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Da cusparada – Coleção Leve um Livro

leo_goncalves

Poesia circulando nas ruas, para o maior número possível de pessoas. Essa foi a ideia que nos motivou a criar a coleção Leve um Livro. Seja em blogs, zines, revistas, saraus ou edições independentes, a poesia brasileira contemporânea mostra vigor e criatividade, com uma grande variedade de estilos e dicções. Nosso objetivo é justamente dar uma amostra dessa produção, colocando para circular o trabalho de poetas de todas as partes do país.

O funcionamento da coleção é bastante simples: convidamos 24 poetas de todo o Brasil para publicar microantologias, duas a cada mês, ao longo de um ano. Os livros são feitos especialmente para a coleção, com projeto gráfico exclusivo, e são distribuídos gratuitamente, em 20 pontos de Belo Horizonte. Quem quiser, é só levar para casa, ler e colecionar. Cada livro tem tiragem de 2500 exemplares, distribuídos gratuitamente em displays afixados em centros culturais, cinemas, cafés, bares, livrarias, sebos, teatros e bibliotecas.

Participo na Coleção Leve um Livro com meu “Da cusparada”, seleção de poemas de Use o assento para flutuar e de das infimidades.

Para quem não sabe, a Coleção Leve um Livro tem a proposta de publicar, a cada mês, dois livrinhos de dez páginas. Dois autores brasileiros contemporâneos por mês. A distribuição é gratuita e você pode consultar no site alguns dos locais onde você pode encontrar. Todos em BH. Este mês fomos eu e a Maria Rezende. E já teve: Ana Martins Marques, Nicolas Behr, Chacal, Fabiano Calixto, Marcelo Dolabela, Fabrício Marques, Thais Guimarães e Luiz Roberto Guedes.

Na coleção, os poemas não precisam ser inéditos. Mas no meu, incluí também uma miniparódia impublicada de um poema que saiu originalmente no “das infimidades”, livro que publiquei em 2004 e que também aparece na Cusparada. A paródia você encontra aí, logo abaixo.

Para quem quiser fazer o download deste e dos outros todos da coleção, saber mais informações, conhecer os poetas que ainda participarão ou entrar em contato com os organizadores, basta clicar em: http://leveumlivro.com.br/

*

foi no poema vem pra vida
que eu chamei você paixão

vê se acorda desse transe
e vem transar comigo

sai daí
dessa televisão

Música para modelos vivos/Musique pour des modèles vivants

Foto: Milene Migliano
Foto: Milene Migliano
Foto: Milene Migliano
Foto: Milene Migliano

No dia 21 de março, às 21h, na Maison de la Poésie, participei da performance “Música para modelos vivos/Musique pour des modèles vivants”, de Ricardo Aleixo. A apresentação fazia parte da programação do Salon du Livre de Paris, que em 2015 homenageou o Brasil.

Como o leitor terá visto aqui no Salamalandro, fui convidado a traduzir alguns dos poemas do livro Modelos vivos. Às vésperas do evento, sabendo que eu estaria em Paris também, me convidou para vocalizar em francês os seus poemas, deu espaço para o meu “Transatlântico/Transatlantique” e fizemos uma grande festa da palavra na “cave”, como é chamado o belo palco da Maison de la Poésie.

[P.S: Não estou conseguindo postar as fotos, mas tão logo seja possível, elas aparecerão aqui.]

Jacques Prévert

Canção do carcereiro

Aonde vai meu carcereiro
Com essa chave manchada de sangue
Vou libertar aquela que amo
Se é que ainda é tempo
E que eu mesmo aprisionei
Ternamente cruelmente
No meu mais oculto desejo
No meu mais profundo tormento
Nas mentiras de futuro
Nas besteiras das promessas
Eu quero libertá-la
Quero que ela seja livre
E mesmo que me esqueça
E mesmo que vá embora
E mesmo que ela volte
E que ainda me ame
Ou que ame um outro
Se um outro lhe apraz
E se eu ficar na solidão
E ela tiver partido
Eu guardarei apenas
Eu guardarei para sempre
No oco de minhas duas mãos
Até a minha última hora
A doçura dos seus seios modelados pelo amor

(Jacques Prévert em tradução improvisada e em processo de refeitura a cada vez que o coração pede novamente, por Leo Gonçalves)

Chanson du geolier
Où vas-tu beau geôlier/Avec cette clé tachée de sang/Je vais délivrer celle que j’aime/S’il en est encore temps/Et que j’ai enfermée/Tendrement cruellement/Au plus secret de mon désir/Au plus profond de mon tourment/Dans les mensonges de l’avenir/Dans les bêtises des serments/Je veux la délivrer/Je veux qu’elle soit libre/Et même de m’oublier/Et même de s’en aller/Et même de revenir/ Et encore de m’aimer/Ou d’en aimer un autre/Si un autre lui plaît/Et si je reste seul/Et elle en allée/Je garderai seulement/Je garderai toujours/Dans mes deux mains en creux/Jusqu’à la fin de mes jours/La douceur de ses seins modelés par l’amour

Leo Gonçalves em francês

Foto (frame): Ricardo Aleixo
Foto (frame): Ricardo Aleixo

Como eu ia dizendo, tomei gosto pelo lance de fazer versos em francês. Ao terminar de verter poemas do Ricardo para o francês, ele me pediu que traduzisse meu poema Transatlântico também. Me lembrei de três poetas: Manuel Bandeira, Vicente Huidobro e Jean-Joseph Rabearivelo.

No livro Itinerário de Pasárgada, Bandeira relata a encomenda que lhe havia sido feita de traduzir para o português os poemas “Chambre vide” e “Bonheur lyrique”, dele mesmo, escritos originalmente em francês. Ele conta que foi um grande desafio, passa um bom tempo fazendo tentativas e conclui que um poeta não deve traduzir seus próprios versos.

Bandeira era um romântico.

Vicente Huidobro, o inaugurador da modernidade chilena, por outro lado, dizia que, como exercício de estranhamento, o poeta deveria se aventurar a fazer um mesmo poema em línguas diferentes. “Arte poética”, por exemplo, um de seus maiores primores, extremamente inventivo, foi feito primeiro em francês e depois em espanhol. Em ambos os casos, não está escrito em língua vernacular, e sim em sua própria linguagem de artista.

O terceiro, Jean-Joseph Rabearivelo, muito mais radical, escrevia entusiástica e simultaneamente em malgache e francês, como é o caso de Presque-songes/Sari-Nofy. Poemas tomados da experiência africana, com grande apelo para a oralidade, rítmicos, musicais. Tanto em francês quanto na língua de Madagascar. Procurei me inspirar principalmente nele.

O experimento é, portanto, não traduzir, mas refazer alguns de meus poemas em outra língua. Deixo aqui uma amostra, aproveitando os ensejos e preparativos para o Salon du Livre de Paris.

TRANSATLANTIQUE

repousser le jour de quitter la mer
se mêler à la mer
sans prétendre dompter la mer
être de la mer
faire que la mer
en étant miroir se regarde
sous l’accord du ciel
sans horizons ni limites
accepter que la mer
devienne dérive
sirène et tous les êtres
immergés ou hébergés
dans chaque peau chaque proie
devenir mer peau sur peau
avoir des branchies
des ouïes
et des nageoires
pour être à la mer
oublier de repousser les jours
et se renverser là-bas
pacifiquement
traverser la mer
dans une pirogue
un transatlantique
ou un voilier
aller n’importe où
aller où le vent porte
écouter les coquilles lire sur les cauris
et se laisser emmener
se laisser emmener par la mer
mourir à la mer dormir à la mer
vivre la mer
infinitive mer

*
TRANSATLÂNTICO

adiar o dia de sair do mar
se enturmar com o mar
sem querer domar o mar
ser do mar
fazer com que o mar
em ser espelho olhe-se
no acordo do céu
sem horizontes nem limites
aceitar que o mar
em sendo mar se torne léu
sereia e todo ser
que se molha que se olha
em cada pele cada prole
tornar-se ele pele com pele
formar brânquias
formar guelras
e barbatanas
para estar no mar
querer morar no mar
esquecer os dias de adiar
e se espraiar por lá
pacificamente
atravessar o mar
num barco a vela
num transatlântico
ou num vapor
seguir por onde for
seguir por onde o vento indicar
ouvir as conchas ler os búzios
e deixar-se levar
deixar-se levar no mar
morrer no mar dormir no mar
viver o mar
infinitivo mar

****

AUTRE POÉTIQUE

désinventer la langue
dans chaque parole
l’ashé s’agit
de se faire la gueule

les voyelles et les consonnes
on les mâche
le verbe couvre le corps
comme les poils la vache

la racine des mots
tu me l’annonces
c’est la gueule de qui
les prononce.

*

OUTRA POÉTICA

desinventar a língua
em cada fala
o axé consiste
no que a boca cala

mastigar com vontade
as vogais e as consoantes
o verbo cobre o corpo
como a folha a planta

a raiz das palavras
você me dizia
é a garganta
de quem as pronuncia

p/ benjamin abras

Ricardo Aleixo em francês

Foto: Mariana Botelho
Foto: Mariana Botelho

Entre os dias 20 e 23 de março, acontece o Salon du Livre de Paris. O Brasil será o país homenageado do evento e, dentre os convidados tem o Ricardo Aleixo. Nos preparativos, ele me propôs em janeiro: “topa traduzir alguns poemas meus para o francês?”

Eu já estava pra lá de envolvido com as versões dos poemas da Alice Ruiz, ao que, entusiasmado, topei. Como eu já disse: adoro desafios. Acho que ficou bom. Ao final, pedi algum auxílio para minha amiga Sophie Fakhouri que me salvou na hora de dar alguns toques finais. Deixo com vocês um amuse-gueule, um petisco. Quem estiver no Salon, no dia 21 às 21h, ouverá les autres poèmes.

PAS TOUT À FAIT FRANÇAISE

Elles résonnent
sous le silence
de la nuit de la ville
Paris

La langue-fétiche
de Jeanne Duval
– la “Vénus noire”
de Baudelaire
la langue
des poèmes nègres
de Tzara
la langue de l’île-litanie
d’Aimé Césaire

La langue-balafon
de Sédar Senghor
la langue franche
d’un Orphée Noir
ou plusieurs
selon l’écoute
de Jean-Paul Sartre
la langue sans masques
blancs
de Frantz Fanon

La langue-musique
sans vibrato
de Miles Davis
la langue tout soleil
d’Henri Salvador
la langue-sound system
de MC Solaar
la langue-exil
de Richard Wright

la langue du chant-exil
de Josephine Baker
figurée en fil d’acier
par Alexander Calder
la langue-double-exil
en terre étrangère
de James Baldwin
la langue-zone de frontière
de Patrick Chamoiseau
la langue des trois fleuves
qui coulent dans les veines
de Léon Gontram-Damas
la langue errante
du chaos-monde
d’Édouard Glissant

La langue de l’étoile
qui a éclaté une seule fois
de Depestre
la langue de l’étoile pourpre
de Rabéarivelo
la langue des petits
contes nègres
aussi pour des enfants blancs
de Blaise Cendrars

La langue de la Marseillaise
transformée en samba
par Clementina de Jesus
à l’Olympia
antérieure à la fatigue
de toutes les langues

La langue de ceux qui
personne n’entend jamais – pas
tout à fait française

*

NÃO TOTALMENTE FRANCESA

Soam
sob o silêncio
da noite da cidade
de Paris

A língua-fetiche
de Jeanne Duval

– a “Vênus negra”
de Baudelaire
a língua
dos poemas negros
de Tzara
a língua da ilha-litania
de Aimé Césaire
A língua-balafong
de Sèdar Senghor
a língua franca
de um Orfeu Negro
ou muitos
conforme ouvida
por Jean Paul Sartre
a língua sem máscaras
brancas
de Frantz Fanon

A língua-música
sem vibrato
de Miles Davis

a língua toda sol
de Henri Salvador
a língua-sound system
do MC Solaar
a língua-exílio
de Richard Wright

a língua do canto-exílio
da Josephine Baker
figurada em fio de ferro
por Alexander Calder
a língua-duplo exílio
em terra estranha
de James Baldwin
a língua-zona de fronteira
de Patrick Chamoiseau
a língua dos três rios
que correm nas veias
de Leon-Gontran Damas
a língua errante
do caos-mundo
de Édouard Glissant

A língua da estrela
que brilhou uma só vez
de Depestre
a língua da estrela púrpura
de Rabearivelo
a língua dos pequenos
contos negros
também para crianças brancas
de Blaise Cendrars

A língua da Marselhesa
convertida em samba
por Clementina de Jesus
no Olympia
anterior à fadiga
de todas as línguas

A língua dos que
ninguém nunca ouve – não
totalmente francesa

Alice Ruiz em francês

Alice Ruiz
Foto: Christian Franz

 

Na virada de 2014 para 2015, recebi um desafio da Alice Ruiz: verter poemas dela para o francês. Achei difícil a proposta. Embora trabalhe há muitos anos com o francês, nunca tinha me aventurado a fazer versos na língua. Mas adoro desafios. E tomei gosto pela coisa. E traduzi também uns versos do Ricardo Aleixo e meus. Vou botar as notícias a conta gotas. Pra durar mais.

3 poèmes d’Alice Ruiz (traduits par Leo Gonçalves)

1.
au principe c’était le silence
seul les marées le cassaient
au principe c’étaient les marées
et leur rythme

au principe c’était le rythme
et le rythme est devenu son
et le verbe s’est fait
et le verbe a vu que le son était bon

au principe le rythme était là
pour que tous ensemble
conduisaient mieux
leur vaisseaux

ensuite il est devenu chanson
et poésie, pour principe

*

no princípio era o silêncio
só quebrado pelas marés
no princípio eram as marés
e seu ritmo

no princípio era o ritmo
e o ritmo transformou-se em som
e fez-se o verbo
e o verbo viu que o som era bom

no princípio o ritmo serviu
para que todos juntos
conduzissem melhor
sua embarcação

depois virou canção
e poesia, por princípio

2.
il était une fois
une femme
qui voyait
un futur d’or
pour
chaque homme
qu’elle touchait

un jour, alors,
elle s’est touchée

*

era uma vez
uma mulher
que via
um futuro
grandioso
para
cada homem
que a tocava

um dia
ela se tocou

3.
SANS RECETTE

D’un geste précis et si doucement
enlever la peau
cette limite de la matière.
Mais celles des ailes, ne pas toucher
elles se collent aux épaules
comme si allaient encore voler.

Les cuisses, libres et fermes
seront écartées
et écartées elles resteront
et la poitrine
sa chair si blanche et nue
n’y pensez pas
la proximité du cœur, non,
pas celui-là
qui peut savoir
comment assaisonner le cœur.

De l’intérieur
garder les viscères pour accompagner.
arroser les herbes
égrener le sel
allumer le feu
marquer le temps.
Finalement pour farcir
l’innocente pomme rouge
qui si douce, humide, indiscrète
nous a ôté du paradis
et nous a fait ainsi
sans recette

*

SEM RECEITA

Primeiro, lenta e precisamente,
arranca-se a pele
esse limite com a matéria.
Mas a das asas melhor deixar
pois se agarra à carne
como se ainda fossem voar.

As coxas, soltas e firmes,
devem ser abertas
e abertas vão estar
e o peito nu
com sua carne branca
nem deve lembrar
a proximidade do coração
Esse não. Quem pode saber
como se tempera um coração?

Limpa-se as vísceras,
reserva-se os miúdos
para acompanhar.
Escolhe-se as ervas,
espalha-se o sal,
acende-se o fogo,
marca-se o tempo
e, por fim, de recheio,
a inocente maçã,
que tão doce, úmida e eleita
nos tirou do paraíso
e nos fez assim:
sem receita


musique Zé Miguel Wisnik

Consciências negras

Assimilacionismo – uma história martinicana
Assimilacionismo na Martinica

Colonizada pela França desde o século XVII, a ilha da Martinica havia sido, anteriormente, um território indígena. A história conta como tendo sido este o país onde pela primeira vez os europeus presenciaram um ritual antropofágico. Pequenina em meio ao mar do Caribe, a ilha paradisíaca fez, juntamente com o Haiti e Guadalupe, a fortuna da França no período anterior à revolução francesa de 1789. De lá, saía a maior parte do açúcar que adoçou a boca dos marqueses. O império do roi Soleil era uma festa de pompa e alegria, repleto de animais trazidos dos trópicos, provavelmente dessas ilhas.

Quando os franceses tomaram a ilha, exterminaram por completo os habitantes aborígenes que ali viviam. Em seguida, passaram a trazer constantes contingentes de africanos para trabalhar nas lavouras de cana. Na ilha, conviviam negros em número incontável e brancos que trabalhavam na exploração do trabalho dos primeiros. Os martinicanos os chamam ainda hoje de békés. São, segundo as palavras de um béké, os “brancos que se mantiveram em raça pura na martinica”. Esse mesmo béké que aparece no documentário “Aimé Césaire, un negre essentiel”, ao ser perguntado se os negros são difíceis de lidar, responde: “os negros são como crianças: você dá a eles o que eles querem, você obtém o que quiser”.

Aimé Césaire, nascido em 1913, respirava essa Martinica servil e se sentia mal. O clima era extremamente “assimilacionista”. Havia uma festividade tipicamente martinicana que o irritava. Uma coisa quase folclórica, que fazia o negro compor em termos de pitoresco, a paisagem hiperturística da ilha. No Brasil, chamaríamos esses martinicanos de “negros pai-joão”, ou utilizando um termo do movimento negro norte-americano, “uncle Tom”. Aquele que dá sorrisos banania para o colonizador. Em suma, o negro assimilacionista.

Césaire, perto de completar seus vinte anos, se muda para Paris onde continua seus estudos de normalista, no colégio Louis-le-grand. Conta que na viagem, no navio que o levava a Paris, atordoado com a maneira martinicana de ser, ficava escondido em seu quarto. Em Paris, ele conhece Léopold Sédar Senghor e Léon Gontram Damas. E é lá que encontra a eruptividade vulcânica de sua poesia. “Sempre estive do lado do protesto”, ele responde, durante uma entrevista ao jornalista francês Patrice Louis. Fundam, juntos, o jornal l’Étudiant Noir, onde surge, pela primeira vez a palavra “Négritude”. Num artigo, intitulado “Negrarias: juventude negra e assimilação”, ele comenta:

“Um dia, o negro colocou a gravata do branco, pegou um chapéu coco, se arrumou e saiu dando risada… Estava apenas brincando, mas o negro se deixou cair na brincadeira; se habituou tão bem à gravata e ao chapéu coco que acabou por acreditar que ele sempre os havia usado: caçoou de quem não usava e renegou seu pai que tem por nome Espírito da Savana… é um pouco a história do negro do pré-guerra que não é senão o negro de antes da razão. Foi colocado na escola dos Brancos, quis se tornar “outro”, quis ser ‘assimilado’.” (Em “Nègreries: jeunesse noire et assimilation”. L’étudiant noir, 1935)

Césaire voltaria para a Martinica em 1939 com sua esposa, Suzanne Césaire. Criariam juntos a revista Tropiques, onde fez veicular partes do Cahier d’un retour au pays natal, seu poema mais famoso e que, mais tarde seria elogiado por André Breton. Se envolve por alguns anos em projetos pedagógicos, ligado ao colégio Victor Schoelcher, mas logo é convidado pelos integrantes do partido comunista a ser seu representante. É escolhido pelos cidadãos para ser o prefeito de Fort-de-France em 1945. Mais tarde, é também enviado ao Congresso Nacional da Franca para representar os interesses da ilha. O que queriam os do partido? A assimilação.

Havia então uma aspiração bem popularizada, generalizada [na Martinica]: se tornar um departamento francês. Era quase um mito. E eu, com minha abertura rumo à África, rumo à cultura do povo, eu estava – devo dizer – confuso, um pouco chocado. (Louis, 2003)

Como lidar com o fato de que os próprios habitantes de sua terra natal queriam aquilo contra o qual ele lutava tão ardorosamente?

Refleti um momento e, finalmente, cedi. Por que eu cedi? Porque pensando melhor, compreendi que não deveria cair no jogo das palavras. Há as palavras, e o que há por detrás das palavras. Eu havia aprendido a conhecer melhor o povo, o povo das periferias, o povo dos bairros pobres, e compreendi que, na realidade, estávamos iludidos por uma incompreensão, e que a palavra “assimilação”, em realidade não significava assimilação. Assimilação é se tornar semelhante; mas eu me dizia que, para nós, martinicanos, filhos de netos de africanos, essa assimilação era uma alienação. E eu não podia ser a favor da alienação. Era, na verdade, um erro de vocabulário. O que as pessoas queriam realmente, não era se tornar outro; o que eles queriam era a igualdade para com os franceses. Portanto, falar de assimilação era usar impropriamente o termo – o que é muito comum. Então eu disse [aos homens do partido comunista]: “Bem, de acordo, vou pedir o que vocês chamam de assimilação, mas que eu chamo de departamentalização”. (Louis, 2003)

Nos anos 1950, o General Charles De Gaule, presidente da França, passa a negociar com os países colonizados suas independências. Acontece que muitos não quiseram suas independências por considerar que eram países sem a força necessária para lidar com o cenário mundial. Assim é que a Martinica, Guadalupe, Reunião e algumas outras ilhas pelo mundo afora se tornaram o que os franceses chamam de DOM, Département d’Outre Mer. Os nascidos nesses lugares são considerados franceses, possuem o mesmo direito e as mesmas proteções que o governo francês dá para os cidadãos nascidos no hexágono (como a França é chamada pelos seus cidadãos).

Com tudo isso, a doutrina do antiassimilacionismo permanece. O desejo de assimilação não acaba no mundo. O próprio Césaire, quando envia a famosa Carta a Maurice Thorez, pedindo sua demissão do Partido Comunista, afirma: “Há duas maneiras de se perder: por segregação amadurecida no particular ou por diluição no universal.” A assimilação, essa espécie de canibalismo muito mais violenta do que a praticada pelos antigos ameríndios, essa assimilação que inclui a morte definitiva de todo e qualquer rastro do que é “diferente” da ordem vigente, essa assimilação é a que tem ganhado espaço em vários lugares do mundo globalizante.

É parente dessa assimilação a cultura do embranquecimento tão tipicamente brasileira, essa que diz que, ao nos misturarmos, uma das fontes deixa de existir. O canibalismo branco brasileiro. O Brasil, esse país que Césaire não gostava muito de frequentar, pois o considerava um país “assimilacionista” demais. O assimilacionismo é o ponto a ser pensado, vivido, sentido. É nele que penso neste dia da Consciência Negra.

Lançamento: “A puta” de Márcia Barbieri

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Neste sábado, terei o prazer de participar do lançamento do livro A puta, de Márcia Barbieri, que acontece no Hussardos Clube Literário (Rua Araújo, 154 – 2º andar) das 19h às 22h. Também participa o meu camarada Marcelo Ariel e o músico Leandro Mendes.

A escrita de Márcia Barbieri é uma das coisas mais inquietantes que conheci nos últimos tempos. Não há lugar comum nem aparências capaz de descrever o que o seu texto provoca no corpo e no juízo (ou na falta de) de quem a lê.

Circuito Literário Praça da Liberdade

Dia 16/11: Leo Gonçalves e Flávia Peret sabatinam Marcelino Freire

Ir e vir de BH neste segundo semestre tem sido um prazer. Se não me engano, o próximo fim de semana somará a quinta vez em menos de dois meses. As tarefas sempre das boas: matar saudades, votar na Luciana Genro e matar saudades, votar na Dilma e matar saudades. Na semana passada, tive a honra de ministrar a palestra “Ojá: mercado e negritude”, que criei especialmente para compor a Semana da Consciência Negra das empresas Google, com uma de suas sedes na cidade.

Neste agora, a poesia volta à cena principal. Participo do Circuito Literário Praça da Liberdade, papeando com Marcelino Freire, este escritor que mistura melopeia, desespero e paixão pela vida em seus contos e romances, e que já se tornou um dos camaradas meus na Pauliceia. Para a sua felicidade, estará também na conversa a linda, brilhante e admirada Flávia Peret, pesquisadora fina, leitora de primeira, mãe do Joaquim dentre as muitas coisas megabacanas que ela sabe fazer.

Como chego na sexta para o evento, espero que a poesia se faça presente em cada segundo. Você que gosta de mim e não tem encontrado tempo de me encontrar, aparece lá. Às vezes é difícil organizar todos os encontros.

Com tudo isso, só me resta cantar aquela música do Chico César que diz assim:

“Eu e os meus companheiros ai ai
queremos cumplicidade ai ai
pra brincar de liberdade
no terreiro da alegria ai ai”

Para saber mais sobre esse evento bacana, toma aí o link: http://circuitoculturalliberdade.com.br/plus/