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Conversa de abertura do Cineclube Mocambo: Dénètem Touam Bona e Leo Gonçalves

O ano era 2021. Ano do refúgio. Ano da peste.

Eu tinha ido morar em Bom Despacho para fazer o meu Decameron, minha fuga da pandemia. Para quem não sabe, o Decameron, de Bocaccio, é uma coleção de contos e novelas medievais. Dez pessoas narram cada qual dez histórias, para ocupar o tempo de seu refúgio em meio à epidemia de Peste Bubônica que se espalhou pela Europa naquele período.

As lives foram o Decameron da época.

Eu tive o privilégio de fazer algumas lives épicas. Esta foi uma delas.

Na abertura do Cineclube Mocambo, a convite do Gabriel Araújo e do Jackson Dias, eu pude conversar com Dénètem Touam Bona, autor de Cosmopoéticas do refúgio. Ele, que se considera um autor afropeu, organizou esse livro especialmente para a edição brasileira. Em diálogo e consonância com o pensamento de autores como Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Labou Tam Si e, mais secretamente, de Édouard Glissant, ele apresenta o lindo pensamento do refúgio. A ideia da marronagem como uma iniciativa que subverte os modos de dominação próprias do capitalismo e de seu ancestral, o colonialismo. O quilombo, o mocambo, a marronagem, a aldeia indígena, a floresta seriam as melhores formas de refúgio contra um sistema que esmaga as populações do mundo e nos leva a uma rendição constante? Ou talvez isso se estabeleça pelas estratégias sutis, pela fuga, no sentido musical mesmo, pelo escape indireto mas eficaz diante daquilo que o sistema impõe?

É um pouco sobre tudo isso essa conversa.

Retendre la corde vocale: Anthologie de la poésie brésilienne vivante

Retendre la corde vocale: anthologie de la poésie brésilienne vivante | Revue Bacchanales nº 55

Em outubro, a revista Bacchanales, da Maison de la poésie Rhône-Alpes, publica uma antologia de poesia brasileira viva, com tradução, organização e apresentação de Patrick Quillier. São ao todo 29 poetas brasileiros, montando um recorte de várias gerações que vão de Ferreira Gullar, nascido em 1930 a Reuben da Rocha, nascido em 1984.

Todos os detalhes dessa antologia remetem a uma atividade de artesão. Patrick Quillier, poeta atento às mínimas sonoridades, realizou as traduções com um habilidade incrível. Sempre atento aos mínimos sons, trocadilhos, jogos, rimas. Fez a escolha com um respeito à grande diversidade cultural do Brasil, respeito que nem mesmo os antologistas daqui costumam ter. E, por fim, o “Prélude” mostra um pouco do que realmente se vive hoje em poesia por aqui, comenta de alguns que se foram, mas que permanecem. Leminski, Adão Ventura, Orides Fontela, Roberto Piva, Torquato Neto, Hilda Hilst. Lembra autores que ele, por alguma razão ou outra, não conseguiu manter na seleção: Adélia Prado, Antonio Cícero, Carlito Azevedo, Edson Cruz, Paulo Henriques Britto, Claudia Roquette-Pinto, Marcelo Sahea, entre tantos outros.

“Retendre la corde vocale” porque, segundo Patrick, “Todos, cada um [dos 29 poetas] a seu modo, retesaram a corda vocal para afiná-la à singularidade de seu timbre respectivo.” São eles: Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Zuca Sardan, Sebastião Nunes, Regina Célia Colônia, Elizabeth Veiga, Lu Menezes, Eliane Potiguara, Cuti, Adriano Espínola, Salgado Maranhã, Régis Bonvicino, Josely Vianna Baptista, Ricardo Aleixo, Ronald Augusto, Edimilson de Almeida Pereira, Cida Pedrosa, Marcos Siscar, Renato Negrão, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Dirceu Villa, Leo Gonçalves, Ricardo Domeneck, Marília Garcia, Fabiana Faleiros, Érica Zíngano, Juliana Krapp, Reuben da Rocha.

Para degustação, deixo aqui a tradução do poema que dá título à publicação. E espero encontrar tempo em breve para colocar aqui uma tradução do “Prélude”.

*

POÉTIQUE
(Leo Gonçalves)

retendre la corde vocale
sur un axe de 440 hertz

systématiquement
(d)étonner

et noter à la pointe du couteau
le v de la flèche-verbe

oindre la flèche
d’herbes sauvages

herbe qui soigne
herbe qui tue

après qu’on a dé-
chanté : lancer en l’air

percer les oreilles
œil pour œil temps pour tambour

Poesia no Vale do Esteron – Aiglun

Leo Gonçalves - Patrick Quillier - Georges de Riva

Nos dias 06 e 07 de agosto, participei de duas atividades no vilarejo de Aiglun, na região dos pré-Alpes, próximo à cidade de Nice. Na primeira soirée, eu e o meu amigo Patrick Quillier, falamos poemas do livro Use o assento para flutuar em versão bilingue, inaugurando assim as recém-feitas, incrivelmente bem feitas, traduções dos meus poemas para o francês, pelas hábeis mãos do Patrick. A noite se completou com uma pequena apresentação musical de Elizabeth Woolley.

Na segunda soirée, realizamos um animado debate entre Leo Gonçalves e Georges de Rivas, mediado e traduzido por Patrick. Falamos de nossas diferentes visões sobre a poesia, de onde ela nos alimenta, nossas inquietudes.

Os eventos aconteceram na capela de Sainte Marie de la Source. Capela de belo nome, para a qual não deixei de saudar com meu poema “Caiaia”.

Use el asiento para flotar

Use el asiento para flotar :: Traducción de Fernando Reyes Trinid :: Cisnegro - Lectores de alto riesgo

Já estão em minhas mãos os exemplares de Use el asiento para flotar, uma plaquete com 6 dos poemas de Use o asssento para flutuar, meu livro mais recente. A tradução é de Fernando Reyes, e a edição foi realizada por Andrés Cisneros. A publicação traz para a cidade do México um pouco do que venho produzindo e coroa (para minha alegria) a inesquecível estada, a acolhida carinhosa que recebi dos mexicanos desde que cheguei aqui, no dia 15 de março para o Festival Internacional de Poesia Ignacio Rodriguez Galván.

Jean-Joseph Rabearivelo e sua fala-canto na Modo de Usar e Co.

Jean-Joseph Rabearivelo

O poeta Jean-Joseph Rabearivelo (Madagascar 1901-1936) é uma figura enigmática no contexto da literatura mundial. Com uma imaginação gnóstica, forte influência do romantismo-simbolismo francês, especialmente Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, paixões que ele costumava declarar em seus textos, e uma tendência a transpor para o ambiente malgaxe esse seu gnosticismo, preenchendo de tambores, ritos, tradições e animismo seus poemas, ele pode ser considerado uma espécie de precursor da Negritude de Senghor e Césaire, bem como uma dos poetas mais interessantes do século XX.

Considero seu poema “Ny Tononkira”, escrito simultaneamente em malgaxe e em francês, extremamente significativo para aquilo que venho pensando. Ele aponta, a meu ver, para um projeto de “verbo atuante” tal como eu e meu parceiro Benjamin Abras andamos formulando. Também aponta para a fala-poema, a palavra em movimento, performáticas, das minhas interlocuções com Ricardo Aleixo. Fervuras.

Quem quiser lê-lo, é no: http://revistamododeusar.blogspot.de/2015/08/taducao-inedita-de-leo-goncalves-para.html

Dan Hanrahan e a Língua de Aruanda

Photo: Pablo Urbiztondo
Photo: Pablo Urbiztondo

Conto aqui uma experiência que há muito sinto falta de relatar.

No final de 2013, às voltas com certo projeto, pedi ao meu amigo Dan Hanrahan um favor/desafio, desses que não se faz a qualquer hora nem a qualquer um: que traduzisse alguns poemas meus. Para minha sorte, ele topou. Mas a tarefa, embora não impossível, não era tão fácil. Isso porque os poemas que enviei estavam carregados de jogos de palavras, especificidades da cultura brasileira e, por vezes, palavras de origem africana que tinham grande importância na composição do poema.

Este que foi o começo de um grande diálogo que ainda está em movimento, foi para mim um grande presente. Isso porque Dan logo compreendeu o ritmo daqueles poemas, seus aspectos míticos e ritualísticos, dançou junto comigo, me contou histórias de experiências suas com as tradições negro-atlânticas (voodoo haitiano e arredores) e não só fez um trabalho impecável como também gravou para mim cada poema para que eu conhecesse a sua sonoridade, me presenteando com algo que ambos valorizamos: o registro oral como obra única e com semiótica própria.

Ao final, ele traduziu: “Ofó para o ventre dela [Ofo for her belly]”, “Mutacalambo” e “Língua de Aruanda [Language of Aruanda]”. Para deixar um gostinho da experiência, incluo aqui o poema em inglês (esta tradução já foi publicada na Revista Babelsprech num artigo interessantíssimo de Ricardo Domeneck sobre a poesia brasileira) e sua vocalização. Os demais, guardo para um momento mais provocativo.

Language of Aruanda

my grandmother who was the daughter of a daughter
my grandmother who was the grandma of a grandma
stuttered and sang as a young girl
a song lost in the farthest away
a song that I myself still sing by heart
not knowing what it means
unsure if I sing it right
I know that when I sing
my body hums
my blood flows
and there isn’t an evil eye that survives
this ancient song
that my ancestors carved in the echo
of my grandparents’ voices

*
Dan Hanrahan é poeta, tradutor, compositor, violonista, cantor, performer, dentre uma grande multiplicidade de vidas que encarna na sua forma de estar no mundo. Nascido em Chicago, vive em Baltimore. Crítico ferrenho da falida civilização ocidental, Dan escreve no blogue www.danhanrahan.blogspot.com.br. Acaba de lançar o disco “Three waves”, sobre o qual espero ainda falar por aqui.

Jacques Prévert

Canção do carcereiro

Aonde vai meu carcereiro
Com essa chave manchada de sangue
Vou libertar aquela que amo
Se é que ainda é tempo
E que eu mesmo aprisionei
Ternamente cruelmente
No meu mais oculto desejo
No meu mais profundo tormento
Nas mentiras de futuro
Nas besteiras das promessas
Eu quero libertá-la
Quero que ela seja livre
E mesmo que me esqueça
E mesmo que vá embora
E mesmo que ela volte
E que ainda me ame
Ou que ame um outro
Se um outro lhe apraz
E se eu ficar na solidão
E ela tiver partido
Eu guardarei apenas
Eu guardarei para sempre
No oco de minhas duas mãos
Até a minha última hora
A doçura dos seus seios modelados pelo amor

(Jacques Prévert em tradução improvisada e em processo de refeitura a cada vez que o coração pede novamente, por Leo Gonçalves)

Chanson du geolier
Où vas-tu beau geôlier/Avec cette clé tachée de sang/Je vais délivrer celle que j’aime/S’il en est encore temps/Et que j’ai enfermée/Tendrement cruellement/Au plus secret de mon désir/Au plus profond de mon tourment/Dans les mensonges de l’avenir/Dans les bêtises des serments/Je veux la délivrer/Je veux qu’elle soit libre/Et même de m’oublier/Et même de s’en aller/Et même de revenir/ Et encore de m’aimer/Ou d’en aimer un autre/Si un autre lui plaît/Et si je reste seul/Et elle en allée/Je garderai seulement/Je garderai toujours/Dans mes deux mains en creux/Jusqu’à la fin de mes jours/La douceur de ses seins modelés par l’amour

Leo Gonçalves em francês

Foto (frame): Ricardo Aleixo
Foto (frame): Ricardo Aleixo

Como eu ia dizendo, tomei gosto pelo lance de fazer versos em francês. Ao terminar de verter poemas do Ricardo para o francês, ele me pediu que traduzisse meu poema Transatlântico também. Me lembrei de três poetas: Manuel Bandeira, Vicente Huidobro e Jean-Joseph Rabearivelo.

No livro Itinerário de Pasárgada, Bandeira relata a encomenda que lhe havia sido feita de traduzir para o português os poemas “Chambre vide” e “Bonheur lyrique”, dele mesmo, escritos originalmente em francês. Ele conta que foi um grande desafio, passa um bom tempo fazendo tentativas e conclui que um poeta não deve traduzir seus próprios versos.

Bandeira era um romântico.

Vicente Huidobro, o inaugurador da modernidade chilena, por outro lado, dizia que, como exercício de estranhamento, o poeta deveria se aventurar a fazer um mesmo poema em línguas diferentes. “Arte poética”, por exemplo, um de seus maiores primores, extremamente inventivo, foi feito primeiro em francês e depois em espanhol. Em ambos os casos, não está escrito em língua vernacular, e sim em sua própria linguagem de artista.

O terceiro, Jean-Joseph Rabearivelo, muito mais radical, escrevia entusiástica e simultaneamente em malgache e francês, como é o caso de Presque-songes/Sari-Nofy. Poemas tomados da experiência africana, com grande apelo para a oralidade, rítmicos, musicais. Tanto em francês quanto na língua de Madagascar. Procurei me inspirar principalmente nele.

O experimento é, portanto, não traduzir, mas refazer alguns de meus poemas em outra língua. Deixo aqui uma amostra, aproveitando os ensejos e preparativos para o Salon du Livre de Paris.

TRANSATLANTIQUE

repousser le jour de quitter la mer
se mêler à la mer
sans prétendre dompter la mer
être de la mer
faire que la mer
en étant miroir se regarde
sous l’accord du ciel
sans horizons ni limites
accepter que la mer
devienne dérive
sirène et tous les êtres
immergés ou hébergés
dans chaque peau chaque proie
devenir mer peau sur peau
avoir des branchies
des ouïes
et des nageoires
pour être à la mer
oublier de repousser les jours
et se renverser là-bas
pacifiquement
traverser la mer
dans une pirogue
un transatlantique
ou un voilier
aller n’importe où
aller où le vent porte
écouter les coquilles lire sur les cauris
et se laisser emmener
se laisser emmener par la mer
mourir à la mer dormir à la mer
vivre la mer
infinitive mer

*
TRANSATLÂNTICO

adiar o dia de sair do mar
se enturmar com o mar
sem querer domar o mar
ser do mar
fazer com que o mar
em ser espelho olhe-se
no acordo do céu
sem horizontes nem limites
aceitar que o mar
em sendo mar se torne léu
sereia e todo ser
que se molha que se olha
em cada pele cada prole
tornar-se ele pele com pele
formar brânquias
formar guelras
e barbatanas
para estar no mar
querer morar no mar
esquecer os dias de adiar
e se espraiar por lá
pacificamente
atravessar o mar
num barco a vela
num transatlântico
ou num vapor
seguir por onde for
seguir por onde o vento indicar
ouvir as conchas ler os búzios
e deixar-se levar
deixar-se levar no mar
morrer no mar dormir no mar
viver o mar
infinitivo mar

****

AUTRE POÉTIQUE

désinventer la langue
dans chaque parole
l’ashé s’agit
de se faire la gueule

les voyelles et les consonnes
on les mâche
le verbe couvre le corps
comme les poils la vache

la racine des mots
tu me l’annonces
c’est la gueule de qui
les prononce.

*

OUTRA POÉTICA

desinventar a língua
em cada fala
o axé consiste
no que a boca cala

mastigar com vontade
as vogais e as consoantes
o verbo cobre o corpo
como a folha a planta

a raiz das palavras
você me dizia
é a garganta
de quem as pronuncia

p/ benjamin abras

Alice Ruiz em francês

Alice Ruiz
Foto: Christian Franz

 

Na virada de 2014 para 2015, recebi um desafio da Alice Ruiz: verter poemas dela para o francês. Achei difícil a proposta. Embora trabalhe há muitos anos com o francês, nunca tinha me aventurado a fazer versos na língua. Mas adoro desafios. E tomei gosto pela coisa. E traduzi também uns versos do Ricardo Aleixo e meus. Vou botar as notícias a conta gotas. Pra durar mais.

3 poèmes d’Alice Ruiz (traduits par Leo Gonçalves)

1.
au principe c’était le silence
seul les marées le cassaient
au principe c’étaient les marées
et leur rythme

au principe c’était le rythme
et le rythme est devenu son
et le verbe s’est fait
et le verbe a vu que le son était bon

au principe le rythme était là
pour que tous ensemble
conduisaient mieux
leur vaisseaux

ensuite il est devenu chanson
et poésie, pour principe

*

no princípio era o silêncio
só quebrado pelas marés
no princípio eram as marés
e seu ritmo

no princípio era o ritmo
e o ritmo transformou-se em som
e fez-se o verbo
e o verbo viu que o som era bom

no princípio o ritmo serviu
para que todos juntos
conduzissem melhor
sua embarcação

depois virou canção
e poesia, por princípio

2.
il était une fois
une femme
qui voyait
un futur d’or
pour
chaque homme
qu’elle touchait

un jour, alors,
elle s’est touchée

*

era uma vez
uma mulher
que via
um futuro
grandioso
para
cada homem
que a tocava

um dia
ela se tocou

3.
SANS RECETTE

D’un geste précis et si doucement
enlever la peau
cette limite de la matière.
Mais celles des ailes, ne pas toucher
elles se collent aux épaules
comme si allaient encore voler.

Les cuisses, libres et fermes
seront écartées
et écartées elles resteront
et la poitrine
sa chair si blanche et nue
n’y pensez pas
la proximité du cœur, non,
pas celui-là
qui peut savoir
comment assaisonner le cœur.

De l’intérieur
garder les viscères pour accompagner.
arroser les herbes
égrener le sel
allumer le feu
marquer le temps.
Finalement pour farcir
l’innocente pomme rouge
qui si douce, humide, indiscrète
nous a ôté du paradis
et nous a fait ainsi
sans recette

*

SEM RECEITA

Primeiro, lenta e precisamente,
arranca-se a pele
esse limite com a matéria.
Mas a das asas melhor deixar
pois se agarra à carne
como se ainda fossem voar.

As coxas, soltas e firmes,
devem ser abertas
e abertas vão estar
e o peito nu
com sua carne branca
nem deve lembrar
a proximidade do coração
Esse não. Quem pode saber
como se tempera um coração?

Limpa-se as vísceras,
reserva-se os miúdos
para acompanhar.
Escolhe-se as ervas,
espalha-se o sal,
acende-se o fogo,
marca-se o tempo
e, por fim, de recheio,
a inocente maçã,
que tão doce, úmida e eleita
nos tirou do paraíso
e nos fez assim:
sem receita


musique Zé Miguel Wisnik