Mário de Andrade, lá no Losango Cáqui, dizia: “a máquina de escrever do meu mano foi roubada/isso também entra na poesia/porque ele não tinha dinheiro para comprar outra.
No dia 16 de outubro, minha amiga Cinthia Mendonça teve sua mochila roubada. O conteúdo: uma câmera fotográfica, um laptop, dois celulares que o fabricante havia cedido a título de empréstimo para a realização do projeto no qual está atualmente envolvida, além de outros objetos pessoais. Levaram objetos de valor financeiro contável, mas a memória contida ali dentro era de valor inestimável.
Viajante assumida, pode-se dizer que a mochila da Cinthia continha uma parte bem considerável de seus pertences. Sua chegada a BH inclui um certo desejo de pousar uns tempos por aqui. Chegou de Recife em julho deste ano. Participava do programa Interações Estéticas da Funarte, em colaboração com a lendária Lia de Itamaracá. Em agosto participou da MIP2 e performou o Sobreabismos numa das calçadas do viaduto Santa Tereza (ironia que a tenham roubado justamente embaixo desse viaduto, ressaltando ainda mais o abismo). Tudo ela ia registrando, transformando em novos projetos. Bons tempos os do Mário, em que o ladrão roubava a máquina de escrever mas não levava o que saía dela.
Foi a Cinthia quem me relatou do incêndio sobre as obras do Hélio Oiticica. Fiquei abismado, é claro, com tudo. Hélio Oiticia incendiado era para mim, à primeira vista, uma espécie de contra-revolução. Uma chacina. Tudo isso já foi muito dito. Quem soube do incêndio e recebeu a primeira informação, vinda do irmão do Hélio, de que 90% havia se perdido e depois não soube mais, lamentou a grosseria da cultura brasileira, despreocupada em manter vivas as descobertas e invenções dos seus melhores artistas. E, como sempre, é preciso lembrar do prestígio que gozam suas obras em outras partes do mundo, evocar o reconhecimento vindo de outros lugares que teriam de certa forma um poder de melhor legitimar a originalidade do nosso quase heliogábalo. E eu aqui pensando: “que pena que não são capazes de reconhecer por si mesmos o que está evidente diante de seus próprios olhos”. Conversando com a Cinthia, a gente concluía que um trabalho de arte, neste mundo em que vivemos, é muito delicado e pode ir para os ares como mera fumacinha, prestes a desaparecer na memória dos viventes.
Apesar da perda irreparável das obras de Oiticica (por mais que reformem), acabamos por achar que tudo não teria passado de uma auto combustão. Estamos falando de um artista que não queria inventar uma obra-artefato. Suas criações possuíam o caráter de projeto e ele propunha que elas fossem reproduzidas, refeitas, copiadas. A idéia foi mais ou menos comprovada quando, logo depois, César Oiticica encontrou os metaesquemas praticamente intactos.
Hélio é o deus sol do fogo e da justiça, um xangô grego: pode queimar o que bem entender. Mas acredito que o Oiticica quereria incendiar as mentes. Dar às artes uma dimensão menos estagnada e menos arraigada às leis do mercado e da academia. O incêndio (e o roubo dos objetos da Cinthia) não terão sido em vão se tiverem acendido o fogo dos questionamentos sobre arte, vida e memória. Se os artistas voltarem a querer entrar em todas as estruturas e explodir com elas. Agora, começam a aparecer aqui e ali pela web afora os vídeos realizados por e em torno à obra de HO (procurem no google). Se for este o rescaldo final do incêndio, agradecerei aos deuses sempre que puderem incendiar uma obra mais.
U-au!