suplemento literário de mg – set/08

reproduzo abaixo a minha colaboração recém publicada no suplemento literário de minas gerais n° 1314, setembro de 2008. o texto que escrevi é sobre o livro algo indecifravelmente veloz de andityas soares de moura, publicado em janeiro deste ano pela edium editores, em portugal. você  pode também ler o texto e todo o jornal (em formato pdf), clicando [aqui].

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O VÔO DESLOCADO DE ALGO INDECIFRAVELMENTE VELOZ

Existem escritores que, nascidos em certo lugar, mereceriam outra nacionalidade. Um caso clássico é Joseph Conrad, um polonês que celebrizou-se com romances escritos em língua inglesa. Outro é T. S. Eliot: um estadunidense de Missouri que tornou-se o poeta mais inglês de seu país. Também passaria facilmente por um inglês, não fosse o idioma, Jorge Luís Borges. E daí para o francês Gérard de Nerval, lembrado pelo filósofo Emil Cioran como um possível poeta alemão. Aliás, o próprio Cioran, um romeno que renunciou ao seu idioma natal para escrever somente na língua de Rousseau, que não era francês, mas suíço. Nem estou falando de autores como Luís de Camões e Gil Vicente, que colaboraram tanto para a literatura portuguesa quanto a castelhana.

Eu ia começar este artigo meio à moda de Juan Gelman: Havia uma vez/um poeta português/ Nascido numa cidade pequena/de Minas Gerais chamada Barbacena. Mas eis que a brincadeira me flagra no susto, exatamente no instante em que tenho em minha frente um exemplar de Algo indecifravelmente veloz, antologia poética de Andityas Soares de Moura publicada no começo de 2008 na cidade de San Mamede de Infesta, Portugal, pela Edium editores. Já de cara podemos ler as palavras de João Rasteiro: “sem dúvida, hoje, um dos mais expressivos poetas da poesia contemporânea brasileira”. E Xavier Zarco complementa: “Uma poesia que dispõe da capacidade de metamorfose frente ao olhar de espanto de cada um de nós”. O que nos remete ao galego Xosé Lois García, tratando de OS enCANTOS: “Para Andityas, a poesia é ese gran milagre de redención e emoción que nos queda aos humanos para liberarnos”. Então, pensando nesse lusitano deslocado, imaginava evocar a fama da sua cidade natal em torno aos hospícios. Mas antes de incorrer numa frase politicamente incorreta, eu folheio o Crítica e clínica, coletânea de ensaios de Gilles Deleuze cuja epígrafe, tirada de Marcel Proust diz: “Os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira”. E é aqui que Andityas foge para além das fronteiras lingüísticas, ficcionalizando toda possibilidade de ortodoxia, numa viagem às profundezas do idioma, região onde os limites caem trazendo a nostalgia de tempos em que as letras ibéricas não possuíam distâncias abismais.

Viagem que começa na Roma antiga. Leia-se em Lentus in umbra poemas como “PAX ROMANA”, “EPIGRAMMATA”, ou a suíte-poema “CONTRAPVNCTVS” de cinco sessões, concluindo-se numa “Modinha” com “memórias dos banhos quentes de Tebas” (que não deixa de remeter à helenomania dos latinos). É a idéia de uma poesia que passe sempre pelo crivo da razão. Não exatamente uma poesia racionalista, mas que foge de qualquer automatismo em favor de uma dicção visivelmente manipulada. Uma poesia dos filhos de Apolo. Não o Apolo do dionisíaco Nietzsche, mas o de Delfos: o deus da loucura profética. Sendo assim, é válido todo tipo de destruição sintática, o que torna alguns poemas como que engolidos para dentro, afônicos. Dividindo as sombras, em meio a uma inteligência espirituosa, ele tenta achar a chave-de-ouro de cada poema, como quem conclui uma conversa. “Estás pisando o solo de sangue”, avisa, e súbito, num passeio pelas frases finais nos perguntamos se o caminho é sem fim. Andityas se delicia com jogos labirínticos, se perdendo em simultaneidades, sinestesias e jogos de armar: “ainda tenho a primeira/mordida guardada em uma/caixinha de veludo”.

A parte monumental da antologia, por sua inventividade e labor, fica na sessão destinada aos poemas de OS enCANTOS. Na viagem da língua, nos deparamos com ninguém menos que a velha Galícia, olho d’água da língua portuguesa. Mas não é um paraíso apenas para filólogos: ali o jogo se radicaliza numa re-significação da poesia medieval, com seus troubadours. A cantiga toma forma e sentido, se lançando para fora, feita para o planger das cordas e a narrativa borgiana, onde passeiam falares provençais, catalães, italianos, franceses, galegos. Mas se as origens do idioma estão na Idade Média, Andityas fabrica uma língua medieval futurista. Não apenas revisita Don Denis, Arnaut Daniel, Marcabru, Guillem de Cabestanh, Bertrant de Born e Marie de France: ele reconduz o pensamento dos antigos em nacos de palavras, explorando espacialmente os sentidos de cada verso, imagem, som.

Um programa poético radical, onde a subjetividade se desdobra em mutações estilísticas. O leitor verá que os poemas de FOMEFORTE sintetizam experiências poéticas diversificadas, tais como as traduções de Juan Gelman, Rosalía de Castro e Clément Marot. No processo constante de re-elaboração das técnicas, a escritura encaminha-se para uma economia dos artifícios. E o fim radical (vale a pena ressaltar: radical no sentido de ir à raiz) se converterá numa secura da forma, expressa nos poemas inéditos ao final do livro. Ali, já não há mais os versos afônicos. A fala projetada para fora dá visibilidade à persona que se constrói entre as palavras. São poemas de quem aprendeu o peso do verbo e sabe atirar com ele. Aquele que fizer uma leitura linear da antologia pode passar todo o livro sentindo um certo lirismo aristocrático, feito de palavras não muito palatáveis, mas ao se deparar com os poemas inéditos em tom de protesto, verá uma inesperada rebeldia. Uma rebeldia amarga e pouco utópica. “Eu que sempre fui lírico”, ele diz, “canto agora ao senhor das moscas”.

Falei em viagem. Um português deslocado. Talvez a própria coragem de Andityas em dedicar-se à poesia faça dele um deslocado. A poesia, nesse caso, sendo um atestado de insanidade. O que me lembra as palavras de Waly Salomão no seu “Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença”: “Sem ser profeta e sem profetismo, a voz do poeta é voz clamando no deserto”. É esse lunatismo que faz possível um sujeito nascido aqui poder ser cidadão de acolá. E embora diga que “as palavras são só palavras” e que “não se pode escrever o poema”, ele os escreve. E isso mereceria um estudo à parte. Mas voltando a Deleuze, “a literatura é uma saúde”. Um devir moura. Um devir solitude. Passar o pássaro. Algo indecifravelmente veloz.

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