Arquivo da tag: vanguarda

um poema de william burroughs

dia de ação de graças, 28 de novembro de 1986

agradeço pelo peru selvagem e os pombos passageiros, destinados a virar merda nas saudáveis tripas americanas.

agradeço por um continente a espoliar e envenenar.

agradeço pelos índios por garantirem uma módica dose de desafio e perigo.

agradeço pelas vastas manadas de bisões para matar e depelar e depois deixar as suas carcaças à putrefação.

agradeço pelos troféus de caça de lobos e coiotes.

agradeço pelo sonho americano, por inventar lorotas até que elas brilhem à luz do dia.

agradeço pela klu klux klan. aos policiais que matam negros e os contabilizam. às decentes beatas de igreja com suas mesquinhas, interesseiras, feias e perversas caras.

agradeço pelos adesivos de “mate uma bicha em nome de jesus cristo.

agradeço pela aids de laboratório.

agradeço pela proibição e pela guerra contra as drogas.

agradeço por um país onde a ninguém é permitido cuidar da seus próprios problemas.

agradeço por uma nação de dedos-duros.

agradeço, sim, todas as lembranças – ok, deixa eu ver o que você tem nas mãos!

você foi sempre uma dor de cabeça e uma encheção de saco.

agradeço pela última e maior traição do último e maior sonho dos sonhos humanos.

(tradução de leo gonçalves)

deixo o original (Thanksgiving Day Nov. 28, 1986) no vídeo de gus van sant

a morte de josé agrippino de paula

1967 foi um ano chave. glauber rocha lançava terra em transe. zé celso martinez entrava em cartaz no teatro oficina com o rei da vela de oswald de andrade. a tropicália a toda. na literatura: josé agripino de paula lançava o seu panamérica. caetano na vitrola: “panaméricas de áfricas utópicas/túmulo do samba mais possível/novo kilombo de zumbi”

passaram-se 40 anos. o teatro oficina do zé celso continua sua luta pela sobrevivência num país que é ainda o túmulo do samba mais possível. e do samba menos possível também.

passaram-se 40 anos e josé agrippino passa dessa para uma melhor. falecido em 04 de julho. sem louros, sem reconhecimento que valha os 40 anos de sua panamérica. silencioso. uma pena. me faz pensar em pound:

“os artistas são as antenas; um animal que negligencia os avisos de suas percepções necessita de enormes poderes de resistência para sobreviver.

os nossos mais delicados sentidos estão protegidos, o olho por um alvéolo ósseo, etc.

uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio. depois de um certo tempo ela cessa de agir e apenas sobrevive”.

daqui eu vejo ademir assunção esbravejando de sua espelunca. compartilho da sua ira.
boa viagem, agrippino.

A carta do vidente Rimbaud

Rimbaud

“EU é um outro. Se o cobre amanhece clarim, não é culpa dele. Isso para mim é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento. Eu a olho eu a escuto: meu arco toca a corda: a sinfonia se agita nas profundezas, ou vem de um salto em meio à cena.”

“O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o conhecimento de si mesmo, inteiro; ele busca sua alma, ele a observa, tenta, aprende (instrui). A partir do momento que ele a conhece, ele deve cultivá-la; isso parece simples: em todo cérebro se cumpre um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; há também outros que atribuem a si mesmos seus progressos intelectuais!”

“O poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele exaure em si mesmo todos os venenos, para então guardar apenas as quintessências. Inefável tortura na qual necessita de toda a fé, toda a força sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo sábio! – pois ele chega ao desconhecido! uma vez que ele cultivou sua alma, já rico, mais que todos! Ele chega ao desconhecido, e quando, enlouquecido, ele acabaria por perder a inteligência de suas visões, ele as viu! Que ele estoure em seu sobressalto pelas coisas inaudíveis e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!”

Lá pelos idos de 2005, em meio às conspirações do grupoPOESIAhoje, nós alunos de Maurício Salles Vasconcelos (autor de Rimbaud na América e outras iluminações (Estação Liberdade, 2000) falávamos muito de Jean Arthur Rimbaud. Pensávamos, citando o autor de Une saison en enfer na parafernalização dos sentidos e nem sequer tínhamos lido McLuhan. Procurávamos pela “Carta do vidente”, famosa carta escrita a Paul Démeny e na época era difícil encontrá-la em português. Resolvi traduzir.

Quem quiser lê-la na íntegra, é só clicar aqui.

notas sobre a vanguarda distraída

depois de escrever o post anterior, recebi inúmeros emails, cartas e mensagens de celular me criticando pelo termo criado para designar a poesia do meu amigo. a linha principal da crítica, (a única que acho pertinente) propunha que, sendo vanguarda, ninguém poderia ser distraído. era, portanto, uma contradição em termos. um dos meus críticos mais duros, inclusive, fez questão de ressaltar que numa guerra, a vanguarda exerce um papel essencial: é sempre o primeiro batalhão a enfrentar o inimigo e que portanto ninguém podia estar neste posto distraído.

isso tudo me divertiu muito. e resolvi, como resposta, acrescentar algumas notas:

1. não se trata de contradição. como vocês puderam notar, a poesia do anderson é mordaz e atenta ao melhor do que acontece ao seu redor. alguém terá notado também que a minha geração cresceu sob o poder daquilo que chamam “cultura de massas” ou “entretenimento” (vulgo xuxa, fausto silva, ana maria braga e outros lixos enlatados). vocês não queriam que eu dissesse: “vanguarda entretida”, queriam?

2. jerzy grotowski foi um importante teórico do teatro que nos anos 60 propunha que a ação teatral se fazia graças a uma difícil tensão que ocorre entre o ator e o espectador, sendo que este ocupa um papel opressor por não se ver, na maioria das vezes, preparado para curtir uma peça e sim para consumi-la. no começo dos anos 70, cansado desta tensão, grotowski decidiu abrir mão dela para produzir um teatro total. ao final, ele diz: se vocês quiserem considerar isto teatro ou não, pouco me importa.

grotowski é um precursor da vanguarda distraída.

3. me diverte muito a idéia de que alguém venha a levar a sério o título que dou aos meus contemporâneos (incluindo-me a mim mesmo). onde já se viu… vanguarda distraída.

4. podia escrever um manifesto. até mesmo porque manifestos já estão fora de moda. por isso mesmo. cairia bem.

5. enganam-se redondamente aqueles que (como o frei betto) ficam por aí dizendo que a minha geração só possui alienados despolitizados que só querem fazer parte do sistema mundial de competitividade proposto pelo capital tio sam. o que nós queremos é comer todo mundo. discretamente, como bons mineiros. numa grande mordida de prazer (se o prato for nutritivo) ou num grande bocejo (se o prato só tiver carboidratos – como o frei betto).

6. fico triste de ver como que toda e qualquer subversão é rapidamente assimilada pelo sistema mundial de consumo. che guevara, lenin, leon trotsky, jozef stalin, marilin monroe, john lennon, jim morrison, bob dylan, cicciolina, andy warhol. todo mundo pode ser tranquilamente jogado na mesma lixeira. por outro lado, vejo que o pessoal até que ganha um dinheirinho com isso. o que não é nada mal. contanto que sobre um pouco também para os poetas. um leitinho de vez em quando, as crianças agradecem.

7. para o meu amigo guerrilheiro, com seu papo de inimigos, eu confesso: fui eu que matei paulo leminski. e enquanto agonizava com ar divertido, ele me explicava a doutrina dos epicuristas e me repetia sempre como num refrão: “distraídos venceremos”

Anderson Almeida e a vanguarda distraída

O poeta Anderson Almeida (na foto lendo o livro de Léopold Sédar Senghor) é um cara curioso. Muito vivo, exageradamente discreto. Quando nos conhecemos, ele não gostou dos meus poemas: ficamos grandes amigos. Lembro que em 1997, quando BH se preparava para uma celebração dos seus 100 anos, tínhamos o hábito de frequentar os bares da “Poesia Orbital”. Na ocasião tinha sempre algum poeta orbital falando versos em algum palco. Certa vez ele me disse: “cada vez que vejo um ator global falando versos de um poeta orbital, tenho mais certeza de que palcos não são o meu forte…” ou algo assim.

Nessa época a gente vivia intesamente este poema dele:

curtametragem

o homem pulou da ponte
e ao erguer a vista
e contemplar o horizonte
amou a vida e não viu por onde
retomar a subida

.

Desde então, a gente cometeu muita vida. Um dia ele me aparece com um calhamaço de uns 200 haicais completamente originais e inesperados. O silêncio dele nos últimos tempos me faz pensar neste haicai dele:

estou mudo
como borges era cego
e beethoven era surdo

Ele é um dos caras mais originais da minha geração. Nunca fez muita questão de mostrar o que escreve. Esconde dos holofotes, descansa no liso. Ele faz parte de uma vanguarda que chamo de “vanguarda distraída”. Linguagem urbana, vitalidade em cada vírgula. No meio da distração, ele cisma de vez em quando de enviar um poema para algum concurso. Ganha, claro. Lembro até que quando o conheci, tinha ganhado um prêmio de honra ao mérito num concurso de poesia latino-americana realizado na Alemanha.

Depois ele ficou entre os 5 melhores de uma revista chamdada Ipsis-Literis. Quando li os versos que ficaram em primeiro, gostei mas não amei. Apenas confirmei a insuficiência desses concursos. Os poemas que ficaram em primeiro lugar tinham todo um clima de aplicação das teorias aprendidas na academia, enquanto que nos poemas do Anderson (que mereciam de longe o primeiro lugar) parecia que a língua estava acabando de ser inventada, sem compromisso com a história da literatura, sem compromisso com ninguém, originais e consistentes. uma pena eu não estar com eles aqui (no meio de muitas mudanças, meus livros ficaram dispersos e não encontro mais nada).

Mas em todo caso, vou deixar dois outros, publicados no jornal estilingue #3 em 2004 enquanto ficamos na torcida para ele lançar logo um livro:

as ruas em alta velocidade se estraçalham em esquinas
as estradas não têm quinas

as ruas e as estradas tentam todos os meios de despitar-se
em curvas, em pontes, em bifurcações

as ruas de mãos dadas
uma rua sem saída é uma rua só

há poemas pobres e planos como ruas

o poema é uma rua fantasma
que atravessa uma cidade fantasma
onde passam navios fantasmas
que deixam garrafas com manuscritos

e que manuscritos
enchem de amantes submarinos
as cidades em ruína

.

durmo de olhos abertos
meu irmão e seus brinquedos de guerra
minha irmã e suas guerras de brinquedo
disputo com os escorpiões meus sapatos
pendurei o espelho e caíram todos os quadros
vasculho cabides e gavetas
mas nada de meu
infilitra na solidão uma calma cotidiana
chove
moro em um morro forte onde uma árvore grande foi derrubada por um raio
ter uma moto e acelerar sem temer a árvore atravessada
chuva que diz sim em clarões

.