou algumas décadas para que a sociedade brasileira pudesse aprender a deglutir uma obra desse tamanho. e ainda assim, fez escândalo. acho que ainda hoje ela choca. mas para falar a verdade, pouca coisa em arte é capaz de causar algum escândalo, convenhamos.
depois da montagem do oficina, não soube de outra que tivesse tamanha importância. zé celso, ao longo dos anos 70, filmou a sua montagem e a transformou numa das muitas películas censuradas da época da ditadura militar.
numa entrevista dada à revista folhetim, também, zé celso dá notícia de uma montagem que rolou no carandiru pelos próprios presos, que incorporaram, ou seja, deglutiram a peça na realidade deles. acredito ter sido igualmente interessante. mas esta, a mídia não noticia.
é lamentável, mas vejo pouquíssimos grupos de teatro no brasil capazes de montar uma peça como esta. grande parte dos atores ainda precisa aprender lições super básicas de prosódia. o brasil, sendo um país de cultura oral, mal conhece a técnica de oralizar um texto escrito. fica tudo muito decoradinho, lido demais, com uma emoção falsa. mesmo assim, tomara que ela volte a ser montada por algum grupo. este é um texto que não podia ser esquecido.
segundo o autor, esta é uma peça escrita num momento de desconsolo e de crise (logo após a crise de 1929). ele mesmo, nascido numa família cafeeira, estava indo à bancarrota, com muitas dificuldades financeiras. por isso, ele tenta expor ali as tristezas de viver num país-monstro, que apesar das belezas e riquezas naturais, maltrata os próprios filhos.
segue algumas pérolas colhidas na peça:
não confunda, seu abelardo! família é uma coisa distinta. prole é de proletário. a família requer a propriedade e vice-versa. quem não tem propriedades, deve ter prole. para trabalhar, os filhos são a fortuna do pobre…
“para nós, homens adiantados que só conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país medieval como o nosso!”
só se pode prosperar à custa de muita desgraça. mas de muita mesmo…
“pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa logo assim… entrando num acordo com a propriedade…”
– não pratica a literatura de ficção?
– no brasil isso não dá nada!
– sim, a de fricção é que rende.
“imagine se vocês que escrevem fossem independentes! seria o dilúvio! a subversão total. o dinheiro só é útil nas mãos de quem não tem talento. vocês escritores, artistas, precisam ser mantidos pela sociedade na mais dura e permanente miséria! para servirem como bons lacaios, obedientes e prestimosos. é a vossa função social!”
o dono da grana: qual é a sua cor política nestes agitados dias de debate social?
o intelectual: eu tenho uma posição intermediária, neutra… não me meto.
o dono da grana: neutra! é incompreensível! é inadmissível! ninguém é neutro no mundo atual. ou se serve os debaixo…
o intelectual: mas com que roupa?
o dono da grana: sirva então francamente os de cima. mas não é só com biografias neutras… precisamos de lacaios…
“as crianças que choram em casa, as mulheres lamentosas, fracas, famintas são a nossa arma! só com a miséria eles passarão a nosso inteiro e dedicado serviço! e teremos louvores, palmas e garantias. ”
…
ola Leo gostei muito do seu blog e gostaria de pedir um favor se vc tem alguma adaptaçao ou a peça mesmo do rei da vela de osvalde de andrade ,se tiver teria com vc mandar para o meu email
obigada
Olá Shirlene,
Não tenho o livro. Em todo caso, você pode adquiri-lo bem baratinho, vale a pena. No site da Estante virtual, encontrei um exemplar de capa dura que custa apenas R$ 10,
Boa sorte.