Arquivo mensais:novembro 2014

Consciências negras

Assimilacionismo – uma história martinicana
Assimilacionismo na Martinica

Colonizada pela França desde o século XVII, a ilha da Martinica havia sido, anteriormente, um território indígena. A história conta como tendo sido este o país onde pela primeira vez os europeus presenciaram um ritual antropofágico. Pequenina em meio ao mar do Caribe, a ilha paradisíaca fez, juntamente com o Haiti e Guadalupe, a fortuna da França no período anterior à revolução francesa de 1789. De lá, saía a maior parte do açúcar que adoçou a boca dos marqueses. O império do roi Soleil era uma festa de pompa e alegria, repleto de animais trazidos dos trópicos, provavelmente dessas ilhas.

Quando os franceses tomaram a ilha, exterminaram por completo os habitantes aborígenes que ali viviam. Em seguida, passaram a trazer constantes contingentes de africanos para trabalhar nas lavouras de cana. Na ilha, conviviam negros em número incontável e brancos que trabalhavam na exploração do trabalho dos primeiros. Os martinicanos os chamam ainda hoje de békés. São, segundo as palavras de um béké, os “brancos que se mantiveram em raça pura na martinica”. Esse mesmo béké que aparece no documentário “Aimé Césaire, un negre essentiel”, ao ser perguntado se os negros são difíceis de lidar, responde: “os negros são como crianças: você dá a eles o que eles querem, você obtém o que quiser”.

Aimé Césaire, nascido em 1913, respirava essa Martinica servil e se sentia mal. O clima era extremamente “assimilacionista”. Havia uma festividade tipicamente martinicana que o irritava. Uma coisa quase folclórica, que fazia o negro compor em termos de pitoresco, a paisagem hiperturística da ilha. No Brasil, chamaríamos esses martinicanos de “negros pai-joão”, ou utilizando um termo do movimento negro norte-americano, “uncle Tom”. Aquele que dá sorrisos banania para o colonizador. Em suma, o negro assimilacionista.

Césaire, perto de completar seus vinte anos, se muda para Paris onde continua seus estudos de normalista, no colégio Louis-le-grand. Conta que na viagem, no navio que o levava a Paris, atordoado com a maneira martinicana de ser, ficava escondido em seu quarto. Em Paris, ele conhece Léopold Sédar Senghor e Léon Gontram Damas. E é lá que encontra a eruptividade vulcânica de sua poesia. “Sempre estive do lado do protesto”, ele responde, durante uma entrevista ao jornalista francês Patrice Louis. Fundam, juntos, o jornal l’Étudiant Noir, onde surge, pela primeira vez a palavra “Négritude”. Num artigo, intitulado “Negrarias: juventude negra e assimilação”, ele comenta:

“Um dia, o negro colocou a gravata do branco, pegou um chapéu coco, se arrumou e saiu dando risada… Estava apenas brincando, mas o negro se deixou cair na brincadeira; se habituou tão bem à gravata e ao chapéu coco que acabou por acreditar que ele sempre os havia usado: caçoou de quem não usava e renegou seu pai que tem por nome Espírito da Savana… é um pouco a história do negro do pré-guerra que não é senão o negro de antes da razão. Foi colocado na escola dos Brancos, quis se tornar “outro”, quis ser ‘assimilado’.” (Em “Nègreries: jeunesse noire et assimilation”. L’étudiant noir, 1935)

Césaire voltaria para a Martinica em 1939 com sua esposa, Suzanne Césaire. Criariam juntos a revista Tropiques, onde fez veicular partes do Cahier d’un retour au pays natal, seu poema mais famoso e que, mais tarde seria elogiado por André Breton. Se envolve por alguns anos em projetos pedagógicos, ligado ao colégio Victor Schoelcher, mas logo é convidado pelos integrantes do partido comunista a ser seu representante. É escolhido pelos cidadãos para ser o prefeito de Fort-de-France em 1945. Mais tarde, é também enviado ao Congresso Nacional da Franca para representar os interesses da ilha. O que queriam os do partido? A assimilação.

Havia então uma aspiração bem popularizada, generalizada [na Martinica]: se tornar um departamento francês. Era quase um mito. E eu, com minha abertura rumo à África, rumo à cultura do povo, eu estava – devo dizer – confuso, um pouco chocado. (Louis, 2003)

Como lidar com o fato de que os próprios habitantes de sua terra natal queriam aquilo contra o qual ele lutava tão ardorosamente?

Refleti um momento e, finalmente, cedi. Por que eu cedi? Porque pensando melhor, compreendi que não deveria cair no jogo das palavras. Há as palavras, e o que há por detrás das palavras. Eu havia aprendido a conhecer melhor o povo, o povo das periferias, o povo dos bairros pobres, e compreendi que, na realidade, estávamos iludidos por uma incompreensão, e que a palavra “assimilação”, em realidade não significava assimilação. Assimilação é se tornar semelhante; mas eu me dizia que, para nós, martinicanos, filhos de netos de africanos, essa assimilação era uma alienação. E eu não podia ser a favor da alienação. Era, na verdade, um erro de vocabulário. O que as pessoas queriam realmente, não era se tornar outro; o que eles queriam era a igualdade para com os franceses. Portanto, falar de assimilação era usar impropriamente o termo – o que é muito comum. Então eu disse [aos homens do partido comunista]: “Bem, de acordo, vou pedir o que vocês chamam de assimilação, mas que eu chamo de departamentalização”. (Louis, 2003)

Nos anos 1950, o General Charles De Gaule, presidente da França, passa a negociar com os países colonizados suas independências. Acontece que muitos não quiseram suas independências por considerar que eram países sem a força necessária para lidar com o cenário mundial. Assim é que a Martinica, Guadalupe, Reunião e algumas outras ilhas pelo mundo afora se tornaram o que os franceses chamam de DOM, Département d’Outre Mer. Os nascidos nesses lugares são considerados franceses, possuem o mesmo direito e as mesmas proteções que o governo francês dá para os cidadãos nascidos no hexágono (como a França é chamada pelos seus cidadãos).

Com tudo isso, a doutrina do antiassimilacionismo permanece. O desejo de assimilação não acaba no mundo. O próprio Césaire, quando envia a famosa Carta a Maurice Thorez, pedindo sua demissão do Partido Comunista, afirma: “Há duas maneiras de se perder: por segregação amadurecida no particular ou por diluição no universal.” A assimilação, essa espécie de canibalismo muito mais violenta do que a praticada pelos antigos ameríndios, essa assimilação que inclui a morte definitiva de todo e qualquer rastro do que é “diferente” da ordem vigente, essa assimilação é a que tem ganhado espaço em vários lugares do mundo globalizante.

É parente dessa assimilação a cultura do embranquecimento tão tipicamente brasileira, essa que diz que, ao nos misturarmos, uma das fontes deixa de existir. O canibalismo branco brasileiro. O Brasil, esse país que Césaire não gostava muito de frequentar, pois o considerava um país “assimilacionista” demais. O assimilacionismo é o ponto a ser pensado, vivido, sentido. É nele que penso neste dia da Consciência Negra.

Lançamento: “A puta” de Márcia Barbieri

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Neste sábado, terei o prazer de participar do lançamento do livro A puta, de Márcia Barbieri, que acontece no Hussardos Clube Literário (Rua Araújo, 154 – 2º andar) das 19h às 22h. Também participa o meu camarada Marcelo Ariel e o músico Leandro Mendes.

A escrita de Márcia Barbieri é uma das coisas mais inquietantes que conheci nos últimos tempos. Não há lugar comum nem aparências capaz de descrever o que o seu texto provoca no corpo e no juízo (ou na falta de) de quem a lê.

Circuito Literário Praça da Liberdade

Dia 16/11: Leo Gonçalves e Flávia Peret sabatinam Marcelino Freire

Ir e vir de BH neste segundo semestre tem sido um prazer. Se não me engano, o próximo fim de semana somará a quinta vez em menos de dois meses. As tarefas sempre das boas: matar saudades, votar na Luciana Genro e matar saudades, votar na Dilma e matar saudades. Na semana passada, tive a honra de ministrar a palestra “Ojá: mercado e negritude”, que criei especialmente para compor a Semana da Consciência Negra das empresas Google, com uma de suas sedes na cidade.

Neste agora, a poesia volta à cena principal. Participo do Circuito Literário Praça da Liberdade, papeando com Marcelino Freire, este escritor que mistura melopeia, desespero e paixão pela vida em seus contos e romances, e que já se tornou um dos camaradas meus na Pauliceia. Para a sua felicidade, estará também na conversa a linda, brilhante e admirada Flávia Peret, pesquisadora fina, leitora de primeira, mãe do Joaquim dentre as muitas coisas megabacanas que ela sabe fazer.

Como chego na sexta para o evento, espero que a poesia se faça presente em cada segundo. Você que gosta de mim e não tem encontrado tempo de me encontrar, aparece lá. Às vezes é difícil organizar todos os encontros.

Com tudo isso, só me resta cantar aquela música do Chico César que diz assim:

“Eu e os meus companheiros ai ai
queremos cumplicidade ai ai
pra brincar de liberdade
no terreiro da alegria ai ai”

Para saber mais sobre esse evento bacana, toma aí o link: http://circuitoculturalliberdade.com.br/plus/