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aimé césaire

aimé césaire é um dos mais interessantes poetas vivos pelo mundo afora. foi ele que, ao lado de léopold sédar senghor, encabeçou o movimento da negritude no final dos anos 30. aliás, foi ele quem cunhou este termo que passou a ser usado em toda manifestação de afirmação dos negros ao ponto de perder a força original (césaire queria tirar a palavra de sua condição pejorativa e usá-la ao favor de uma cultura: a cultura das “folhas que resistem ao vento”. em outras palavras: transformar o tabu em totem.)

assim como seu camarada, césaire é uma das melhores cabeças que surgiram no século xx.

na última segunda-feira, dia 25 de junho, ele comemorou seus 94 anos. infelizmente, não o conheço pessoalmente ainda, mas me senti privilegiado em ser contemporâneo dele.

deixo aqui a minha homenagem: a tradução de um poema recente, publicado em um livro chamado “moi, laminaire”. saravá césaire (que significa ave caesar)!


palavra-macumba

a palavra é mãe dos santos
a palavra é pai dos santos
com a palavra serpente é possível atravessar um rio
povoado de jacarés
me acontece desenhar uma palavra no chão
com uma palavra fresca pode-se atravessar o deserto
de um dia
existem palavras remo para afastar tubarão
existem palavras iguana
existem palavras sutis essas são palavras bicho-pau
existem palavras de sombra com despertadores em cólera faiscante
existem palavras Xangô
me acontece de nadar malandro nas costas de uma palavra golfinho

mot macumba
le mot est père des saints/le mot est mère des saints/avec le mot couresse on peut traverser un fleuve/peuplé de caïmans/il m’arrive de dessiner un mot sur le sol/avec un mot frais on peut traverser le désert/d’une journée/il y a des mots bâtons-de-nage pour écarter les squales/il y a des mots iguanes/il y a des mots subtils ce sont des mots phasmes/il y a des mots d’ombre avec des réveils en colère d’étincelles/il y a des mots Shango/il m’arrive de nager de ruse sur le dos d’un mot dauphin

negritude césaire, negritude senghor

minha negritude não é uma pedra, sua surdez gritada contra o clamor do dia
minha negritude não é uma nódoa de água morta no olho morto da terra
minha negritude não é nem uma torre nem uma catedral
ela mergulha na carne rubra do chão
ela mergulha na carne ardente do céu
ela perfura o golpe opaco de sua destra paciência

aimé césaire – do cahier d’un retour au pays natal

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minha negritude não é sono da raça ela é sol do espírito, minha negritude é ver & viver
minha negritude é enxada na mão, lança em punho
recado. não é questão de beber de comer o instante que passa
azar se me enterneço sobre as rosas do cabo verde!
minha tarefa é a de despertar o meu povo aos futuros flamejantes
minha alegria de criar imagens para nutri-lo, oh luminosidades ritmadas da Palavra!

léopold sedar senghor – élegie des alizés

notas sobre a negritude

pode procurar por aí. o termo negritude é encontrado por toda parte. uma banda de pagode, um portal de web, uma linha fashion, coluna reservada para assuntos afro no jornal. poucos sabem que a palavra se espalhou por todo o mundo por causa de um movimento literário ocorrido nos anos 30, sob a tutela de três grandes escritores: aimé césaire, leon gontram damas e léopold sédar senghor.tudo começou assim: um jovem estudante estigmatizado pela cor da pele publica no jornal l’étudiant noir um artigo defendendo a beleza e o valor de sua ‘negritude’. uma atitude repleta de mandinga e de gingado, pois estava usando um termo pejorativo a seu próprio favor. quando léopold sédar senghor leu o artigo, ficou empolgadíssimo, pois ninguém conhecia melhor do que ele a nobreza do seu povo. sintetizou: ‘negritude: o conjunto dos valores de civilização do povo africano.’ o termo transformou-se num conceito. e léopold foi quem levou a expressão às suas mais profundas conseqüências.

senghor nasceu em 1906 e publicou muita poesia, muita pesquisa em diversas áreas (lingüística, antropologia, sociologia, teoria literária) entre os anos 30 e os anos 50. em 1960 recebeu uma proposta dos líderes políticos do senegal: que se tornasse o presidente do país. e com uma vantagem: poderia governar enquanto quisesse. entre 1961 e 1980, quando já era um grande intelectual e poeta, senghor se tornou um dos maiores estadistas que o mundo já conheceu. e qual era o primeiro e grande conceito teórico que o norteou como político? quem responder marxismo, leninismo, maoísmo, castrismo, estará perdendo tempo: o conceito mestre da política senghoriana se chamava ‘negritude’.

a essas alturas, a ‘negritude’ já havia se transformado e crescido a proporções fenomenais. o termo, com o tempo, deixou de ser a afirmação de uma raça pra ser a exaltação de uma postura universalizante. o africano está em toda parte. o conceito se desdobrou depois em ‘mestiçagem’, ainda com o caráter inicial de afirmação dos valores de um povo estigmatizado pela história, mas com ênfase cada vez maior na questão cultural. e já começavam a surgir na própria áfrica movimentos e manifestações que contestavam a ‘négritude’. é o que fez por exemplo wole soyinka, autor nigeriano, hoje prêmio nobel de literatura: “um tigre não precisa declarar sua tigritude, ele salta sobre a sua presa”. o que em todo caso não é senão, um desdobramento da idéia inicial, agora interiorizada no movimento do corpo.

dansa é com “s” ou com “ç”?

os dicionários grafam sempre com ‘ç’. mas gosto de escrevê-la com ‘s’, dansar. segundo o houaiss, esta palavra vem do francês (“danser”) que já a escrevia assim, no ano de 1170. na língua portuguesa, também era assim até a primeira reforma ortográfica do século xx, em 1944.

porém, guimarães rosa, que publicou seus escritos somente a partir de 1954, sempre grafou o vocábulo assim: dansar. “uns mosquitnhos dansadinhos, tanto de se desesperar”.

a explicação que mais gosto está no livro de antônio risério, o oriki orixá: “numa conversa, a bailarina suki [villas boas] me disse que achava uma contradição escrever “dança” com “ç” e não com “s”, já que o “ç” era uma letra visualmente capenga, desengonçada, enquanto o “s”, em seu desenho sinuoso é uma letra danSarina.”

risério, que, como eu, é filho da deusa da dansa e do vento, achou que suki estava com a razão. e eu também acho.

A fala, o melhor espetáculo

 

“Whorf dizia que a fala é o melhor espetáculo encenado pelo ser humano. (…) É que a fala – mediando, entremeando e trespassando todas as nossas atividades cotidianas, inclusive os delírios oníricos – aqui e ali se configura de modo distinto, notável, superando a visada meramente pragmática da comunicação técnica imediata. São pontos luminosos, cristalizações sígnicas diferenciadas em meio ao conjunto total das condutas verbais. E assim podemos nos aproximar do – e talvez flagrar o – momento em que a palavra poética brota da palavra prática, desenhando um torneio digno de nota pelo arranjo dos elementos que o constituem. Desse ponto de vista, se a fala é o melhor espetáculo encenado pelo ser humano, ela às vezes apresenta um espetáculo dentro do espetáculo: a poesia. Mas não se pode, por outro lado, reduzir o poético ao poema. o poético pode se encarnar num poema tanto quanto no futebol, em tiradas que ressoam nas ruas, no paleio mais inconseqüente. Ou seja: há um espetáculo dentro do espetáculo, mas que não coincide necessariamente com os limites do objeto “poema”. Ele pode repontar em qualquer comportamento lingüístico, embora seja a marca registrada das artes da palavra.

Em suma, esses jogos verbais – e poesia é isto, para desespero dos “conteudistas”: jogo verbal – permeiam a nossa vida.”

 

Antônio Risério em Oriki Orixá.