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Conversa de abertura do Cineclube Mocambo: Dénètem Touam Bona e Leo Gonçalves

O ano era 2021. Ano do refúgio. Ano da peste.

Eu tinha ido morar em Bom Despacho para fazer o meu Decameron, minha fuga da pandemia. Para quem não sabe, o Decameron, de Bocaccio, é uma coleção de contos e novelas medievais. Dez pessoas narram cada qual dez histórias, para ocupar o tempo de seu refúgio em meio à epidemia de Peste Bubônica que se espalhou pela Europa naquele período.

As lives foram o Decameron da época.

Eu tive o privilégio de fazer algumas lives épicas. Esta foi uma delas.

Na abertura do Cineclube Mocambo, a convite do Gabriel Araújo e do Jackson Dias, eu pude conversar com Dénètem Touam Bona, autor de Cosmopoéticas do refúgio. Ele, que se considera um autor afropeu, organizou esse livro especialmente para a edição brasileira. Em diálogo e consonância com o pensamento de autores como Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Labou Tam Si e, mais secretamente, de Édouard Glissant, ele apresenta o lindo pensamento do refúgio. A ideia da marronagem como uma iniciativa que subverte os modos de dominação próprias do capitalismo e de seu ancestral, o colonialismo. O quilombo, o mocambo, a marronagem, a aldeia indígena, a floresta seriam as melhores formas de refúgio contra um sistema que esmaga as populações do mundo e nos leva a uma rendição constante? Ou talvez isso se estabeleça pelas estratégias sutis, pela fuga, no sentido musical mesmo, pelo escape indireto mas eficaz diante daquilo que o sistema impõe?

É um pouco sobre tudo isso essa conversa.

Frederick Douglass

O livro Autobiografia de um escravo, de Frederick Douglass, foi publicado em 2021 pela editora Vestígio. Trata-se da famosa Narrative of the life of Frederick Douglass, an american slave. Um relato impactante e pungente da vida de um homem que, nascido na escravidão, acabou por se tornar consciente de sua condição, lutar por sua dignidade ainda em meio às mazelas do cativeiro, e lutar por longos anos até conseguir realizar uma fuga exitosa. Evento sem o qual este homem não teria se tornado o que se tornou: o homem negro mais influente dos Estados Unidos no século XIX.

A edição deste livro, bem como a sua tradução, introdução e notas, esteve a cargo de Oséias Silas Ferraz. O livro traz também um texto de apresentação de Silvio Almeida. Alguns dos poemas presentes ao longo do texto foram traduzidos por Guilherme Gontijo Flores. O texto da orelha foi escrito por Leo Gonçalves (eu-mesmo).

Douglass narra toda a sua vida até o momento da publicação, em 1945, quando ele tinha pouco mais de vinte anos de idade. Conta dos horrores da vida no ambiente da escravidão, das famílias para as quais ele prestou servidão, os diferentes trabalhos que um escravizado pode ter que fazer e as relações formais que era obrigado a manter nos diferentes ambientes.

Um momento marcante em sua trajetória é aquele em que uma patroa decide ensinar-lhe (ele muito menino) a ler e escrever. Ela seria obrigada a parar o processo, repreendida pelo marido que lhe explicou que a educação “era perigosa para os escravos”. Mas a partir de então, ele percebeu o quanto seria importante aprender a ler e a escrever. E foi aprendendo como pôde, autodidata e enxerido, sempre às escondidas.

Mais tarde ele usaria seu tempo livre, aquele que lhe era concedido aos domingos. “Tive uma escola sabática na casa de um negro liberto cujo nome considero imprudente mencionar (…). Tive em certo momento mais de 40 alunos, e daqueles da melhor espécie, desejando ardentemente aprender”, ele declara. E prossegue: Eram de todas as idades, embora a maior parte adultos de ambos os sexos. Lembro-me daqueles domingos com um praer tão grande que não pode ser expresso. Foram dias imensos na minha alma.” (p. 103)

Há várias passagens emocionantes no livro, mas para mim, nada se compara a esse momento: “O trabalho de instruir meus queridos companheiros de escravidão foi a tarefa mais doce com a qual eu alguma vez fui abençoado. Nós nos amávamos, e deixá-los a fechar o Sabbath era mesmo uma pesada cruz.” (p. 103) E mais adiante:

Essas almas queridas não vinham para a escola sabática porque isso fosse popular, nem eu os ensinava porque fosse respeitável estar assim ocupado. A todo momento que eles passavam naquela escola, eles corriam o risco de serem pegos e de tomarem 39 chibatadas. Eles vinham porque queriam aprender. Suas mentes estavam morrendo à míngua por conta da crueldade de seus senhores. Eles foram trancados na escuridão mental. Eu ensinava a eles porque era um deleite para a minh’alma estar ocupado em algo que parecia estar melhorando a condição da minha raça.

Essa passagem faz um relato de cumplicidade, afeto, coragem, persistência, como poucos relatos na literatura foram capazes de produzir. É pungente o modo como vai sendo denunciado ao longo da obra, o esforço dos proprietários brancos para reduzir a mente dos seus escravizados, transformando-os em meras máquinas, máquinas cansadas, máquinas sem vida, sem esperança. Assim, quando Douglass relata o tempo de suas aulas de alfabetização, ele consegue mostrar o quanto esse esforço dos fazendeiros era vão. Que quando muito, essas almas se recolhiam no interior de mais e mais camadas. “Eles eram almas nobres”, ele conclui.

Livro: Autobiografia de um escravo
Autor: Frederick Douglass
Tradução: Oséias Silas Ferraz
Editora: Vestígio
Ano da edição: 2021
Apresentação: Silvio Almeida

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Texto da orelha:

por Leo Gonçalves

Em 2015, o estado de Maryland ganhou notoriedade devido a uma violenta onda de protestos, após o assassinato do jovem negro Freddie Gray, morto pela polícia. Sinistras estruturas ligam a história de Freddy Gray a outras pessoas negras desde o século XVII, quando Maryland se destacou no mercado mundial através do tabaco e da escravidão negra.

Foi também em Maryland que nasceu o primeiro gênero literário protagonizado por pessoas negras nos Estados Unidos: a narrativa de escravos. O pioneiro foi Ayuba Suleiman Diallo, abastado senegalês capturado em 1731 e levado para Maryland como escravo. Esperto e inteligente, ele não aceitou a nova condição e usou diversos expedientes para escapar. Suas histórias foram registradas no livro Algumas memórias da vida de Job, filho de Solomon (1734).

A Narrativa de Escravos teve, desde então, enorme lista de autores: James Gronniosaw, Olaudah Equiano, William Grimes, Nat Turner, William Wells Brown, Henry Bibb, Charles Ball, Moses Roper, Lewis e Milton Clarcke, Sojourner Truth, William e Ellen Craft, Harriet A. Jacobs, Jacob Green, William Wells Brown, Josiah Henson e tantos outros que acabaram por influenciar o discurso do ativismo negro no século XIX. O gênero no qual o ex-escravo encontra um meio de organizar suas memórias e descrever suas experiências mais pungentes continua a ser foco de interesse e atenção, haja visto o sucesso do filme Doze anos de escravidão (2013), baseado nas memórias de Solomon Northup.

Frederick Douglass, importante figura da história americana, símbolo de luta e resistência para os movimentos negros, nasce e começa a encontrar uma espécie de terra natal neste interessante livro. Sendo o que se chamava “escravo para toda a vida”, aprendeu a ler por seus próprios meios, enfrentando obstáculos e inventando estratégias para obter o aprendizado, que lhe abriu a dimensão subversiva da leitura e do conhecimento, que os proprietários brancos tratavam como ruim para os negros algo que lhes traria infelicidade.

Neste livro, Douglass se vale de todas as técnicas de escrita que tem à mão, inventando uma poderosa obra literária, e de um sucesso inaudito. Floreada de versos potentes aqui ali, e recursos avançados de inversão de frases, evocando um tom bíblico, tudo em meio a uma sedutora narrativa que deixará o leitor pendurado nos lábios do narrador, esta Narrativa de Escravo se estabelece como um momento único e marcante na história literária dos Estados Unidos.

O garoto perdido e solitário, sem pai nem mãe, sem origem nem pátria, exilado em seu próprio país, acaba por descobrir sua terra natal: a palavra, que o tornaria mais tarde o mais célebre dos homens negros nascidos no século XIX. Seus escritos, bem como sua imagem que se repete incessantemente até os dias de hoje, mostram um olhar profundo, tomado da coragem de fazer a diferença na luta pela libertação de seu povo. O mesmo povo que ainda se vê diante de aflições impostas por descendentes daqueles que outrora os raptaram, escravizaram e tiraram tudo, até a respiração, a exemplo dos tantos Freddie Gray e George Floyd de hoje e de sempre.

Entrelinhas, entremontes

Versos contemporâneos mineiros

O ano era 2020, e era janeiro. Estávamos, como de costume, à beira de grandes acontecimentos. Viagens em torno à poesia (que só aconteceram tempos depois), lançamentos de projetos novos, muita disposição para ir adiante. Também já nos rondava a notícia de que uma pandemia viria para assustar as nossas vidas. Quando tivemos a triste notícia da partida de um dos nossos mestres inventores: o poeta Marcelo Dolabela havia partido.

No entanto, a belíssima antologia Entrelinhas, entremontes: versos contemporâneos mineiros já se anunciava. Como as melhores coisas destas Minas Gerais, o livro vinha de uma longa gestação, organizado por nosso querido (e já então saudoso) Marcelo Dolabela, pela Vera Casa Nova e por Kaio Carmona. A edição ficou a cargo da belorizontina Quixote-Do.

A editora e seus autores pretendiam (e desejavam) que o livro fosse lançado ali por volta do mês de maio. Mas outra má notícia atrapalhou os planos. A pandemia já havia colocado uma imensa parte da população mundial em clima de pavor, isolada e impossibilitada de participar de qualquer encontro onde houvesse mais pessoas. Não fizemos lançamento algum, tendo ficado a expectativa de, em algum momento, fazermos o encontro de maneira presencial. Momento ainda guardado na nossa imensa câmara dos desejos.

São ao todo sessenta e um poetas que participam cada qual com sua particularidade e diversidade, marca tão forte na poesia produzida em Minas Gerais. Diversas formas e diversas maneiras de se abraçar a poesia, a antologia demonstra a força da poesia que aqui se faz. Neste mesmo livro você lerá a imagética poesia de um Antonio Barreto, os achados e percepções perspicazes de uma Ana Martins Marques, a poesia-cinema de Emilia Mendes, a síntese quase-zen de Camilo Lara (outro que também, para nossa tristeza, se foi enquanto a antologia era organizada). É possível se ler ainda: a poesia pura-linguagem de Adriana Versiani, a poesia-mergulho de Adriane Garcia, com sua multiplicação de peixes em estado de ironia, o despojamento transgressor de Renato Negrão, a doçura lúcida de Maria Esther Maciel e assim por diante. Uma surpresa após outra, passando por Edimilson de Almeida Pereira, os poemas dos próprios organizadores Marcelo Dolabela, Kaio Carmona e Vera Casa Nova (pontos altos na publicação), Sérgio Fantini, Sônia Queiroz, Mônica de Aquino, Bruna Kalil Othero, Fabrício Marques e mais uma lista tão repleta de surpresa quanto rica em nos fornecer um gostinho de quero mais, já que ainda há muita coisa incrível produzida em Minas que não aparece aqui.

Colaboro nesta antologia com meus ritmos de tambor e minhas conversas em busca do ngunzu entre as palavras.

A obra traz ainda um texto introdutório de Domício Proença Filho. Um texto interessante, embora peque no excesso de avaliação e busca de tendências. Ele declara, no entanto, o papel da poesia viva de Minas. “Em síntese, os textos reunidos em Entrelinhas, entremontes: versos contemporâneos mineiros evidenciam, sem esghotar, as tendências configuradoras, a continuidade de aspectos significativos da dispersão assinalada”. Embora ele se perca nas ilusões da temática, da rima e do verso livre (coisas quase desimportantes neste século XXI e, principalmente, na antologia que ele mesmo apresenta), ele busca mostrar a possibilidade do encontro entre o leitor e a poesia, todos reunidos num mesmo espaço: “nas terras mineiras, a poesia vive”, arremata.

A edição ainda ganhou um adendo: sua versão podcast, na qual você poderá ouvir cada um dos muitos poemas presentes no livro. A série pode ser ouvida no spotify, no seguinte link: https://open.spotify.com/show/2UeizQCN1lYLuak7p87B41.

Para comprar o livro, você pode procurar o seu livreiro preferido, online ou pessoalmente. E pode também ir direto no link da editora: https://quixote-do.com.br/produto/entrelinhas-entremontes-versos-contemporaneos-mineiros/

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A título de amostra, deixo aqui um poema de Edimilson de Almeida Pereira:

Na casa da palavra

os homens que falam poeira cadê sua miséria
comentam o motivo de falarem poeira cadê
sua miséria.

Poeira cadê sua miséria não é só poeira cadê
sua miséria: mas o ovo de outras coisas.

Os homens que falam poeira cadê sua miséria
se vestem de poeira cadê sua miséria. Eles se
conhecem desde o-ó-do-mundo pela música
que poeira cadê sua miséria faz neles.

O modo de falar poeira cadê sua miséria deixa
a língua no sal.

Os homens que falam poeira cadê sua miséria
treinam de usá-la. E nunca repetem o que dis-
seram no camaleão poeira cadê sua miséria.

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Poetas que participam desta antologia:

Adriana Versiani, Adriane Garcia, Adriano Menezes, Alexandre Rodrigues da Costa, Alícia Duarte Penna, Álvaro Andrade Garcia, Ana Caetano, Ana Elisa Ribeiro, Ana Martins Marques, Angélica Amâncio, Antonio Barreto, Brenda Mar(que)s, Bruna Kalil Othero, Caio Junqueira Maciel, Camilo Lara, Carlos Augusto Novais, Carlos Ávila, Carlos Barroso, Dagmar Braga, Daniel Arelli, Djami Sezostre, Edimilson Pereira de Almeida, Elaine Oliveira, Emília Mendes, Erick Costa, Fabrício Marques, Flausina Márcia, Flávio Boave, Francesco Napoli, Gean Simões, Gilberto de Abreu, Inês Campos, José Américo Miranda, Jovino Machado, Júlio de Abreu, Kaio Carmona, Kiko Ferreira, Léo Gonçalves, Lúcia Afonso, Luciana Tonelli, Luiz Edmundo Alves, Malluh Praxedes, Maraíza Labanca, Marcelo Dolabela, Marcus Vinícius de Faria, Maria Esther Maciel, Mário Alex Rosa, Mônica de Aquino, Natália Menhem, Paula Vaz, Renato Negrão, Rodrigo Leste, Ruth Silviano Brandão, Sônia Queiroz, Sérgio Fantini, Simone de Andrade Neves, Simone Teodoro, Teodoro Rennó Assunção, Thaís Guimarães, Vera Casa Nova, Wagner.

A sopa de pedra mole

Leuk, a lebre, tem fome. Muita fome. E há semanas, está cruzando a savana em busca de algo para comer. Ao chegar numa aldeia, bate à primeira porta que encontra e se depara frente a frente com a pouco amistosa hiena Buki. Leuk, que tem sempre um truque na cachola, convence a hiena a emprestar-lhe seu caldeirão nem muito sujo nem muito limpo para preparar uma deliciosa sopa de pedra mole… Muito conhecido na Europa e na Ásia em suas diversas versões, esse conto popular, aqui cozido à moda africana, fala da solidariedade em tempos difíceis. Com esta sopa inusitada, todos vão sair saciados e com o coração amolecido!

Em 2021, saiu pela editora V&R, o livro infantil A sopa de pedra mole, do camaronês Alain Serge Dzotap e com ilustrações de Irène Schoch, com tradução de Leo Gonçalves (yo). Trata-se de uma história tradicional, um conto da carochinha, contado em diversas culturas. Aqui, o autor enche a sopa de dendê e temperos africanos: os personagens aqui presente são inspirados no famoso livro (para quem cresce em contexto afro-francófono) de Léopold Sédar Senghor e Abdoulaye Saadji, La belle histoire de Leuk-le-lièvre.

O livro pode ser encontrado nas melhores livrarias do ramo, nos sites de livros e no site da editora (https://www.vreditora.com.br).

Você também pode conhecer mais sobre o livro no episódio 19 dos Contos da Quarentena, podcast de Nina Rizzi (clique aqui).

Confluències poètiques

Nos dias 16, 17 e 18 de março de 2022, participo do evento Confluências Poéticas, na cidade Barcelona. O evento contará com a presença de poetas de Minas Gerais (Brasil) e da Catalunha (Espanha). Serão três dias de conversas sobre poesia e também três dias de muita leitura de poesia. De muito estado de poesia. De muito espaço dado para o voo das palavras. Dias nos quais esperamos que a poesia seja um modo de estarmos presentes.

Poetas que participam:

Ana Elisa Ribeiro
Ana Martins Marques
Eduardo Escoffet
Ester Xargay
Leo Gonçalves
Míriam Cano
Nívea Sabino
Renato Negrão
Ricardo Aleixo
Victor Sunyol

O evento acontecerá na Casa Amèrica Catalunya | C/ Còrsega 299, Entresuelo.

Para mais informações, visite o Site da Casa Amèrica Catalunya (clique no link).

Para conhecer a programação completa, as mesas, as mediações e poetas, baixe o dossier (clique no link).

Uma outra história

Uma coletânea onde seis autores conversam sobre negritude, literatura e identidade. Itamar Vieira Júnior pensa, de forma poética no que ele chama de “descobrimento das palavras”. Djamila Ribeiro explora as influências que contribuíram para que ela se tornasse uma das maiores vozes do movimento negro da atualidade. Edwige Danticat retrata a vida de Marie Micheline, que ecoa a trajetória de violência no Haiti em uma história de tirar o fôlego. Registramos ainda uma conversa histórica entre Allan da Rosa e Marcelo D’Salete, que refletem sobre o passado e o presente do pensamento negro no Brasil. Por fim, Alain Mabanckou discorre a respeito de como deslocamentos e imigrações podem afetar a identidade e o trabalho do escritor. (Citado a partir do texto de quarta-capa)

Livro: Uma outra história: textos contemporâneos
Autores: Zélia Amador de Deus, Itamar Vieira Júnior, Djamila Ribeiro, Edwige Danticat, Allan da Rosa e Marcelo D’Salete, Alain Mabanckou
Editora: TAG

Tradução do texto “Elogio das fronteiras”, de Alain Mabanckou: Leo Gonçalves

A África não está mais somente na África. Se dispersando pelo mundo, os africanos criam outras “Áfricas”, tentam outras aventuras talvez salutares para a valorização do continente negro. Reivindicar uma “africanidade” é uma atitude fundamentalista e intolerante. O pássaro que não voou da árvore sobre a qual nasceu compreenderá o canto de seu compradre migratório? Precisamos de uma confrontação, de um cara a cara das culturas. Pouco importa o lugar.
O desafio consiste em reportar de nossos diferentes “pertencimentos” o que poderia dificar positivamente um destino comum assumido.

Alain Mabanckou, “Elogio das fronteiras”

Justiça climática

Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável é o título do livro de Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e enviada especial da Onu para mudança climática. Publicado em 2021 pela editora Civilização Brasileira, ele relata histórias de esforço e resiliência diante de um problema que vem aumentando com o avanço do neocapitalismo: o problema da justiça climática.

Degelo noAlasca e no Ártico, seca no norte africano, inundações no Mississippi, uma ilha no Pacífico que naufraga um metro a cada ano, a luta por sobrevivência em meio às crises climáticas nas florestas do Vietnã. Essas e muitas histórias são narradas por essa mulher que representa hoje uma das maiores forças na luta contra os efeitos das mudanças climáticas no mundo.

A Justiça Climática é a constatação de que quem sofre com as consequências das emissões de gases nas grandes cidades do planeta são, geralmente, os povos das periferias. Como fazer justiça a esses povos? Como dar a eles o direito de reagir e sobreviver em um mundo que parece não se importar com o aumento cada vez mais excessivo dos poluentes?

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. No entanto, quando se trata dos efeitos da mudança climática, nada além de injustiça crônica e corrosão dos direitos humanos entra em cena. Por bastante tempo, muitos países negaram a evidêrncia, buscando encontrar desculpas para a inação. (…) Nós não podemos mais pensar sobre mudança climática como um problema em que os ricos fazem caridade aos pobres para ajudá-los a lidarcom seus impactos adversos”, ela afirma.

Livro: Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável
Autora: Mary Robinson
Tradutores: Leo Gonçalves e Clóvis Marques
Editora: Record
Número de páginas: 192
Ano da edição: 2021

Revista Cult: Antologia Poética #4

A Revista Cult lança nesta segunda-feira, dia 31 de maio a Antologia poética #4 – Sob um sol escuro também se escreve. Com curadoria de Edimilson de Almeida Pereira, Com curadoria de Edimilson De Almeida Pereira, os 28 poemas desta edição apresentam a ruína em sua multiplicidade, “mas também nos deixam antever uma vida com sentidos profundos, embora tudo ainda esteja assolado por um sol escuro”, conforme palavras do próprio autor.

O projeto faz parte de uma série de antologias, com curadorias diferentes. Até aqui, organizaram: Alberto Puchéu, Tarso de Melo e Daniele Magalhães, respectivamente para os números 1, 2 e 3.

A edição traz poemas de:

Adriana Lisboa, Anelite de Oliveira, Alvaro Naddeo,
Auritha Tabajara, Camila do Valle, Carlos Machado,
Demetrios Galvão, Denilson Baniwa, Eduardo Jorge,
Fernando Fiorese, Francesca Cricelli, Iacyr Anderson
Freitas, Iracema Macedo, Joselly Vianna Baptista,
Jussara Salazar, Jussara Santos, Laura Assis, Leo
Gonçalves, Marília Floôr Kosby, Marjô Mizumoto,
Maxwell Alexandre, Mônica de Aquino, Natan Barreto,
Otávio Campos, Paulo Nunes, Ramonn Vieitez,
Ricardo Aleixo, Ronald Augusto, Salgado Maranhão,
Stephanie Borges, Vera Lúcia de Oliveira, Waldo Motta

O lançamento será totalmente virtual, através do canal da revista no Youtube (https://www.youtube.com/tvrevistacult), e começará às 19h30, com a participação dos editores, do curador e de alguns dos participantes.

Para aquisição de seu exemplar, ele já se encontra disponível no: https://bit.ly/3wFQ8Px

Entrevista com Juan Gelman (2004)

Na ocasião do lançamento de Isso, de Juan Gelman, que teve sua primeira edição em 2004, o Suplemento Literário de Minas Gerais fez veicular uma entrevista que fizemos com o poeta. Mais tarde, na edição de Com/posições, da editora Crisálida, Andityas Soares de Moura incluiu essa mesma entrevista como um apêndice aos poemas. O pensamento de Juan Gelman se faz vivo especialmente em seus poemas. Se procurarmos pela internet, encontraremos diversos depoimentos do poeta, que sempre gostou muito de dialogar com quem quer que sinta interesse por suas produções. Fazia parte de um gesto de honestidade dele.

Agora, em 2021, com a iniciativa da editora da UnB de fazer recircular a nossa tradução, essa entrevista volta à pauta do dia, ao menos para nós que gostamos de poesia e, em especial, de Juan Gelman. Atualizo alguns detalhes ao redor do trabalho, mas a entrevista segue na íntegra, ipsis litteris.

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Os inimigos invisíveis – uma conversa com Juan Gelman

Por Andityas Soares de Moura Costa Matos* e Leonardo Gonçalves**

Juan Gelman foi uma das mais importantes vozes da poesia de língua espanhola. Nascido no ano de 1930 em Buenos Aires, e falecido na Cidade do México em 2014, foi obrigado a se exilar na Europa durante a ditadura militar que, além de lhe assassinar o filho e a nora, sequestrou-lhe a neta e proibiu a publicação de seus escritos em território argentino.

Detentor de vários prêmios internacionais de poesia, autor de mais de duas dezenas de obras e incansável ativista na luta pelos direitos humanos, Gelman exibe em sua escritura muitas tendências divergentes, tendo conseguido sintetizar e aprofundar algumas das linhas expressivas mais importantes da poesia do século XX sem, no entanto, abrir mão de uma dicção particularíssima na qual se percebe um raro encontro de ternura, fúria e beleza.

Dentre os poemários que compõem sua vasta obra cabe destacar Hacia el Sur (obra central na qual Gelman recria sua história com o auxílio de heterônimos à moda de Pessoa), Com/posiciones (no qual dialoga com a tradição da poesia árabe-judaica que floresceu na Espanha muçulmana) e Dibaxu (originalmente escrito em sefardita, língua que os judeus utilizaram na Espanha até 1492).

Gelman vem conquistando leitores em todo o mundo desde os anos 50 quando publicou Violín y otras cuestiones. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas, inclusive o português brasileiro, onde pouco a pouco a lacuna vem se preenchendo com boas edições.

Em breve conversa com seus tradutores brasileiros, Gelman reflete sobre alguns dos temas mais intensos de sua poesia, sobre a qual Julio Cortázar comentava: “Talvez o mais admirável em sua poesia seja sua quase impensável ternura ali onde mais se justificaria o paroxismo do rechaço e da denúncia, sua invocação de tantas sombras por meio de uma voz que sossega e arrulha, uma permanente carícia de palavras sobre tumbas ignotas”.

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Andityas Soares de Moura: Fernando Pessoa disse certa vez que sua pátria era a língua portuguesa. Contudo, Octavio Paz acredita que para os latino-americanos o castelhano – e no caso único dos brasileiros, o português – não é simplesmente uma forma de expressão, mas também um dos instrumentos de dominação que os europeus trouxeram consigo. Assim, temos a impressão de falar uma língua que não é totalmente nossa e somos vistos pelos seus “verdadeiros donos” como falantes de segunda categoria. Gostaríamos de saber como é a sua relação com a língua e o falar maternos.

Juan Gelman: Minha relação com a língua é conflituosa, choco-me contra seus limites. A palavra de fora fere a criança em seu berço e essa ferida nunca se fecha. Supor, então, que depois de cinco séculos o castelhano e o português que se falam na América Latina não são totalmente nossos me parece um disparate retórico. E pouco importa como nos vejam os “verdadeiros donos” destas línguas: faz muito tempo que já não o são. Muito pelo contrário. Se não, como se explica a influência de nossas literaturas nas da península ibérica? As línguas latino-americanas continuam em estado nascente. E concordo com Pessoa. A língua é una pátria que inclui outras: a infância, o país natal, a fala de sua gente e a mais importante, a vida. 

Leonardo Gonçalves: Há ainda a questão das suas origens familiares, a convivência com diversas línguas no exílio, brincadeiras com o idioma russo (por exemplo: “que girondo liublimará lamora”) ou com o italiano (“adoro la palabra necesidad en italiano/ necesidad en italiano se dice bi/sogno/”), aquela resistência à língua do país onde se está exilado (especialmente em “Bajo la lluvia ajena”); enfim: coisas que reavivam a especificidade de cada língua e o quanto elas guardam da identidade do indivíduo. A principal relação do poeta é com a língua ou com a linguagem?

JG: A língua usa a linguagem para falar mais consigo mesma.

LG: Mas em cada livro você parece se valer de uma técnica diferente para chegar à expressão poética desejada. Em Hacia el sur há o uso da anedota, em Com/posiciones nota-se algo que lembra uma tradução bem livre, um diálogo com poetas de outros tempos, já em Citas y comentarios você parece esbarrar no misticismo, uma vez que se relaciona diretamente com San Juan de la Cruz, Santa Teresa de Ávila e outros autores dos séculos XVI e XVII. Por outro lado, conhecemos poetas que pensam a técnica somente no que diz respeito à superfície das palavras (métrica, rima, por um lado, e visualidade, plasticidade, por outro). Como se dá a entrada no mundo das palavras? O procedimento é algo importante na busca do resultado poético? Enfim, por quais caminhos se realiza a sua experimentação poética?

JG: Creio que não há receitas para todo mundo, sequer para uma mesma pessoa e só posso falar do meu caso. São as obsessões que me levam a escrever, reconheço-as quando chegam porque fico de mal-humor e sinto um ruído no ouvido. Cada obsessão – ainda que o “tema” seja o mesmo – se apresenta cada vez com um novo rosto, como se fosse um ponto diferente do mesmo círculo. Isso exige sua própria expressão, forçosamente distinta das anteriores, e aí há um choque com as ferramentas expressivas antes obtidas e que já não servem. O trabalho de fazê-las está de um lado, juntamente com o de encontrar as outras, as que se aproximam o máximo possível do novo som no ouvido.

LG: É fácil perceber em sua poesia uma espécie de “invenção” de uma nova linguagem. A criação é um ato que ultrapassa a língua? Qual seria, nesse caso, a relação entre o gelmanês e o sentimento da língua argentina?

JG: A criação encontra na língua o que a supera e se converte logo em língua. As linguagens crescem, se enriquecem constantemente desde o fundo dos séculos. Mais que do sentimento da fala da Argentina, creio que de sua música latente “todos os gelmans” comem.  

ASM: Uma das características que mais me encanta em sua poesia é a relação amorosa, quase erótica, entre a palavra e o tempo. No exergo de com/posiciones você escreveu: “o tempo e sua dor como paciência ardem no fundo da noite onde cada palavra é astro frio, sol que está por vir”. O nosso tempo é humano e escorre pelos séculos. Contudo, a poesia tem sido nossa única herança de beleza possível. O tempo é um personagem ou o autor da sua aventura poética?

JG: O tempo é o autor da aventura humana e, por conseguinte, da aventura poética. Ele as escreve o tempo todo.

ASM: Então nós somos instrumentos desse tempo-poeta?

JG: A questão é como cada um lê essa escritura.

LG: Houve um momento em que se ouvia intensamente uma infinidade de vozes na sua voz. Nela se percebia Roque Dalton, Rodolfo Walsh, Miguel Angel Bustos, Francisco Urondo e milhares de outros que sequer chegaram a ter voz. Como o som da memória fala dentro de sua obsessão criativa?

JG: A memória é o sustentáculo de toda obra de arte. O grande poeta mexicano José Emilio Pacheco disse que a poesia é a sombra da memória. Às vezes creio que é a sombra dessa sombra.

LG: E quem são esses amigos, essas sombras? Qual a importância da evocação dos seus nomes?

JG: Não sei se é importante, sei que para mim é necessário.

ASM: Uma polêmica que jamais se encerrará é aquela relativa aos inúmeros problemas que perpassam a aproximação da ética e da estética, que no nosso caso se reflete no conflito entre a poesia e a política. Assim, vejo várias referências em sua poesia a autores como Pound, poeta genial que não escondia sua opção fascista. A poesia serve à política ou só se preocupa consigo mesma, construindo aquele “lirismo puro” e despreocupado que Celso Emilio Ferreiro tanto criticou? É possível encontrar um meio-termo? Há um limite entre a vida, o pensar e o fazer?

JG: Me parece que muito se politizou e se sociologizou essa polêmica. Creio que o único tema da poesia é a poesia e que por isso pode falar de tudo: do que é, do que foi, do que poderia ter sido e não foi, daquilo que nos é próximo, daquilo que nos é mais distante, de política e até de amor. É uma verdade de Perogrullo que a grandeza ou a propriedade de uma poesia nada tem a ver com o tema em si de que trata: no mundo foram escritos milhões de poemas de amor que não chegam nem às sandálias dos que Safo escreveu. E milhões de poemas políticos que estão bem longe de alcançar a altura do que escreveram sobre o tema Dante, Shakespeare, Quevedo, Darío, Neruda, Vallejo, para citar exemplos prestigiosos. O que importa é a densidade da escritura e esta só se dá quando a circunstância exterior coincide com a circunstância do coração, como pensava Éluard. E é certo que Ezra Pound trabalhou para Mussolini, mas criou um poema sobre a usura que nenhum marxista-leninista-maoísta soube tirar de si até agora. Também é verdade que Céline se alinhou com os nazistas na França ocupada e perpetrou panfletos anti-semitas de uma virulência perversa, mas é autor desse romance extraordinário sobre a pobreza que se chama “Viagem ao fim da noite”. São muito obscuras as relações entre ideologia e verdadeira criação literária. Aí está o monárquico Balzac: seus personagens mais entranháveis são republicanos, já assinalou Marx. E assim, a ideologia, como o intimismo, só ocupa uma parte da subjetividade de um autor. Sua cosmovisão está constituída por uma e pelo outro, mas não se detém apenas aí, de jeito nenhum.

LG: Em outros tempos, convivia-se com a “terna revolução”, aquela doce utopia de uma América Latina melhor. Você mesmo chegou a declarar, segundo Víctor Casaus, que a revolução, somada ao amor e à poesia, são os três grandes – e únicos – temas da poesia. Como se dá essa revolução hoje? E, mais especificamente, qual é a missão do poeta, se é que ele tem alguma?

JG: Permita-me um esclarecimento: nunca disse que a poesia tem três únicos grandes temas, declarei que a revolução social, o amor, a própria poesia – e também a morte, a meninice, o outono – tecem minhas obsessões, as que me impelem a escrever. As obsessões, desde já, variam em cada um. A missão do poeta, se assim podemos chamá-la, é escrever poesia. Sua simples existência é um ato de resistência contra a desumanidade cada vez maior que estamos padecendo.

ASM: Aproveitando o gancho da pergunta de Leonardo e abandonando um pouco a seara da poesia, gostaríamos de saber como você analisa o contexto político atual, uma vez que o mundo está completamente subjugado por forças invisíveis. Antes tínhamos um inimigo a combater. Todos tinham: os militares, os revolucionários, os americanos, os russos, o bem e o mal das histórias em quadrinhos. Atualmente a dominação é muito mais espiritual do que corporal. Lembro-me de um trecho das Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar que parece ter sido escrito para o nosso momento histórico: “Duvido de que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravidão: no máximo mudar-lhe-ão o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas porque mais insidiosas: seja transformando os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas que se julgam livres quando são subjugadas, seja desenvolvendo neles, mediante a exclusão do repouso e dos prazeres humanos, um gosto tão absorvente pelo trabalho como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. A essa servidão do espírito ou da imaginação, prefiro ainda nossa escravidão de fato”. E a minha pergunta: Como resistir a um futuro que se entremostra indizivelmente opressor?

JG: Sinto na passagem de Yourcenar que você cita um certo pessimismo indignado e depreciativo ao qual ela, sem dúvida, tem direito. Não penso o mesmo. Quanto à invisibilidade do inimigo, teríamos que perguntar aos iraquianos ou aos palestinos se têm inimigos invisíveis. A servidão mais insidiosa é o costume e só a utopia pode resistir a ela. Oscar Wilde disse que um mapa-múndi que não incluísse o país da utopia não valeria a pena ser visto. Talvez a função de uma utopia consista fracassar para abrir caminho a outra melhor.

ASM: Lembro-me de ter lido – ainda no exergo de com/posiciones – uma passagem que me comoveu e fez pensar: “traduzir é inumano: nenhuma língua ou rosto se deixa traduzir. deve-se deixar essa beleza intacta e colocar outra para acompanhá-la: sua perdida unidade está adiante”. Veio a dúvida: muitas pessoas acreditam em bruxas, fadas, duendes e papai-noel. E você, acredita em tradução poética? E mais: é necessária a tradução entre línguas tão próximas como o português e o castelhano?

JG: Acredito e não acredito. Há boas traduções e há as muito ruins. São, sem dúvida, necessárias e não só entre línguas próximas como o português, o castelhano ou o galego. Mas também acredito que a tradução de poemas de outro idioma deve antes de tudo escutar sua música e dar-lhe a música do próprio. Traduzir poesia é mais difícil que escrevê-la. É traduzir música.

LG: Guimarães Rosa considera que há pouca distância entre o ato criativo e o ato tradutório. Como se o momento da criação fosse uma espécie de tradução para a língua que conhecemos de algo que não tem língua. Em todo caso, alguns de seus livros – como com/posiciones, citas y comentarios e dibaxu – perpassam as fronteiras da tradução. A tradução é um recurso ou uma obsessão para o poeta?

JG: Não será un recurso obsessivo? Tropeça com as diferenças ou matizes de visão do mundo de cada língua e isso é muito fecundo para quem traduz porque o leva a interrogar a fundo a sua própria palavra. Obsessivamente.

ASM: Ainda sobre a tradução, qual é a importância, para você, do lançamento de Isso no Brasil, esse país tão próximo da Argentina, mas que abriga poetas que desconhecem boa parte da tradição poética latino-americana hispânica, talvez por estarem mais preocupados em assimilar a poética central da Europa e dos Estados Unidos da América?

JG: Acontece que os poetas da América Latina de fala castelhana também conhecem mais a poesia européia e norte-americana que a brasileira, salvo contadas exceções. Mas isso ocorre entre os próprios poetas de fala castelhana. Em nossos países persiste uma espécie de isolamento pela qual na Argentina não se conhece bem o que passa com a poesia no Uruguai, ou no Chile, ou na Colômbia. E vice-versa. As razões deste fenômeno são complexas, históricas, sócio-econômicas e de políticas editoriais que, sobretudo, atrapalham a difusão de poesia. A tradução de “Isso” ao português e sua publicação no Brasil – não importa o fato de que seja eu o autor do livro – rompe essas barreiras, adquirindo então uma importância simbólica.

LG: O livro Isso é contemporâneo de Hacia el sur, Dibaxu e Com/posiciones. Por mais que sejam muito distintos, é possível encontrar correspondências e diálogos entre eles. Você poderia nos falar um pouco sobre o contexto em que Isso foi escrito?

JG: O contexto exterior foi o exílio. O interior, também.

ASM: Ao completar 60 anos, o poeta português Eugénio de Andrade disse estar sentido o peso das sombras. E você, sente esse peso da idade, essa escuridão que se aproxima? Ou é clar/idade?

JG: Sem sombras não há luz.   

LG: O tango e a milonga (canto e dança popular nos subúrbios de Buenos Aires) aparecem nos seus poemas de diversas maneiras, nem sempre apresentando caráter puramente musical. Às vezes com um certo clima de humor e de melancolia, você evoca passagens e cantores que ressoam ao fundo aquela arraigada influência do tango. Qual é a importância do tango – e da música em geral – para você?

JG: Borges disse certa vez que o tango é uma maneira de caminhar. Equivocava-se: quando jovem descobri que o tango é uma maneira de conversar. Corpo a corpo.

ASM: O que é ser um poeta latino-americano hoje? É possível apontar algumas vozes que se destacam na multidão? E, por fim, como se sente ao ver que boa parte dos jovens poetas latino-americanos – e aqui acho que posso incluir a mim e a Leonardo – foram influenciados por sua obra?

JG: Ser um poeta latino-americano hoje é como ser um poeta francês ou vietnamita hoje. Dizia o grande Bashô que não se deve imitar aos antigos, mas buscar o mesmo que eles buscaram e acho que todos estamos nessa. Claro que há vozes latino-americanas importantes e a lista de seus nomes não seria curta. A poesia latino-americana goza de boa saúde. Os que correm perigo com cada ditadura militar são os poetas.   


* Andityas Soares de Moura Costa Matos é escritor, tradutor e professor universitário na Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universitat de Barcelona. Publicou os livros de poemas Ofuscações (1997), Lentus in umbra (2001; edição espanhola com tradução de Francisco Álvarez Velasco, 2002), OS enCANTOS (2003), FOMEFORTE (2005), Algo indecifravelmente veloz (antologia poética editada em Portugal, 2007), Auroras consurgem (2010), Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas (2019) e Poemas para a noite dos mortos-vivos (2020), além do livro de contos Oroboro, lançado em Portugal (2010) e no Brasil (2012). O seu ensaio A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois García foi publicado em Portugal (2004) e na Galiza (2009). Traduziu A rosa dos claustros (2004) da galega Rosalía de Castro, Isso (em parceria com Leonardo Gonçalves, 2004), Com/posições (2007) e debaixo (2009), todos doargentino Juan Gelman, além da plaquete À boa teta e outros quatro licenciosos poemas da França renascentista (2005). Traduziu e publicou em revistas literárias brasileiras poemas do catalão Joan Brossa.

 ** Leonardo Gonçalves é poeta, performer, tradutor e ensaísta. Autor de Use o assento para flutuar (Editora Crisálida, 2018) e das infimidades (in vento, 2004). Participa da antologia É agora como nunca: Antologia incompleta da poesia brasileira contemporânea, organizada por Adriana Calcanhoto e publicada pela Companhia das Letras. Seus poemas estão também incluídos em antologias de poesia brasileira publicadas em outros países, como a Retendre la corde vocale: anthologie de la poésie brésilienne vivante, organizada e traduzida por Patrick Quillier. Traduziu recentemente a antologia La medusa dual – Antología bilingue de poesía mexicana (Cisnegro, 2018). Também traduziu autores como Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire, Léon Gontram Damas, Birago Diop, Juan Gelman, William Blake e outros trabalhos que podem ser encontrados em revistas literárias.