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Frederick Douglass

O livro Autobiografia de um escravo, de Frederick Douglass, foi publicado em 2021 pela editora Vestígio. Trata-se da famosa Narrative of the life of Frederick Douglass, an american slave. Um relato impactante e pungente da vida de um homem que, nascido na escravidão, acabou por se tornar consciente de sua condição, lutar por sua dignidade ainda em meio às mazelas do cativeiro, e lutar por longos anos até conseguir realizar uma fuga exitosa. Evento sem o qual este homem não teria se tornado o que se tornou: o homem negro mais influente dos Estados Unidos no século XIX.

A edição deste livro, bem como a sua tradução, introdução e notas, esteve a cargo de Oséias Silas Ferraz. O livro traz também um texto de apresentação de Silvio Almeida. Alguns dos poemas presentes ao longo do texto foram traduzidos por Guilherme Gontijo Flores. O texto da orelha foi escrito por Leo Gonçalves (eu-mesmo).

Douglass narra toda a sua vida até o momento da publicação, em 1945, quando ele tinha pouco mais de vinte anos de idade. Conta dos horrores da vida no ambiente da escravidão, das famílias para as quais ele prestou servidão, os diferentes trabalhos que um escravizado pode ter que fazer e as relações formais que era obrigado a manter nos diferentes ambientes.

Um momento marcante em sua trajetória é aquele em que uma patroa decide ensinar-lhe (ele muito menino) a ler e escrever. Ela seria obrigada a parar o processo, repreendida pelo marido que lhe explicou que a educação “era perigosa para os escravos”. Mas a partir de então, ele percebeu o quanto seria importante aprender a ler e a escrever. E foi aprendendo como pôde, autodidata e enxerido, sempre às escondidas.

Mais tarde ele usaria seu tempo livre, aquele que lhe era concedido aos domingos. “Tive uma escola sabática na casa de um negro liberto cujo nome considero imprudente mencionar (…). Tive em certo momento mais de 40 alunos, e daqueles da melhor espécie, desejando ardentemente aprender”, ele declara. E prossegue: Eram de todas as idades, embora a maior parte adultos de ambos os sexos. Lembro-me daqueles domingos com um praer tão grande que não pode ser expresso. Foram dias imensos na minha alma.” (p. 103)

Há várias passagens emocionantes no livro, mas para mim, nada se compara a esse momento: “O trabalho de instruir meus queridos companheiros de escravidão foi a tarefa mais doce com a qual eu alguma vez fui abençoado. Nós nos amávamos, e deixá-los a fechar o Sabbath era mesmo uma pesada cruz.” (p. 103) E mais adiante:

Essas almas queridas não vinham para a escola sabática porque isso fosse popular, nem eu os ensinava porque fosse respeitável estar assim ocupado. A todo momento que eles passavam naquela escola, eles corriam o risco de serem pegos e de tomarem 39 chibatadas. Eles vinham porque queriam aprender. Suas mentes estavam morrendo à míngua por conta da crueldade de seus senhores. Eles foram trancados na escuridão mental. Eu ensinava a eles porque era um deleite para a minh’alma estar ocupado em algo que parecia estar melhorando a condição da minha raça.

Essa passagem faz um relato de cumplicidade, afeto, coragem, persistência, como poucos relatos na literatura foram capazes de produzir. É pungente o modo como vai sendo denunciado ao longo da obra, o esforço dos proprietários brancos para reduzir a mente dos seus escravizados, transformando-os em meras máquinas, máquinas cansadas, máquinas sem vida, sem esperança. Assim, quando Douglass relata o tempo de suas aulas de alfabetização, ele consegue mostrar o quanto esse esforço dos fazendeiros era vão. Que quando muito, essas almas se recolhiam no interior de mais e mais camadas. “Eles eram almas nobres”, ele conclui.

Livro: Autobiografia de um escravo
Autor: Frederick Douglass
Tradução: Oséias Silas Ferraz
Editora: Vestígio
Ano da edição: 2021
Apresentação: Silvio Almeida

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Texto da orelha:

por Leo Gonçalves

Em 2015, o estado de Maryland ganhou notoriedade devido a uma violenta onda de protestos, após o assassinato do jovem negro Freddie Gray, morto pela polícia. Sinistras estruturas ligam a história de Freddy Gray a outras pessoas negras desde o século XVII, quando Maryland se destacou no mercado mundial através do tabaco e da escravidão negra.

Foi também em Maryland que nasceu o primeiro gênero literário protagonizado por pessoas negras nos Estados Unidos: a narrativa de escravos. O pioneiro foi Ayuba Suleiman Diallo, abastado senegalês capturado em 1731 e levado para Maryland como escravo. Esperto e inteligente, ele não aceitou a nova condição e usou diversos expedientes para escapar. Suas histórias foram registradas no livro Algumas memórias da vida de Job, filho de Solomon (1734).

A Narrativa de Escravos teve, desde então, enorme lista de autores: James Gronniosaw, Olaudah Equiano, William Grimes, Nat Turner, William Wells Brown, Henry Bibb, Charles Ball, Moses Roper, Lewis e Milton Clarcke, Sojourner Truth, William e Ellen Craft, Harriet A. Jacobs, Jacob Green, William Wells Brown, Josiah Henson e tantos outros que acabaram por influenciar o discurso do ativismo negro no século XIX. O gênero no qual o ex-escravo encontra um meio de organizar suas memórias e descrever suas experiências mais pungentes continua a ser foco de interesse e atenção, haja visto o sucesso do filme Doze anos de escravidão (2013), baseado nas memórias de Solomon Northup.

Frederick Douglass, importante figura da história americana, símbolo de luta e resistência para os movimentos negros, nasce e começa a encontrar uma espécie de terra natal neste interessante livro. Sendo o que se chamava “escravo para toda a vida”, aprendeu a ler por seus próprios meios, enfrentando obstáculos e inventando estratégias para obter o aprendizado, que lhe abriu a dimensão subversiva da leitura e do conhecimento, que os proprietários brancos tratavam como ruim para os negros algo que lhes traria infelicidade.

Neste livro, Douglass se vale de todas as técnicas de escrita que tem à mão, inventando uma poderosa obra literária, e de um sucesso inaudito. Floreada de versos potentes aqui ali, e recursos avançados de inversão de frases, evocando um tom bíblico, tudo em meio a uma sedutora narrativa que deixará o leitor pendurado nos lábios do narrador, esta Narrativa de Escravo se estabelece como um momento único e marcante na história literária dos Estados Unidos.

O garoto perdido e solitário, sem pai nem mãe, sem origem nem pátria, exilado em seu próprio país, acaba por descobrir sua terra natal: a palavra, que o tornaria mais tarde o mais célebre dos homens negros nascidos no século XIX. Seus escritos, bem como sua imagem que se repete incessantemente até os dias de hoje, mostram um olhar profundo, tomado da coragem de fazer a diferença na luta pela libertação de seu povo. O mesmo povo que ainda se vê diante de aflições impostas por descendentes daqueles que outrora os raptaram, escravizaram e tiraram tudo, até a respiração, a exemplo dos tantos Freddie Gray e George Floyd de hoje e de sempre.