Arquivo mensais:março 2015

Leo Gonçalves em francês

Foto (frame): Ricardo Aleixo
Foto (frame): Ricardo Aleixo

Como eu ia dizendo, tomei gosto pelo lance de fazer versos em francês. Ao terminar de verter poemas do Ricardo para o francês, ele me pediu que traduzisse meu poema Transatlântico também. Me lembrei de três poetas: Manuel Bandeira, Vicente Huidobro e Jean-Joseph Rabearivelo.

No livro Itinerário de Pasárgada, Bandeira relata a encomenda que lhe havia sido feita de traduzir para o português os poemas “Chambre vide” e “Bonheur lyrique”, dele mesmo, escritos originalmente em francês. Ele conta que foi um grande desafio, passa um bom tempo fazendo tentativas e conclui que um poeta não deve traduzir seus próprios versos.

Bandeira era um romântico.

Vicente Huidobro, o inaugurador da modernidade chilena, por outro lado, dizia que, como exercício de estranhamento, o poeta deveria se aventurar a fazer um mesmo poema em línguas diferentes. “Arte poética”, por exemplo, um de seus maiores primores, extremamente inventivo, foi feito primeiro em francês e depois em espanhol. Em ambos os casos, não está escrito em língua vernacular, e sim em sua própria linguagem de artista.

O terceiro, Jean-Joseph Rabearivelo, muito mais radical, escrevia entusiástica e simultaneamente em malgache e francês, como é o caso de Presque-songes/Sari-Nofy. Poemas tomados da experiência africana, com grande apelo para a oralidade, rítmicos, musicais. Tanto em francês quanto na língua de Madagascar. Procurei me inspirar principalmente nele.

O experimento é, portanto, não traduzir, mas refazer alguns de meus poemas em outra língua. Deixo aqui uma amostra, aproveitando os ensejos e preparativos para o Salon du Livre de Paris.

TRANSATLANTIQUE

repousser le jour de quitter la mer
se mêler à la mer
sans prétendre dompter la mer
être de la mer
faire que la mer
en étant miroir se regarde
sous l’accord du ciel
sans horizons ni limites
accepter que la mer
devienne dérive
sirène et tous les êtres
immergés ou hébergés
dans chaque peau chaque proie
devenir mer peau sur peau
avoir des branchies
des ouïes
et des nageoires
pour être à la mer
oublier de repousser les jours
et se renverser là-bas
pacifiquement
traverser la mer
dans une pirogue
un transatlantique
ou un voilier
aller n’importe où
aller où le vent porte
écouter les coquilles lire sur les cauris
et se laisser emmener
se laisser emmener par la mer
mourir à la mer dormir à la mer
vivre la mer
infinitive mer

*
TRANSATLÂNTICO

adiar o dia de sair do mar
se enturmar com o mar
sem querer domar o mar
ser do mar
fazer com que o mar
em ser espelho olhe-se
no acordo do céu
sem horizontes nem limites
aceitar que o mar
em sendo mar se torne léu
sereia e todo ser
que se molha que se olha
em cada pele cada prole
tornar-se ele pele com pele
formar brânquias
formar guelras
e barbatanas
para estar no mar
querer morar no mar
esquecer os dias de adiar
e se espraiar por lá
pacificamente
atravessar o mar
num barco a vela
num transatlântico
ou num vapor
seguir por onde for
seguir por onde o vento indicar
ouvir as conchas ler os búzios
e deixar-se levar
deixar-se levar no mar
morrer no mar dormir no mar
viver o mar
infinitivo mar

****

AUTRE POÉTIQUE

désinventer la langue
dans chaque parole
l’ashé s’agit
de se faire la gueule

les voyelles et les consonnes
on les mâche
le verbe couvre le corps
comme les poils la vache

la racine des mots
tu me l’annonces
c’est la gueule de qui
les prononce.

*

OUTRA POÉTICA

desinventar a língua
em cada fala
o axé consiste
no que a boca cala

mastigar com vontade
as vogais e as consoantes
o verbo cobre o corpo
como a folha a planta

a raiz das palavras
você me dizia
é a garganta
de quem as pronuncia

p/ benjamin abras

Ricardo Aleixo em francês

Foto: Mariana Botelho
Foto: Mariana Botelho

Entre os dias 20 e 23 de março, acontece o Salon du Livre de Paris. O Brasil será o país homenageado do evento e, dentre os convidados tem o Ricardo Aleixo. Nos preparativos, ele me propôs em janeiro: “topa traduzir alguns poemas meus para o francês?”

Eu já estava pra lá de envolvido com as versões dos poemas da Alice Ruiz, ao que, entusiasmado, topei. Como eu já disse: adoro desafios. Acho que ficou bom. Ao final, pedi algum auxílio para minha amiga Sophie Fakhouri que me salvou na hora de dar alguns toques finais. Deixo com vocês um amuse-gueule, um petisco. Quem estiver no Salon, no dia 21 às 21h, ouverá les autres poèmes.

PAS TOUT À FAIT FRANÇAISE

Elles résonnent
sous le silence
de la nuit de la ville
Paris

La langue-fétiche
de Jeanne Duval
– la “Vénus noire”
de Baudelaire
la langue
des poèmes nègres
de Tzara
la langue de l’île-litanie
d’Aimé Césaire

La langue-balafon
de Sédar Senghor
la langue franche
d’un Orphée Noir
ou plusieurs
selon l’écoute
de Jean-Paul Sartre
la langue sans masques
blancs
de Frantz Fanon

La langue-musique
sans vibrato
de Miles Davis
la langue tout soleil
d’Henri Salvador
la langue-sound system
de MC Solaar
la langue-exil
de Richard Wright

la langue du chant-exil
de Josephine Baker
figurée en fil d’acier
par Alexander Calder
la langue-double-exil
en terre étrangère
de James Baldwin
la langue-zone de frontière
de Patrick Chamoiseau
la langue des trois fleuves
qui coulent dans les veines
de Léon Gontram-Damas
la langue errante
du chaos-monde
d’Édouard Glissant

La langue de l’étoile
qui a éclaté une seule fois
de Depestre
la langue de l’étoile pourpre
de Rabéarivelo
la langue des petits
contes nègres
aussi pour des enfants blancs
de Blaise Cendrars

La langue de la Marseillaise
transformée en samba
par Clementina de Jesus
à l’Olympia
antérieure à la fatigue
de toutes les langues

La langue de ceux qui
personne n’entend jamais – pas
tout à fait française

*

NÃO TOTALMENTE FRANCESA

Soam
sob o silêncio
da noite da cidade
de Paris

A língua-fetiche
de Jeanne Duval

– a “Vênus negra”
de Baudelaire
a língua
dos poemas negros
de Tzara
a língua da ilha-litania
de Aimé Césaire
A língua-balafong
de Sèdar Senghor
a língua franca
de um Orfeu Negro
ou muitos
conforme ouvida
por Jean Paul Sartre
a língua sem máscaras
brancas
de Frantz Fanon

A língua-música
sem vibrato
de Miles Davis

a língua toda sol
de Henri Salvador
a língua-sound system
do MC Solaar
a língua-exílio
de Richard Wright

a língua do canto-exílio
da Josephine Baker
figurada em fio de ferro
por Alexander Calder
a língua-duplo exílio
em terra estranha
de James Baldwin
a língua-zona de fronteira
de Patrick Chamoiseau
a língua dos três rios
que correm nas veias
de Leon-Gontran Damas
a língua errante
do caos-mundo
de Édouard Glissant

A língua da estrela
que brilhou uma só vez
de Depestre
a língua da estrela púrpura
de Rabearivelo
a língua dos pequenos
contos negros
também para crianças brancas
de Blaise Cendrars

A língua da Marselhesa
convertida em samba
por Clementina de Jesus
no Olympia
anterior à fadiga
de todas as línguas

A língua dos que
ninguém nunca ouve – não
totalmente francesa

Alice Ruiz em francês

Alice Ruiz
Foto: Christian Franz

 

Na virada de 2014 para 2015, recebi um desafio da Alice Ruiz: verter poemas dela para o francês. Achei difícil a proposta. Embora trabalhe há muitos anos com o francês, nunca tinha me aventurado a fazer versos na língua. Mas adoro desafios. E tomei gosto pela coisa. E traduzi também uns versos do Ricardo Aleixo e meus. Vou botar as notícias a conta gotas. Pra durar mais.

3 poèmes d’Alice Ruiz (traduits par Leo Gonçalves)

1.
au principe c’était le silence
seul les marées le cassaient
au principe c’étaient les marées
et leur rythme

au principe c’était le rythme
et le rythme est devenu son
et le verbe s’est fait
et le verbe a vu que le son était bon

au principe le rythme était là
pour que tous ensemble
conduisaient mieux
leur vaisseaux

ensuite il est devenu chanson
et poésie, pour principe

*

no princípio era o silêncio
só quebrado pelas marés
no princípio eram as marés
e seu ritmo

no princípio era o ritmo
e o ritmo transformou-se em som
e fez-se o verbo
e o verbo viu que o som era bom

no princípio o ritmo serviu
para que todos juntos
conduzissem melhor
sua embarcação

depois virou canção
e poesia, por princípio

2.
il était une fois
une femme
qui voyait
un futur d’or
pour
chaque homme
qu’elle touchait

un jour, alors,
elle s’est touchée

*

era uma vez
uma mulher
que via
um futuro
grandioso
para
cada homem
que a tocava

um dia
ela se tocou

3.
SANS RECETTE

D’un geste précis et si doucement
enlever la peau
cette limite de la matière.
Mais celles des ailes, ne pas toucher
elles se collent aux épaules
comme si allaient encore voler.

Les cuisses, libres et fermes
seront écartées
et écartées elles resteront
et la poitrine
sa chair si blanche et nue
n’y pensez pas
la proximité du cœur, non,
pas celui-là
qui peut savoir
comment assaisonner le cœur.

De l’intérieur
garder les viscères pour accompagner.
arroser les herbes
égrener le sel
allumer le feu
marquer le temps.
Finalement pour farcir
l’innocente pomme rouge
qui si douce, humide, indiscrète
nous a ôté du paradis
et nous a fait ainsi
sans recette

*

SEM RECEITA

Primeiro, lenta e precisamente,
arranca-se a pele
esse limite com a matéria.
Mas a das asas melhor deixar
pois se agarra à carne
como se ainda fossem voar.

As coxas, soltas e firmes,
devem ser abertas
e abertas vão estar
e o peito nu
com sua carne branca
nem deve lembrar
a proximidade do coração
Esse não. Quem pode saber
como se tempera um coração?

Limpa-se as vísceras,
reserva-se os miúdos
para acompanhar.
Escolhe-se as ervas,
espalha-se o sal,
acende-se o fogo,
marca-se o tempo
e, por fim, de recheio,
a inocente maçã,
que tão doce, úmida e eleita
nos tirou do paraíso
e nos fez assim:
sem receita


musique Zé Miguel Wisnik