Leo Gonçalves é poeta, tradutor, curioso de teatro, música, cinema, política, culinária, antropologia, antropofagia, etnopoesia e etnologia, vida, educação, artes plásticas etc.
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O Suplemento Literário de Minas Gerais publicou em seu número 1381 (novembro-dezembro de 2018) o longo poema em prosa “Celebração da espécie” com tradução de Leo Gonçalves. Autora inédita no Brasil, mas com vários livros publicados na França ao longo de décadas, Claude Ber aparece neste poema com ironia afiada e palavra rebelde, grandes marcas em seu trabalho.
“Como todos os da minha espécie, eu gostaria de celebrar a minha espécie. Pois minha espécie celebra tudo de tudo de minha espécie.
Minha espécie celebra a felicidade de sua espécie, a dor e o prazer de sua espécie. Minha espécie celebra o nascimento, a morte, as idades, as separações, os reencontros de sua espécie. Minha espécie celebra a alegria, o êxtase, o sofrimento, a loucura, o horror, os crimes, os poetas, os sábios, os sabichões, os heróis, os reis, os profetas, os falsos profetas, os carrascos, os mártires, os tiranos, os criminosos da minha espécie. Assim é minha espécie que celebra qualquer coisa de sua espécie que goza tanto da vida quanto da morte de sua espécie.
Pois minha espécie é uma espécie que destrói sua própria espécie.
Minha espécie se extermina em nome do mal como do bem, do passado como do futuro de sua espécie em nome de suas terras, de seus deuses, de seu ouro, de suas crenças como de suas descrenças.
Tudo cabe tudo é festa na carnificina de minha espécie por minha espécie. Minha espécie é a melhor auxiliar da morte e dos sofrimentos de sua espécie. Minha espécie destripa minha espécie em nome do amor, da liberdade, da justiça, da verdade e de todos os antigos e futuros paraísos da espécie.
Minha espécie devasta minha espécie em nome da humanidade como da desumanidade de minha espécie. Minha espécie polui o que ela inventa de mais sagrado no monturo de minha espécie. E minha espécie mata e trata as outras espécies como sua própria espécie. Minha espécie empilha os bichos (…)”
Trecho inicial do longo poema “Celebração da espécie”, de Claude Ber (tradução Leo Gonçalves).
Esta edição está recheada de coisas interessantes. Tem texto de Adriane Garcia sobre Carlos Machado. Tem poetas colombianas traduzidas por Ana Elisa Ribeiro e Sérgio Karam. Tem texto de Silviano Santiago. Tem texto sobre a obra de Affonso Ávila. Tem isso e muito mais.
soltar o sol soltar o ar soltar o aro o dedo a solda soltar o que não volta soltar o que não vai soltar para deixar ir soltar o que te assalta soltar o salto o assalto
desatar abrir os dedos deixar que o tempo faça seu labor largar os medos esperar sem esperanças que um dia as máscaras dessas caras descaradas caiam das caras deixar não abandonar apenas deixar que as penas da ave caiam e nasçam outras em seu lugar
deixar a vida em seu ritmo deixar o que não se pode por esforço de agarrar mudar
deixar sem largar deixar amorosamente deixar deixar como quem olha o curso de um rio de um rio que se esvai quer se queira quer não parar as mãos em concha lavar-se quando a água estiver límpida deixar passar quando a maré não for lugar onde se banhar olhar o brilho do sol sobre a superfície apenas olhar o sol que se crispa por sobre todas as coisas líquidas e que não deixarão nunca de passar
O cu é o grande lugar da injúria, do insulto, como vemos em muitas expressões cotidianas. A penetração anal como sujeito passivo está no centro do discurso social como o horrível, o mau, o pior. Mas na atualidade existem culturas que se reapropriaram deste lugar abjeto e souberam convertê-lo em um lugar produtivo e positivo.
Neste livro, os autores fazem um estudo amplo e ameno, recorrendo ao redor do cu e do sexo anal, passando por sua história, valores de como o ânus organiza os gêneros e as sexualidades e de como esttá atravessado por critérios de raça, classe e poder. Desde a complexa sexualidade anal na Grécia Antiga até a crise da Aids, passando pelas prisões, o Bareback, Freud, as lésbicas butch, os sodomitas, o técnico de futebol Luís Aragonés, o fist-fucking ou os ursos, este livro traça a genealogia de um dos espaços menos explorados pela teoria, mmas o mais transitado pela prática: o espaço anal.
Texto da quarta capa do livro.
Em 2015, fui contactado por Rafael Leopoldo a propósito de um poema de Allen Ginsberg que eu havia traduzido: “Esfíncter”. O tradutor de Pelo cu, queria utilizá-lo na epígrafe, já que os autores Javier Sáez e Sejo Carrascosa o haviam citado, usando uma tradução ao espanhol. Começamos então uma conversa sobre o tema e ele, sabendo de meus trabalhos editoriais, acabou por me contratar como o revisor da tradução.
Inicialmente achei o título extremamente provocativo e, confesso, essa foi uma das coisas que mais me atraíram no projeto. Mas minha surpresa aumentou ainda mais à medida em que fui conhecendo o texto, que considero ao mesmo tempo esclarecedor, propositivo, traz importantes análises dos contextos em que estamos vivendo e reorganiza diversos dos processos sociais que entraram para as urgências da vida contemporânea.
Após enumerar diversas injúrias em diversos idiomas sobre a questão anal, os autores fazem, primeiro, um estudo do que é o “ser macho”. São diversos os casos em que acabamos por ouvir alguma escusa para que amplie o tabu do ânus. Afinal, nas sociedades ocidentais, todos os seres humanos são penetráveis, com exceção do homem hetero. O homem é o impenetrável.
Mas esta conclusão, que trata de uma questão aparente não fala a respeito de TODOS os homens. Toda interdição é, por princípio, um objeto a ser subvertido. É comum homens hetero pedirem para serem penetrados por suas mulheres, assim como há imensas multidões de homens que frequentam ambientes em que possam ser penetrados em segredo.
Dessas primeiras interpretações da masculinidade é que surge uma teoria da passividade como fonte de prazer. “Não, o sexo não se reprime ou ao menos não de maneira uniforme”, dizem os autores. Essas incoerências que existem ao redor do cu é que formam o grande corpus deste ensaio, assim como uma análise das diversas subversões dos dispositivos heterocentrados. Para lidar com esses sistemas de tabus e hipocrisias, é que os autores aconselham logo de início: “abra o seu cu e abrirá sua mente”.
Ao longo das páginas desta obra, encontramos diversos temas que fazem parte do universo queer. Algumas desconhecidas da grande maioria. O livro segue as trilhas deixadas por teóricas/os tão importantes como Judith Butler e Paul B. Preciado, sempre colocando em questão alguns aspectos chave.
O time envolvido neste trabalho é extremamente interessante. Javier Saez, que é sociólogo e tradutor, autor de um ensaio de nome “Teoria queer e psicanálise” e tradutor de Monique Wittig, Judith Habelstam, dentre muitos outros. Sejo Carroscosa, que se diz um “alérgico” ao mundo acadêmico, foi ativista em diversos grupos de caráter antiautoritário e de liberação sexual. Rafael Leopoldo, o tradutor, por fim, é um filósofo belorizontino, com diversos artigos publicados e uma carreira de professor que tem se solidificado nos últimos anos.
Título: Pelo cu: políticas anais Autores: Javier Sáez e Sejo Carrascosa Tradutor: Rafael Leopoldo Editora: Letramento/Quixote ISBN: 978-85-68275-98-6 Ano da publicação: 2016
Tudo neste 2019 me lembra uma distopia. Não só porque é o ano em que o filme futurista Blade Runner (1982) se passa. Mas porque entramos naquela fase em que cotidianamente tudo tem algo de catástrofe. Das decisões políticas dos chefes de estado aos desastres ambientais. É nesse clima que me vejo na urgência de retomar este blogue como meu espaço de reflexão e de busca de saúde via linguagem.
Comecei este 2019 de um jeito estranho. Parece que tudo se transformou de um modo bem rápido ao longo da década e não vimos o tempo passar. Este ano, o Salamalandro completa 15 anos de existência. Quem notou? Os anos 10 ficaram marcados como a década das redes sociais. Estivemos todo esse tempo enfurnados no facebook e talvez tenhamos nos perdido lá dentro. Olhando em retrospectiva, podemos encontrar um sinal de mais e um sinal de menos. Não sei se algum dos dois é ruim. São apenas sinais. Queria comentar deles aqui.
Me lembro quando tudo não passava de uma brincadeira inocente, uma alegria. Um espaço para darmo-nos as mãos e irmos nos conhecendo. Pelo facebook foi possível descobrir possibilidades inauditas de encontros. Nos aproximamos por afinidades. Falando de mim: fiz amizades importantíssimas por lá. Ou mesmo: tendo conhecido certas pessoas em carne e osso, ao estabelecer a relação via rede, descobrimos que havia bem mais coisas que nos uniam. E isso nos trouxe felicidades, compartilhamentos, prazeres, descobertas.
Também podia acontecer o oposto: conhecendo gente que pessoalmente parecia linda, quando nos linkamos, descobrimos uma total desparecença. Eu mesmo ia fazendo aquela lista de coisas que me desinteressavam. Muita gente pode achar que era a questão política que contribuía para isso. Mas não. Olhando agora, acho que era mais uma questão estética. Uma pessoa que só fala de Deus e de Jesus. Outra que não cansa de enviar flores digitais, cada uma estampada num cartão mais feio que o outro, com dizeres cafonas ou comemorativos de datas (o que é cafona também). Aquelas pessoas que só se aproximavam para convidar a suas atividades, mas que jamais estabeleciam diálogos com as nossas. Aquelas que, ao postar qualquer coisa (na maioria sem o menor interesse para mim), marcavam uma multidão e então você recebia inúmeras notificações que nada tinham a ver. Mas confesso que nada se compara àquelas pessoas que postam poemas ruins e ficam esperando elogios. Rimas em ão. Rimas em inho. Poemas-flor-de-plástico. Poemas-declaração-de-amor ridiculíssimos.
Só depois é que começaram a surgir os insanos da política. We didn’t see it coming. De repente estávamos rodeados de estranhas discussões, debates bárbaros, frases agressivas, acusações de “seu comunistazinho de merda”. Quando vimos, já era tarde demais. Não deu tempo de entender que tudo estava acabando. Nossas convicções. Nossas alegrias. Nossas verdades miúdas e, até então, sem questionamento. Foi crescendo uma mentalidade desumana, uma crueldade desagregadora e anormal. E essa anormalidade foi se tornando um padrão, ao mesmo tempo em que as redes sociais deixavam de nos trazer alegrias (compartilhávamos música boa, poesia falada, obras de arte, notícias lindas sobre nossos êxitos, ou mesmo aquelas informações que fortaleciam as “mãos-dadas” de que tanto havíamos precisado nos últimos séculos e que agora tínhamos ao alcance). Elas agora nos envolviam num manto incontornável de ansiedades e dores, más notícias, debates sem sentido, discussões do óbvio, gritos de raiva entre pessoas que estavam, na verdade, dizendo a mesma coisa. As redes sociais começaram, de repente, a fortalecer nossas doenças psíquicas.
De repente, nossas neuroses começaram a virar psicoses. Nossas ansiedades começaram a se inflamar e dar pus. Nosso tempo passou a ser devorado numa atividade sem objetivos.
Foi quando vieram as eleições de 2018.
O candidato que ganhou, se aproveitou do potencial envenenador que as redes possuíam e usou-o para vencer as eleições. Venceu.
Eu, antes de ver o resultado dessa derrota (apenas mais uma), pulei fora do Facebook (apenas do facebook, as outras continuam, por enquanto). Não porque esteja com medo de que roubem meus dados. Isso já está feito. Já coletaram tudo há muito tempo e já estou mapeado. A questão sou eu.
Me recuperando com dificuldade do vazio cognitivo que fui desenvolvendo ao longo dos últimos anos ao usar a viciante rede social de Mark Zuckerberg, tenho usado o tempo para coisas que pouco a pouco fui deixando de lado: tocar violão (a música é um desafio que carregarei comigo até o último dia da minha vida), ler aqueles livros que comecei e não terminei, levar adiante meus projetos, dar aulas de francês, amar fora da rede, cuidar de plantas, encontrar-me pessoalmente com os amigos, olhar o céu quando há céu, a lua quando há lua e banhar-me de sol quando há sol.
Ao ver o resultado eleitoral em 2018, surgiu nas redes sociais um adágio: “Ninguém solta a mão de ninguém”. Como ando sensível às coisas ansiógenas, me pareceu que essa frase tem mais de neurose que de potência. Acho que andamos de mãos dadas demais e agora é o momento de soltar um pouco, de deixar os dedos respirarem, de nos olharmos em busca da saúde. De todas as coisas aprisionantes que existem neste mundo, o medo é a pior. Não tenhamos medo, essa doença contagiosa.
O momento é de estar em dia com a própria saúde. A subversão maior desse sistema identitário que ganhou o poder (sim, pois o conservadorismo é uma luta identitária, um grito de desespero dos machos, dos heterossexuais, dos ricos, dos brancos, dos que sempre estiveram no poder) é mantermos nossa saúde e nosso bem estar, livres do medo do que está por vir. Olhando para nossas conquistas e potências de cabeça erguida. Construindo uma vez mais os conhecimentos em torno àquilo que somos e que temos sido. Produzindo mais e mais mecanismos de fortalecimento daquilo que sonhamos para o mundo.
Só assim seremos sementes.
Um feliz 2019, repleto de realizações e de poesia para todo o meu “leitorado”, se por acaso ele existir.
O filme Corpo Quilombo, dirigido por Leonel Costa e Patrícia Miranda, e no qual participo como não-ator, já nasceu clássico. Um trabalho denso, colaborativo, feito na garra, na cara e na coragem, na mais pura linhagem do “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Quando a dupla me chamou para participar, me explicando as condições, fiquei apaixonado com o projeto. Me lembrei de uma cena do filme Hitchcock, em que uma personagem diz algo como “Se lembra quando fazíamos os filmes porque era necessário? Não sabíamos se iríamos ganhar algum dinheiro com ele, mas fazíamos porque era necessário”. Esse filme, para mim, entrou direto no grupo das coisas extremamente necessárias.
Gravado no Rio de Janeiro e São Paulo, o longa-metragem CORPO QUILOMBO é um filme independente produzido de forma colaborativa. A narrativa é estruturada a partir de dois pontos: fragmentos biográficos de personagens históricos brasileiros recriados de forma livre e personagens fictícios em um dia de reflexões e decisões que definirão rumos importantes em suas vidas.
Resistir e escapar da lógica predatória do racismo, do machismo e da homofobia é o ponto comum entre as trajetórias de cada um.
Chegou esta semana para mim o pdf do livro Guinée Fagni – La trajectoire d’une femme africaine, de Andrea Silveira. Se trata da biografia de Maimouna Diallo, uma ativista pelos direitos das pessoas portadoras de HIV em seu país, a Guinée Conakry. O livro foi escrito em português e eu tive a honra de vertê-lo para o francês. A publicação é da editora Eureka.
Uma alegria da semana: ter em minhas mãos o livro Essa substância chamada infinito/Esa substancia llamada infinito, de Wir Caetano. São 13 poemas que verti para o espanhol a pedido do autor para ser publicado na revista Vallejo & co.. A versão impressa traz também um prefácio de Fabrício Marques. A edição é da Clãdestina Cartonera.
No próximo domingo, dia 12 de agosto, das 15h às 16h30, participo do Sarau Tramaas. O evento integra a programação do Festival Gentileza que acontece nos dias 10, 11 e 12 de agosto na Praça Floriano Peixoto.