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caymmi encontra o canoeiro

acordo no domingo com vontade de informação. abro alguns blogues. encontro caetano que diz: “caymmi completou sua vida luminosa”. entendo tudo. fico triste. caymmi foi na jangada e a jangada voltou só. ele tinha 94 anos e pouco mais de 80 canções compostas. 80 canções inesquecíveis que ensinaram pro brasil o que é que tem no tabuleiro da baiana. sem caymmi não tinha bossa nova, não tinha tropicália, nem o renascimento do samba nos anos setenta, nem muitas outras coisas que formam aquilo que chamamos hoje de brasil.

foi também ele que ensinou a música brasileira a gostar desavergonhadamente dos seus orixás, da sua cor, da sua miscigenação cultural e biológica. o toque do tambor e a beleza da mulher negra nas consoantes oclusivas de “atrás do dengo desta nega/todo mundo vem” cantados como se nem poesia fosse. o poeta antropólogo antônio risério (no seu livro mais recente), comentando sobre “a lenda do abaeté” lembra a rima trimestiça como um símbolo da nossa mistura racial (“batucajé” é vocábulo híbrido de banto e iorubá. “abaeté” é tupi. e “quisé” é português):

no abaeté tem uma lagoa escura
arrodeada de areia branca
ô de areia branca
ô de areia branca

de manhã cedo
se uma lavadeira
vai lavar roupa no abaeté
vai se benzendo
porque diz que ouve
ouve a zoada
do batucajé

o pescador
deixa que seu filhinho
tome jangada
faça o que quisé
mas dá pancada se o seu filhinho brinca
perto da lagoa do abaeté
do abaeté

a noite tá que é um dia
diz alguém olhando a lua
pela praia as criancinhas
brincam à luz do luar

o luar prateia tudo
coqueiral, areia e mar
a gente imagina quanta a lagoa linda é

a lua se enamorando
nas águas do abaeté
credo, cruz
te desconjuro
quem falou de abaeté
no abaeté tem uma lagoa escura

antônio cícero na oficina que deu há um ano atrás em diamantina, comentava que um poema se torna um clássico quando entra para o repertório da língua. e não é preciso ser nenhum gênio para perceber que canções como “o que é que a baiana tem?” e “você já foi à bahia?” contêm alguns dos adágios mais comuns na fala coloquial de qualquer região brasileira. cícero tem razão. afinal, “quem não tem balangandãs não vai ao bonfim”.

caymmi me lembra a minha infância. quando eu era menino, não tínhamos muita música em casa. do pouco que rolava, meu pai gostava de ouvir coisas incomuns, cantadas em línguas estrangeiras ou os antigos cantores do rádio. mas a música que eu nunca esqueço e que ficou gravada nas faixas da minha memória é “o mar”, na voz do dorival, acompanhado de um violãozinho calmo e delicado. provavelmente esta será a única canção que cantará na minha cabeça no dia da minha morte.

marcelino freire – para iemanjá

oferenda não é essa perna de sofá. essa marca de pneu. esse óleo, esse breu. peixes entulhados, assassinados. minha rainha. não são oferenda essas latas e caixas. esses restos de navio. baleias encalhadas. pingüins tupiniquins, mortos e afins. minha rainha. não fui eu quem lançou ao mar essas garrafas de coca. essas flores de bosta. não mijei na tua praia. juro que não fui eu. minha rainha. oferenda não são os crioulos da guiné. os negros de cuba. na luta, cruzando a nado. caçados e fisgados. náufragos. minha rainha. não são para o teu altar essas lanchas e iates. esses transatlânticos. submarinos de guerra. ilhas de ozônio. minha rainha. oferenda não é essa maré de merda. esse tempo doente. deriva e degelo. neste dia dois de fevereiro. peço perdão. minha rainha. se a minha esperança é um grão de sal. espuma de sabão. nenhuma terra à vista. neste oceano de medo. nada. minha rainha.

texto do marcelino freire recitado por fabiana cozza no show mo gbe orisa.

fabiana cozza coruscante

fabiana cozza, em

a sala juvenal dias estava transbordando nesta última quinta-feira. sucesso para além das expectativas, o espetáculo mo gbe orisa, de fabiana cozza foi uma verdadeira festa sonora. quebrando os protocolos, fabiana aproveitou para atender praticamente todos os pedidos e ainda teve uma conversa carinhosa com o público que saiu de lá inebriado.

um espectador falou que ela parecia um orixá no palco. e de fato, ela irradiava simpatia, alegria, emoção. não é à toa que o show, concebido especialmente para essa noite do griot, tinha como nome a frase que em iorubá significa “trago em mim o orixá”. uma grande surpresa para boa parte do público, que mal conhecia o nome da cantora. foram mais de duas horas de música boa, poesia e bate-papo. cds esgotados, lágrimas de alegria e sorrisos estampados na cara. uma verdadeira celebração da vida.

cheia de molejo, ela interpretou canções como “estrela guia”, do sérgio pererê, “xangô te xinga”, de leandro medina e o clássico “canto de ossanha”, de vinícius de moraes e baden powell. “eu também adoro cantar músicas de dor profunda”, ela disse em certo momento. e alguém lá da platéia gritou “manda uma triste”. e gentilmente fabiana cedeu. cantou um clássico dor-de-cotovelo, desta vez cubano: “vete de mí”, de bola de nieve. e não chorou sozinha. outro momento inesquecível foi o “canto para iemanjá”, seguido de “agradecer e abraçar” que desemboca no texto “para iemanjá”, de marcelino freire. duas canção azuis.

difícil de falar desta noite de xangô sem superlativos.  em todo caso, já está agendado: em setembro, fabiana volta com seu show “quando o céu clarear”. se não me engano, no grande teatro. o melhor negócio é não perder! mas enquanto ela não volta, vale a pena fazer um passeio pelos seus espaços na rede.

www.fabianacozza.com.br
www.fabianacozza.blogspot.com
www.myspace.com/fabianacozza

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a utopia brasileira e os movimentos negros

a utopia brasileira e os movimentos negros, de antônio risério

acabo de ler um dos melhores livros que tive em mãos nos últimos tempos: a utopia brasileira e os movimentos negros do poeta e antropólogo antônio risério. não fosse estar atarefadíssimo nos últimos dois meses, teria lido o livro numa talagada só. mesmo assim, muita gente deve ter me visto andando por aí feito um louco, caminhando pelas ruas com o livro na frente, às vezes apressado para chegar no próximo compromisso, mas lendo sofregamente – ansioso para saber o próximo passo, a próxima palavra, o próximo beliscão. confesso que quando vi pela primeira vez na livraria o título “a utopia brasileira e os movimentos negros”, tive um certo desânimo: mais um livro avaliativo sobre o movimento negro no brasil. além disso esse papo de “utopia brasileira”… sei não. olhei com certa desconfiança, mas fui especialmente atraído pelo nome do autor. e não me arrependi. risério é, para quem não o conhece, no mínimo um dos caras que, com seu livro “oriki, orixá”, mais me fez a cabeça nos últimos anos. você lê um pouco sobre ele na revista zunái. o impacto desse novo livro é tão forte pra mim, que ainda preciso digerir um pouco. em breve, quero colocar aqui a minha resenha. enquanto não faço isso, deixo vocês com o índice do livro. segundo o marcelo terça, era um dos poemas que eu devia ter lido no sarau do dia 13 de maio lá no balaio de gatos. recitado outro dia pelo amigo helder quiroga, a sugestão se mostrou interessante.

A UTOPIA BRASILEIRA E OS MOVIMENTOS NEGROS

por um olhar brasileiro
mestiçagem em questão
mulato, o visível e o invisível
em busca de ambos os dois
a morte dos deuses nos EUA
presença de exu
sob o signo do exorcismo
sincretismo e multiculturalismo
trilhos urbanos
palavras, palavras, palavras
imagens, tambores e melodias
a escola brasileira de futebol
movimentos negros ontem
movimentos negros hoje
a nova história oficial do brasil
toque final