Arquivo da categoria: Poesia & arredores

Nova cara, novas decolagens

O Salamalandro, num esforço de mimetizar as mudanças no campo de ação de seu piloto, tem passado por uma série de mudanças em vários sentidos. E muita coisa ainda há de mudar. Na medida do possível, vou lançando por aqui as notícias.

Para os curiosos de plantão, já posso adiantar algumas coisas:

Está no prelo, pela editora Patuá, o meu primeiro livro da fase em que tenho estado “paulistando” (assim mesmo no gerúndio, para nos mantermos sempre e movimento e nunca concluso). Use o assento para flutuar terá tudo o que o que você espera (e um pouco de inesperado também, espero): apresentação, posfácio, orelha, para em pé – salvo engano, um formato avantajado, capa colorida e tudo o mais. Farei lançamentos em algumas cidades. Quem quiser acompanhar as informações (vou atualizando ao longo dos dias), é só clicar aqui.

Está também no forno a nova versão de Poemacumba, em vias de se transformar num espetáculo, ou numa performance-espetáculo. Eu e Franciane de Paula estivemos trabalhando nisto nos últimos meses, dando novos movimentos, inserindo elementos cênicos (iluminação etc) e sonoros, novos poemas e um pouco mais de cada um de nós, de cada uma de nossas inquietudes. Essa é, para mim, uma das minhas mais importantes experiências de 2012.

Tanto o Poemacumba quanto o livro serão lançados/estreados no dia 21 de agosto de 2012 na Sala Guiomar Novaes, na Funarte-SP (Alameda Nothman, 1058, próximo ao Minhocão e a alguns quarteirões da estação Santa Cecília). Depois disso, o livro e a performance vão ao Paraná, onde participaremos do Londrix – Festival Literário de Londrina (aguardem mais notícias por aqui também).

Na agenda, que está se completando aos poucos, tem ainda passagens confirmadas por Belo Horizonte  (na Casa Una) e Paraty. Para ir se informando, é neste link (sobre o livro) e neste outro link (sobre a performance).

Para alguns dos lugares onde passarei (passaremos), estou preparando algumas oficinas que vão de “Iniciação à poesia”, voltada para o público jovem, passando por um curso que se chamará “Sobre a poesia”, voltado para professores do ensino fundamental, médio e para estudantes de letras. Ainda voltado para o público pouco experimentado, disponibilizarei o “Ateliê de poesia falada”, inaugurado em julho deste ano, como parte da programação da Off-Flip. Para os iniciados, disponibilizarei também dois minicursos: “África & Poesia”, um curso sobre as contribuições dos “valores de civilização do povo negro” para as poéticas contemporâneas; e “A contribuição Dadá”, para aqueles que se interessam, mas conhecem pouco, os grandes avanços e invenções de um dos movimentos literários que inauguraram o século XX.

Tudo isto e mais um pouco, circulará por aqui no Salamalandro. Conto com a participação de quem quiser (alimentado de Enthousiasmos, quer dizer, do “sopro dos deuses”) levantar voo nessa navilouca ou  quem quiser simplesmente “usar o assento para flutuar”.

 

OFF FLIP 2012

A partir de quarta-feira, dia 04 de julho, acontece, a Flip – Festa Literária de Paraty. Para quem ainda não notou (duvido!) este é o evento literário mais glamouroso do Brasil, repleto de muitos focos e fogos, muita matéria nos melhores jornais do país, ingressos a preços exorbitantes. Nada mais nada menos, ultrapassou as Bienais no quesito expectativa do público e lançou uma moda de flaps, flups, flops nos quatro cantos do país.

Nada mais nada menos. Contradições que contradizem as próprias contradições, disso é feita a vida. Vejam bem o que eu disse: o mais glamouroso, não o melhor em que já estive presente. Se quiserem saber qual foi, muito fácil: a BHZIP, que rolou em Belo Horizonte em 1998. Mas antes que a conversa descambe para o delírio total e você, leitor, perca o rumo, volto ao ponto.

De 04 a 08 de julho acontece em Paraty a melhor festa literária para quem estiver por lá de corpo presente: a Off Flip. Enquanto respira os eflúvios da Flip, você pode curtir um clima de muita poesia e encontros com pessoas realmente interessadas em literatura. Bate-papos, mesas-redondas, saraus e baladas pela cidade afora. Na cidade cujo nome já foi sinônimo de cachaça, haverá muito o que fazer (e beber) durante a semana.

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Quanto a mim, estarei por lá a convite do Clube de Autores com quem já tenho uma parceria frutífera há pouco mais de um ano. A programação deste Salamalandro que vos fala, estará intensa. Deixo a deixa aqui para vocês, tomem nota:

Dia 05, das 10 às 15h na Casa do Clube de Autores (Rua do Comércio, 149 – Centro Histórico):
Oficina de Poesia Falada
A proposta desta oficina que darei é pensar a fala como um suporte para o poema, encontrando na sua própria estrutura, a partitura para a sua recitação. Os participantes devem levar, até 3 textos (de preferência de autoria própria) caneta, papel. Caso tenham outros instrumentos, tragam também, serão benvindos. Haverá um único encontro e os resultados serão apresentados no sábado às 18h, como parte da programação da Mostra de Poesia Contemporânea.

6 de julho, 18h às 20h no Camoka Botequim (Praça da Bandeira, próximo ao cais, no Centro Histórico)
Lançamento de livros da Editora Patuá
Com os autores Juliana Bernardo, Barbara Leite, Polyana de Almeida Ramos, Vlado Lima, Cesar Veneziani, Elisa Andrade Buzzo, Eduardo Lacerda, Charles Marlon, Reynaldo Bessa, Flavio Aquistapace. Mediação de Leo Gonçalves.

Sábado, 7 de julho às 10h da manhã no Silo Cultural (Rua Dr. Samuel Costa, 12, em frente à Casa da Cultura, Centro Histórico)
Mesa Literatura Afro Brasileira
A Mesa reunirá lideranças quilombolas, escritores, pesquisadores e ilustradores da Escrita Fina Edições em torno do tema da fusão cultural entre África e Brasil – as contribuições, questões e sincretismos decorrentes dessa miscigenação e a literatura produzida a partir disso. André Côrtes- livros Vozes D’África, O Navio Negreiro (autor das aquarelas de abertura da série de TV Ó pai, ó!), Luciana Grether Carvalho – livro Vida que Voa / Bonecas Abayomi, Leo Gonçalves e Maria Clara Cavalcanti – livros Quibungo e O Terrível Guerreiro – Contos Populares Africanos. Mediação: Ronaldo Santos – Liderança do Quilombo do Campinho.

(Nesta mesa falarei rapidamente sobre os programas centrais da do movimento literário da Negritude, a passagem de Aimé Césaire pelo Brasil e a tradução do poema “Batuque” feita por Carlos Drummond de Andrade em 1963.)

7 de julho, 22h no Barril Pub Choperia (Rua Marechal Deodoro, 27, Centro Histórico)
Picareta Cultural (Fechando com chave de ouro)
Nem os maias, nem a mãe Dináh ou sequer o Paulo Coelho poderiam prever esta audácia: Picareta Cultural – edição especial 5 anos, na OFF FLIP 2012. Poesia, música e cachaça dão o ar da graça novamente. O sarau reúne o fino do fino: autores novos e consagrados, músicos e artistas de todas as partes. O time deste ano é formado pelos poetas Mano Melo, Cintia Luando & Palarvore, Caio Carmacho, Emerson Alcalde, Allan Dias Castro, Edson Moura, Tchello Melo, Felipe Cataldo, Flávio de Araújo, Felipe Rey, Letícia Simões, Leo Gonçalves, Valterlei Borges, Roberto Borati, Tomás Paoni, Matheus José Mineiro e Tiago Malta; a banda Lusofones e grande elenco. Acontece sábado à noite, dia 7 de julho, no Barril Pub Chopperia (ao lado do Sarau Bar e Restaurante), e a entrada é franca. Melhor do que isso, só dois disso. Evoé, picaretas!

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Para saber mais informações  e pegar a programação completa é no www.offflip.paraty.com/offflip2012

Centenário de Léon-Gontram Damas

2012 é o ano do centenário do poeta guianense Léon-Gontram Damas, um dos fundadores do movimento da Negritude. Autor menos conhecido e evocado que os seus dois colegas Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, Damas foi uma figura diferente no grupo. Boêmio, articulado, chegou a Paris antes dos outros dois e por lá perambulava livremente. Se aproximou dos surrealistas no final dos 1920, especialmente de Robert Desnos, com quem parecia se identificar mais.

Antes ainda do surgimento da Negritude, fez parte do grupo Légitime Défense, ao lado do poeta antilhano Étienne Léro, tendo assinado um dos textos da revista que trazia o nome do grupo em 1931. Por lá também conheceu os poetas da Harlem Renaissance, especialmente Langston Hughes e Claude McKay, que frequentavam os salões das irmãs Nardal, ponto de encontro dos negros presentes na Paris de então.

Césaire se refere a ele com grande admiração como um homem dotado de toda a alegria, a intuição e a atitude vivazes de um negro órfão de sua terra natal, a Guiana, assim como de uma África perdida e dilacerada na memória da pele.

Seu livro Pigments (“batimentos cardíacos rumo a altas nevralgias”, segundo Desnos), publicado em 1937, é considerado a obra fundadora da Negritude. Ganhou enorme destaque na época, especialmente para os que assistiam com temor o triunfo dos fascismos.

Reproduzo abaixo um dos poemas de Léon-Gontram Damas em tradução minha.

LOGO MAIS

Logo mais
não terei apenas dançado
logo mais
não terei apenas cantado
logo mais
não terei apenas roçado
logo mais
não terei apenas suado
logo mais
não terei apenas dançado
cantado
roçado
suado
roçado
suado
roçado
cantado
dançado

Logo mais

***

BiENTÔT

Bientôt
je n’aurai pas que dansé
bientôt
je n’aurai pas que chanté
bientôt
je n’aurai pas que frotté
bientôt
je n’aurai pas que trempé
bientôt
je n’aurai pas que dansé
chanté
frotté
trempé
frotté
trempé
frotté
chanté
dansé

Bientôt

Revista Coyote #23

Demorou, mas graças ao aparecimento da Rô Candel, uma nova amiga, tenho finalmente em mãos a Revista Coyote número 23. Como sempre, ela está repleta de coisas boas. Dou destaque especial para o poema “Discurso por ocasião de um congresso internacional de pessoas jurídicas”, do Bruno Brum, que tive a honra de ver nascer e para as traduções do meu camarada Reuben da Cunha Rocha, dos poemas de Gregory Corso, dentre os quais me divirto em reproduzir um aqui. Mas tem mais: Moacir Scliar, Bernardo Vilhena, Márcia Tiburi, Beatriz Bracher e por aí vai. Para adquirir seu exemplar, é só encomendar no Sebo do Bac ou no site da editora Iluminuras.

Céu de Cambridge

Olho pra cima
e milhares de recém-nascidos
sangram da vela dos meus olhos;
filhos e filhas de cera derretida
sangrados do útero dos olhos.
Ah esta é a mais lenta das horas
nuvens das nuvens qual flores que demoram
até uma nuvem tornar-se todas
e eu ficar cego.

A última coisa que enxergo
é um pássaro no alto cantar destemido
e ainda ouvirei no céu seu último bramido
antes que a rajada arebente a asa.

[Gregory Corso traduzido por Reuben da Cunha Rocha]

Entrevista com Janaína Moreno

Janaína Moreno vai gravar seu primeiro disco e procura investidores. Entrou num sistema crowdfunding para arrecadar fundos. A coisa é simples e já bem conhecida por quem usa internet: você colabora e se torna apoiador(a) com algum dinheiro através do site e fica por dentro do processo de feitura, ganha um cd autografado, conversa com a cantora. Para fazer seu cd, ela e a produtora C2 chamaram o produtor baiano Luiz Brasil e o disco promete vir bonito e com surpresas.

[Para conhecer mais do projeto e colaborar, clique aqui.]

Quem já viu um show da Janaína Moreno sabe da energia que rola. Cantora com voz potente, bota a plateia para sambar sem dó. Vive rodeada de músicos incríveis e aproveita muito de seus quitutes de atriz, mãe e dama sedutora. Difícil sair de um show dela sem um sorriso imenso na cara.

Nascida em Belo Horizonte, foi uma das principais cantoras do projeto Samba da Madrugada, invenção do Miguel dos Anjos, Mestre Jonas, Dudu Nicácio e outros bambas de lá. Se mudou para o Rio de Janeiro em 2009 ao se sair vencedora no concurso Novos bambas do velho samba, organizado pela casa noturna Carioca da Gema, na Lapa. O crítico musical Sérgio Cabral a definiu como uma cantora “cheia de bossa e brasilidade”. Vem dividindo palco com grandes mestres da música brasileira: Alcione, Monarco e o saudoso Walter Alfaiate foram apenas alguns.

Nas idas e vindas, entrou como cantora num barco transatlântico, circulou por alguns países africanos, mergulhou um pouco mais nas culturas matrizes de seu samba, que mistura ritmos brasileiros como o coco, o maracatu, jongo, calango, congo e muitos mais.

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A Jana é pessoa das mais queridas para o Salamalandro. Me concedeu uma pequena entrevista em 2008, quando seu projeto estava no começo. Agora, mais que nunca, chegou o momento.

Por que Festeira? Como surgiu o nome?

Tive a necessidade de dar um nome e conceituar este trabalho solo quando fui selecionada para o concurso “Novos bambas do velho samba” que é uma realização tradicional do Bar Carioca da Gema e queria que meu show falasse da minha trajetória até então e que fosse honesto com meu momento de carreira. Foi então que começamos (eu, Andreza Coutinho e o Miguel dos Anjos) a pensar num nome que abarcasse tudo o que buscávamos. Festeira sou eu, mesmo. Uma festeira de mão cheia. Minha música “Festeiro” já sugeria o nome, mas snão foi o mais importante. O fundamental é que festeira é um adjetivo que retrata bem a mim e ao show. Misturo ritmos de festejos populares com o samba e o show se torna uma grande festa!

O que surgiu de novo com a experiência de cantar no Rio de Janeiro?

Tantas novidades! No Carioca da Gema eu tive a oportunidade de fazer o show de abertura de personalidades do samba como, por exemplo, Monarco, Wanderley Monteiro, Walter Alfaiate, Moacyr Luz, Tia Surica dentre outros. Além de colaborar com a minha pesquisa de novos sambas. Ouvi sambas que nem imaginava algum dia conhecer. O trabalho de observação destes que levam o samba como filosofia de vida, e com muito fundamento, me alimentou ainda mais de respeito. O samba é realmente muito generoso e eu lhe devo muito respeito. Com toda esta vivência, um amadurecimento do show foi algo natural. Mas ainda temos muito pra crescer.

Você é uma cantora que insere muito de sua experiência como atriz no palco. Como é isso para você?

Acredito numa arte que transforma o ser humano. Parece meio esotérico o que vou dizer: a arte tem poder de cura. a música transforma o ambiente, o deixa mais feliz, mais triste. Manipula-se com a arte várias qualidades de energia. O teatro me trouxe uma compreensão dramatúrgica da música. É como se eu pudesse provocar em quem me ouve sentimentos que nem sou capaz de prever, embora eu ache o máximo quando uma canção feita para fazer chorar provoque o riso de alguém. É a subjetividade da vida aplicada na arte. Minha arte não termina quando acaba a canção pois a canção traz a reflexão e quando o canto é associado ao gestual, este caminho se estreita. A atriz que me habita, sem dúvidas me aproxima do público. São duas artes complementares. Meu canto precisa do gestual, da expressão, da cura. Eu canto meus tormentos e quero ser entendida, e quero chegar o mais perto possível do coração das pessoas. A atriz me ajuda nesta tarefa.

Hoje em dia são poucas as cantoras da noite que tocam músicas autorais. Como é tocar as suas próprias músicas e as dos amigos no palco? Fazem menos sucesso que os clássicos? Seu público sente falta de poder encontrar um cd seu? Te perguntam se vc já gravou algo, costumam querer te “levar para casa”?

Eu navego muito de mansinho pelos caminhos da composição. realmente não é uma busca minha compor. Às vezes acontece de maneira natural. Me sinto mesmo é porta voz de palavras já ditas, de cantos de outros cantos. A convivência com compositores de minha geração me despertou interesse. Escolhi algumas composições deles para trabalhar e assim tenho feito. É uma forma de divulgar canções novas que são tão boas como grandes clássicos. Meu compromisso é simples. Quero transmitir o pensamento desta canção? Se a resposta for sim, pronto: eu canto! Elas fazem sucesso também. Me sinto feliz quando, no final, alguém me pergunta de quem é aquela canção, como faço pra ouvir, tem cd? Há um interesse nas pessoas em “me levarem para casa” (risos) como você diz e, maior que o interesse delas de “me levarem pra casa” é o interesse que eu tenho de ser levada (mais risos). Minha busca atualmente é trabalhar para conseguir gravar. Um disco é um nascimento para o música. Mas quero isso de forma substancial, portanto me mantenho ativa no trabalho, atenta aos sopros dos anjos, consciente de que casa segura é aquela que construímos tijolo por tijolo.

www.myspace.com/janainamoreno

6º Fan – Festival de Arte Negra

O Fan é sempre um acontecimento instigante. Conceitualmente bem estruturado, chegou à sua sexta edição aos trancos e barrancos, superando a (má) vontade política e todo tipo de percalço próprio de tudo o que se tenta fazer culturalmente no país. No seu longo histórico, já teve presenças inesquecíveis como a dançarina senegalesa Germaine Acogny (em 2006) e seu filho Patrick Acogny (em 2009). Inesquecível foi também a enorme exposição da memória da escravidão (em 2002, se não me engano), a revista Roda, o show de Jards Macalé com as Orquídeas.

A programação deste ano não deixa para menos. Homenagem ao Mestre Jonas, leitura-concerto com os poetas Abreu Paxe (Angola), Nina Rizzi (Fortaleza), Ronald Augusto (Porto Alegre) e Sebastião Salgado (Rio de Janeiro), oficinas de dança e de moda, muita música. Destaque especial para a presença da belíssima cantora Susana Baca, a embaixatriz da música afro-peruana e do artista pop senegalês Youssou Ndour, atual ministro da cultura de seu país.

Uma festa para quem (como eu) gosta de diversidade e exuberância.

Clique no link para saber mais e mais sobre o Fan: www.fanbh.com.br

Changó el gran putas

“Changó, tu pueblo está unido en un solo grito.”
Manuel Zapata Olivela

Às vezes, o inusitado acontece de maneira especial. Eu estava participando do Fliv – Festival Literário de Votuporanga, quando vejo na programação do Fórum de Dança (que costuma acontecer paralelo ao Fliv) o espetáculo Changó el gran putas, apresentado pelo dançarino togolês Vincent Harisdo. Me lembrei imediatamente de ter tomado conhecimento havia pouco do poema homônimo do colombiano Manuel Zapata Olivela.

Ao conversar com o dançarino e seu parceiro, o griot Bachir Sanogo, soube que Olivela havia sonhado ver aquele poema atravessando o Atlântico e ocupando as mentes dos africanos. Harisdo, que é de origem yoruba, comentou o quanto lhe parecia bom ouvir falar de seus deuses ancestrais do lado de cá, entre os descendentes que haviam sido privados da memória de seu povo.

O Changó el gran putas de Vincent Harisdo fala um pouco disto: as belezas imensuráveis das tradições africanas que habitam o corpo e a mente dos seus descendentes em todos os cantos do mundo. O quanto toda essa beleza tem sido escamoteada ao longo dos séculos, e o quanto nós resistimos mesmo assim, produzindo algumas das criações mais admiráveis (e admiradas) do nosso tempo.

O espetáculo, que traz o nome do orixá, é uma criação mestiça. Bachir Sanogo é descendente de uma longa tradição de griots malinkè. Com seus cantos em bambara e mossi, acompanhado de kamel ngomi (o instrumento de cordas que ele toca na foto acima), djembê, dumdum, cabaças e congas, ele sonoriza e dá vida aos passos do dançarino. Me falou de seus ancestrais como um povo vanguardista, pioneiros na domesticação dos cavalos (anterior aos árabes) e nas políticas de respeito à mulher (secularmente anterior às feministas do século XX). Uma das coisas que concluímos foi que, ao aceitarmos a África como nos é dada pela mídia mundial: um lugar de tristeza e dor, digno de pena e criações de ongs para enviar esmolas, estamos aceitando que a África que corre em nosso sangue é também esta.

Vincent Harisdo lembra que “gran putas” não é um palavrão, mas um grande elogio. Algo como “Xangô o fodão” ou “o puta deus Xangô”. Um oriki. Um oriki para nos lembrar que “gran putas” é esse povo que troa xangô pelo mundo afora, a começar pela dupla e seu ngunzu denso.

Para quem quiser conhecê-lo melhor: http://harisdo.free.fr/

Para quem quiser ouvir Bashir Sanogo: www.myspace.com/bachirsanogo
Quem quiser ler o poema de Manuel Zapata Olivela, olha aí o link para baixar o pdf: /chango-el-gran-putas-afro

Juliana Perdigão

Escrevo ainda sob os efeitos entusiasmantes do show de lançamento do cd Álbum desconhecido, que rolou na última quinta-feira, dia 10 de maio, no Teatro Oficina.

Não estou falando de uma nova Elis Regina, não é uma Clara Nunes do século XXI, tampouco uma Cássia Eller repaginada. Não é nada disso. Falo de Juliana Perdigão, cantora única que segue um caminho próprio em meio à nova cena musical brasileira. Com repertório diversificado, sua voz de timbre incomum, acompanhada de seu clarinete, ela se arranja em canções que vão das doçuras da diva à mais alegre marchinha carnavalesca.

Juliana não é nova na cena musical de Belo Horizonte. Eclética, é ela a clarinetista que tocava no grupo de chorinho Corta Jaca, do novo rock do Graveola e o lixo polifônico, cantora em diversas canções de Flávio Henrique e a voz da marchinha de maior sucesso no último carnaval: “Na coxinha da madrasta”. Faz parte da nova geração de compositores e músicos mineiros, ao lado de Kristoff Silva, Makely Ka, o já saudoso Mestre Jonas e muitos outros.

Bem humorado já desde o título, seu disco Álbum desconhecido não tem remakes de canções famosas. E Juliana prova que não precisa dar esse tipo de cancha para o público. Rodeou-se de uma seleção de artistas admiráveis mineiros e paulistanos. A começar pela banda: Maurício Ribeiro (teclados, violões, escaleta e arranjos), Thiakov (baixo), Matheus Bahiense (bateria e percussão) e Pablo Castro (guitarra). Não para por aí. No disco participam também músicos como André Abujamra, Carlos Careqa, Benjamin Taubkin, Rômulo Froes, Alaécio Martins, Bruno Santos, Daniela Ramos, Du Macedo, Luiz Gabriel Lopes, Gabriel Guedes e muitos outros, para que você se confunda entre os já famosos e os que ainda serão.

O Álbum desconhecido é desses discos que você precisa ouvir todos os dias. Para se manter vivo, para se manter alegre, a saúde em alta. Para que a vida valha a pena. Eu mesmo já estou viciado.

Para saber mais e baixar o disco, é aqui:
www.julianaperdigao.com.br

As amigas: cenas de amor sáfico

Há vários anos que traduzi a pequena série de poemas “As amigas”, de Paul Verlaine. Na época, lia vorazmente os rebeldes da literatura francesa, especialmente Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire. Verlaine, que circulava entre eles (mas que não considero um rebelde), também sabia agradar.

Depois que traduzi, o meu desejo era o de repetir, numa edição bilingue, o feito do autor de “de la musique avant toute chose” e seu editor pirado: publicá-lo na forma de plaquete, com esse quadro do Klimt (que vocês estão vendo aí embaixo) na capa. Coisa simples e bonita. Cheguei a negociá-lo com o Oséias, da editora Crisálida, mas acabei concordando que não valeria tanto a pena, comercialmente. Me lembro de também ter mostrado para algumas pessoas, dentre elas o poeta Guilherme Gontijo Flores, tradutor de Propércio.

Mas em meio aos desajeitos dessa vida, esses e muitos outros trabalhos foram parar no fundo da minha “gaveta”. Tenho agora a alegria de dá-los a luz, através do blog Escamandro, a convite do mesmo Guilherme Gontijo Flores, a quem agradeço, além do convite, as boas palavras. Lá foram também publicadas outras versões de alguns dos poemas da série, no dia 30 de março, aniversário de 168 anos de Paul Verlaine.

Para ler as traduções que fiz, é lá no: www.escamandro.wordpress.com
Aproveito para me demorar um pouquinho mais sobre o assunto.

 

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Atualidade de Don Pablo María de Herlañes

A pequena suíte de sonetos Les amies – scènes d’amour saphique apareceu pela primeira vez na forma de plaquete, publicada em 1867 sob os auspícios do editor Auguste Poulet-Malassis. Naquela edição, o autor aparece sob o bem-humorado pseudônimo de Pablo María de Herlañes. Segundo consta, os 5 poemas que fazem parte da coleção são as obras mais antigas escritas pelo autor, aos quais ele acrescentaria para esta edição o soneto invertido Sapho. A edição, embora pequena, foi condenada e retirada de circulação pouco tempo depois de sua primeira tiragem, acusada de ser uma obra licenciosa.

Apesar disso, o tema do lesbianismo parecia estar muito em voga naqueles tempos. Os críticos são praticamente unânimes em considerar esses poemas uma espécie de variação sobre um tema lançado à baila por Charles Baudelaire nos poemas “Lesbos” e “Femmes damnées”, ambos também condenados e proibidos de figurar nas primeiras edições das Fleurs du mal.

E não foi só Verlaine que apanhou “o grito do galo”. É dessa mesma época o famoso quadro “Dormeuses” do pintor Gustave Courbet. O poeta inglês Swinburne seguia o caminho dos mestres com o longo poema “Anactoria”, publicado um ano antes das “Amigas” de Verlaine. Um dos mais belos livros do século XIX é Les chansons de Bilitis, de Pierre Louÿs, cujos poemas mais tarde foram musicados por Claude Debussy. Mesmo o nosso Cruz e Sousa tem lá seu soneto “Lesbia”, que aparece no livro Broquéis.

Em todos os casos, é inevitável a referência à poeta Safo de Lesbos, cuja obra (especialmente naquela época) constava de apenas uns poucos fragmentos e uma única ode a Afrodite que foi guardada inteira por ter sido citada por um sofista grego. Afora esses poemas, as referências a ela eram todas provenientes dos romanos que, de certa forma, guardaram um pouco de sua obra em traduções e referências: Horácio, Catulo, poetas líricos por excelência e que, por essa razão, buscavam seus modelos entre os clássicos gregos e Ovidio que, embora épico, gostava especialmente do tema do amor. Graças a Ovidio é que a lenda de Faon (presente no último poema da série) se mantém viva até o século XIX e é assim que ela chega a Verlaine.

De todos os poetas que fantasiam a respeito das “Amigas”, Verlaine, na minha opinião, é o que dá a forma mais delicada, se valendo de combinações métricas pouco usuais para o soneto francês e sonoridades que deixam os poemas bem suaves e  excitantes. Diferentemente dos outros, ele não as vê como as másculas mulheres do quadro de Courbet, muito menos como as “mulheres amaldiçoadas” de Baudelaire. Não trata do tema como que de um pecado ou de um mero fetiche masculino. Verlaine é, ele mesmo, um homem feminino ou quase, partidário daquele amor que ele não só não condena como embeleza. Afinal, como ele mesmo diz em um outro poema, “Je suis pareil à la grande Sapho [Sou igual à grande safo]”.

Talvez a pequena suíte das amigas de Paul Verlaine goze hoje de sua melhor atualidade. Basta circular pelas ruas de qualquer grande cidade, lançar uma olhadela pelas redes sociais e as conquistas que as e os homossexuais vêm obtendo em meio a essa estranha sociedade (que no século XIX prendeu o mesmo Verlaine por praticar a sodomia), para vermos que, sim, as “Amigas” merecem mais do que nunca o seu lugar ao sol. Hoje, 145 anos depois de sua primeira edição, elas já não serão mais condenadas, mas amadas, desejadas, esperadas. Incomoda ainda os conservadores. Mas sua proibição geraria ondas de protesto e beijaços pelo país afora, viraria escândalo.