Um filme precursor, de Nelson Pereira dos Santos, rodado em 1971. Talvez o primeiro a trazer para as telas uma visão renovada da “antropofagia” de Oswald de Andrade. Relata a história de um homem que, tendo chegado ao Brasil na frota do viajante Villegagnon, acaba ficando por aqui. O francês é capturado por um grupo de tupinambás que pretende comê-lo. Porém, durante a preparação da carne, acaba passando um longo tempo junto à tribo, o que o leva a adotar hábitos dos indígenas. O filme é falado em tupi e francês (obedecendo às origens de cada personagem), mas há alguma passagem em português lusitano.
O filme foi proibido em sua época pela ditadura militar e conseguiu a licença em seguida com o argumento de que nudez de índio não é pornografia. Mas a liberação, só com censura 18 anos.
Com uma visão irônico-crítica dos relatos dos europeus que vinham para as praias brasileiras, afastado dos tiques típicos da arte partidária, procurando uma visão o menos caricatural possível do indígena brasileiro, o filme evidencia, contudo o olhar do estrangeiro que chega por aqui. O que faz com que o diferente, o “primitivo” se torne elemento de intolerância, irritação e chacota por parte de quem se quer “civilizado”.
Uma vez inserido na cultura brasileira, o estrangeiro acaba por se dissolver nela. Não sem uma certa paixão que chega a ser erótica e romântica. “Só a antropofagia nos une”, repetiria a indiazinha com quem o francês se amasia. E logo, é feita a divisão das partes, do francês: “o braço é para o irmão do cacique, o outro para o guerreiro mais forte, o pescoço é da amante…” e assim por diante. O jovem (que não chega a possuir um nome, no filme) quer levá-la de volta para a Europa. Ela se recusa. “Só a antropofagia nos une”. O pescoço já está prometido.
Recentemente, surgiu na cena cinematográfica uma nova onda: a de filmes falados em línguas mortas ou esquecidas. O filme “Desmundo”, outro filme excelente (dirigido por alain fresnot e baseado no romance homônimo de Ana Miranda) tenta reproduzir, depois de profundos estudos lingüísticos, o português da época de Pero Vaz de Caminha (isso sem falar dos filmes recentes de Mel Gibson, os paranóicos “Apocalypto”, falado na língua Maia, e “Paixão”, em hebraico, aramaico e latim).
Certa vez ouvi do senegalês Hamidou Sall uma citação de Césaire que era mais ou menos assim: “Há duas maneiras de se perder no mundo: uma é se diluindo na universalidade, a outra se dissolvendo no seu próprio íntimo”. A antropofagia, um modo de pensar incompreensível para europeus supercivilizados, é um modo de não se deixar dissolver, mas assimilar o outro em si mesmo. A existência deste filme é um alívio. Acredito cada vez mais que a antropofagia não foi suficientemente aproveitada pelo brasileiro que se sente ansioso por uma certa originalidade impossível.
Em tempos de globalização, a tendência de sermos engolidos por culturas hegemônicas é muito forte. Por outro lado, o brasileiro, que sempre quis ansiosamente ser “o outro”, preferencialmente um sujeito civilizado e civilizante, pensar o nosso lado selvagem é de extrema urgência. Especialmente sabendo que temos hoje cerca de 170 línguas faladas além do português no território nacional e que há muito mais quilombos escondidos do que se supunha. Pensar a antropofagia hoje, significa descobrirmos como olhar para dentro. Uma antropofagia como autofagia ou como rememoração desavergonhada de nossos hábitos canibais.
O filme agora pode ser visto no youtube. A cópia digital não está muito boa, mas dá para curtir.
ameiiii! serviu para varias coisasss
Poxa, muito bom o texto!
Realmente, um ótimo filme. Acredito que a temático pode (e deve) ser mais bem explorado pelo cinema brasileiro. Ah, muito bom o texto.
Obrigado, John! Também acho que devia ser mais explorado o tema. Abraço.
Incorporar o outro, mas sem deixar de ser “si próprio”, como dizia meu querido mestre, Amálio Pinheiro.
Quando Oswald de Andrade diz “Abro a janela/Como jornal”, faz o burburinho e a luminosidade das ruas habitarem as grafias e espaços em branco da página, por uma operação sintática que acopla, pelo menos, luz e vogais abertas, casa e bairro, livro e jornal…, como Severo Sarduy e Lezama, percebeu que a superabundância e a efervescência de elementos alógenos a serem incorporados aumentavam as relações entre estruturas internas e externas e, consequentemente, a experimentação de práticas e procedimentos interno-externos de criação, ou seja, de configurações barroco-mestiças em mosaico ou arabesco; disse, a respeito de Heitor Villa-Lobos: “Villa-Lobos (…) explicava o acento profundamente brasileiro de sua música por uma projeção dentro-fora, por uma operação exteriorizante expressiva, do seu espírito brasileiro formado no Brasil, herdeiro de todas as tradições culturais – autóctones, africanas, cantochão, barroquismos, classicismos, romantismos, batuques, pianistas de cinema da avenida Rio Branco… – que se entrecruzam hoje no seu país”
Nossas práticas sociais, nossa cultura tipicamente latino-americana sempre foi antropofágica.
Adorei o texto, porque abre espaços para mais e/ou outros diálogos sobre o tema. Parabéns, Leo, texto muito bom.
Lia Testa