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Recomeços | um 2023 ímpar para vocês

Foto: Sylvia Amélia

Chegamos vivos a 2023. Atravessamos uma pandemia (mas não baixe a guarda, que ela ainda está por aí e pode matar). Sobrevivemos a um governo que colecionou os piores adjetivos possíveis e que esteve por um triz de se reeleger.

O ano começou e ainda testemunhamos uma tentativa estapafúrdia e ababelada de golpe. Um bando de gente completamente descaroçada destruindo coisas que sequer entendem. Sobrevivemos a isso também. Estamos sobrevivendo, até aqui.

Entre os adjetivos do governo passado, podemos listar: corrupto, pateta, horroroso, maledicente, cruel, negacionista, hipócrita, mentiroso, assassino, desastroso. Nesse período, aconteceram pelo menos dois desastres ambientais de proporções jamais vistas no Brasil: os incêndios na Amazônia e o derramamento de óleo no litoral nordestino (sem que o governo tivesse nenhum plano de contingência para resolver o problema). Dá a entender que os desastres foram até mesmo provocados e promovidos pela cúpula do país. Assim como também foram promovidas as 700 mil mortes por covid, o baixo desempenho dos ministérios da educação, da saúde, da economia.

Quanto ao que nos interessa, vale dizer que nunca vamos esquecer que foi no departamento da cultura que se fez explícito o projeto estético desse período, na ocasião do pastiche de Joseph Goebbels feito pelo então secretário de Cultura (o ministério havia sido extinto) Roberto Alvim. E que este foi o menos grave dos acontecimentos na área.

Em algum momento, teremos que fazer um compilado de todas as atrocidades perpetradas por esse governo genocida que felizmente deixou o posto mais alto do Brasil para se tornar, da noite pro dia, nada menos que irrelevante. Quase que um assunto passável, não fosse a urgência das punições.

Esperamos que, uma vez cumpridos os processos e procedimentos, bem como as penas previstas (para que ele seja irreversivelmente preso com algemas e camisa de força, seguindo todos os trâmites previstos e necessários, este capítulo possa ficar enterrado para sempre no esquecimento de todos.

O ano começa. A vida já começa a se organizar sob a forma de esperança. Nossas vidas pessoais e profissionais se abrem para possibilidades novas. Temos alegrias por chegar, enquanto já começamos a trabalhar pelo fim das desgraças.

Foram anos difíceis e obscuros, mas não ficamos parados.

Quero usar este espaço do Salamalandro, nos proximos dias, para ir recuperando a sanidade, o fogo e o ânimo. Farei uma espécie de retrospectivas dos trampos feitos, que não postei aqui. Ao mesmo tempo que brincarei de dublê de jornalista, colocando aqui ali as notícias que mais nos interessam, a nós que nos dedicamos à cultura. Pouco a pouco, estou montando a agenda de leituras, eventos, palestras e lançamentos do ano, e pretendo contar um pouco disso a vocês também. Claro, como sempre foi, em tempos antigos: é provável que eu volte a partilhar dicas de livros, textos e poetas de que gosto em especial. Ando, inclusive, paquerando a ideia de produzir vídeos. Se o fizer, também partilharei por aqui.

Para quem não sabe, quem escreve neste blogue é Leo Gonçalves. Poeta e tradutor, nascido em Belo Horizonte. Nos últimos anos, desenvolvi trabalhos diversos, transitando entre a escrita e a performance, a tradução poética e as mais diversas atividades envolvendo diferentes idiomas. Como tradutor, venho me especializando nas literaturas negras do mundo, tendo traduzido os poetas da Negritude francesa, da Harlem Renaissance, das Antilhas e da África Negra do século XX. Também traduzi poetas latino-americanos, ingleses e franceses de tempos diversos. Você os encontra por aqui mesmo, neste blogue. Nos últimos anos, alguns desses trabalhos de tradução foram saindo por editoras, grandes ou pequenas. Quero voltar a compartilhar isso com vocês.

Por fim, gostaria de saudar a quem (provavelmente uma ou duas pessoas apenas, não tem problema) me lê. Que nos encontremos, que nos falemos, que nos leiamos e possamos voltar a uma vida plena. O sol há de brilhar mais uma vez.

Como traduzir um rosto | oficina de tradução poética

“traduzir é inumano. nenhuma língua ou rosto se deixa traduzir.”
Juan Gelman

A arte da tradução é a arte do impossível. Cada língua e cada lugar possuem suas particularidades, seus próprios recortes da matéria viva chamada “realidade”. Se traduzir é um desafio já no ponto de partida, o desafio da tradução poética e suas correlatas em prosa se avizinha às artes do impossível.

A proposta desta oficina é, portanto, a de realizar experimentos com tradução de poesia, explorando, no ato tradutório, as subjetividades e os elementos de linguagem próprios da poesia. A experiência com a tradução nos permite explorar, para além da própria tradução em si, as inúmeras possibilidades e técnicas de criação poética, bem como as reflexões sobre o que pode um poema.

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Os tempos atuais requerem uma percepção que ultrapasse os limites do que está ofertado para os observadores que somos, sempre muito passivos diante das notícias e informações que nos chegam do mundo. Adotamos visões superficiais e descarnadas sobre outros povos e outros lugares. A relação que cada indivíduo do planeta estabelece com os outros lugares e povos liga-se sobretudo, às paisagens. Compreender o que ocorre no ver e no sentir de um povo diferente é abrir-se para o novo, tal como o é também a leitura do poema.

Cada poema numa língua estrangeira é como um rosto distante que nos olha sem que compreendamos o que ele quer nos dizer. Trazer para a nossa língua o dito e o não dito de um poema, é parte dos grandes desafios do mundo atual. É pensando nisto que o filósofo martinicano Édouard Glissant desenvolve seu conceito de plurilinguismo: não se trata de saber vários idiomas, mas de “escrever em presença de todas as línguas”. A consciência de que o poeta habita um mundo onde também existem incontáveis línguas diferentes da sua compõe também o poema, nesses tempos de mundialização que é também massacrante, mas não só: é também a oportunidade do encontro e de um diálogo inédito entre os povos do planeta.

Traduzir poesia é também, por outro lado, momento de lazer. Despreocupar-se dos problemas do mundo para debruçar-se sobre as palavras, seus ritmos, seus jogos, seus interstícios. Buscar compreender o que ela diz e o que não diz. Mas também: dizer o que se compreende e o que não se compreende.

José Paulo Paes, um dos melhores e mais profícuos tradutores brasileiros em seu tempo, dizia traduzir porque não entende o original. Traduzir é o melhor modo de descobrir o que está oculto por trás das palavras de um poema escrito em outro idioma. Outro tradutor fundador, Augusto de Campos, declarou certa vez que traduzir é um modo de tornar-se outro, como fazia Fernando Pessoa com seus heterônimos. Sentir pelas palavras do outro, trazendo-as para a língua portuguesa. Guimarães Rosa dizia que toda escrita é uma espécie de tradução: quem escreve traduz de um lugar inaudito coisas sem nome. Mas para Robert Frost, “poesia é o que se perde na tradução”. Eis o desafio.

Grandes poetas traduziram: de Gonçalves Dias a Haroldo de Campos. De Machado de Assis a Clarice Lispector. De Álvares de Azevedo a Manuel Bandeira. De Carlos Drummond de Andrade a Sebastião Uchoa Leite. E a lista não tem fim.

Traduzir poesia é (pode ser) um modo de experimentar. Um modo de dar respiro às palavras de um autor. Seguindo o pensamento de Juan Gelman: “Traduzir é inumano. Nenhuma palavra ou rosto se deixa traduzir. É preciso deixar essa beleza intacta e colocar outra para acompanhá-la: sua perdida unidade está adiante.”

A proposta de “Como traduzir um rosto” seria, portanto, esta outra forma de se fazer poesia. Um processo. Um procedimento.

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Há tempos espero o momento de realizar esta oficina. Estou contente com a oportunidade oferecida pela PBH. “Como Traduzir um Rosto” acontecerá na próxima semana, entre os dias 10 e 13 de julho. As inscrições são gratuitas, mas as vagas são limitadas.

Quem quiser se inscrever ou obter mais informações, pode entrar em contato.

telefone: 31 3277 8658
email: bpij.fmc@pbh.gov.br

Revista Olympio | Literatura e Arte

Já está circulando desde maio a revista literária independente Olympio. O projeto foi idealizado por Maria Esther Maciel, que formou com José Eduardo Gonçalves, Julio Abreu e Maurício Meirelles. A ideia é de fortalecer a transversalidade, publicando (como aparece neste primeiro número) o trabalho ensaístico, poético, ficcional, bem como trabalhos em artes visuais. Merece destaque especial o “Retrato”, escrito por Joselia Aguilar sobre a obra fotográfica de Maureen Bisilliat. Também aparecem, entre as artes visuais, os trabalhos de Eustáquio Neves, Leonora Weissmann e Julia Panadès.

O número está belíssimo, com poemas de Edimilson de Almeida Pereira, Letícia Féres, Simone de Andrade Neves. Ensaios de Iris Monteiro, Maria Angélica Melendi, Eliane Robert Moraes e Douglas Diegues. E mauita coisa mais que não vou citar aqui a exaustão.

Colaboro neste número também. Neste caso, com a tradução de um delicioso texto de Georges Perec, com o título: “Notas referentes aos objetos que estão sobre a minha mesa de trabalho”.

A revista está sendo distribuída pela Autêntica. Querendo saber mais informações sobre como adquiri-la, o link é aqui: Revista Olympio | Literatura e Arte – 01