O que existe de valor por aqui exceto a paisagem?
Incontida volúpia de saquear.
É mister roubar. É mister roubar a luz
Que cobre
Montanha e mar.
Roube!
(Waly Salomão, “Poesia Hoje”)
Quem frequenta esse salamal-antro há mais tempo, deve ter sentido a falta do antigo subtítulo que sempre o acompanhou: “poesia contra a moral e os bons costumes”. O retirei faz pouco, não porque tenha mudado de ideia, mas porque sei o quanto essas palavras pesam para os olhos incautos, o susto que as pessoas desprevenidas tomam ao ler logo a frase assim a queima-roupa. Sei também que há aqueles que se torna(ra)m leitores do blogue ao se deparar com a proposta, os que aderem logo de cara, se entusiasmam, que já trazem o gozo na alma. Afinal, tenho que admitir, querer isto da poesia não é nada original. Faz parte das ideias que circulam no ar, do Zeitgeist, o Espírito da Época.
Dia desses recebi no meu e-mail a seguinte mensagem, de uma certa Mariana:
Poesia contra a moral e os bons costumes. Isso é apresentação que se apresente? O país está afundando em desonestidade e imoralidade e você tem coragem de fazer uma propaganda contra a moral? Que coisa mais triste. Fiz uma pesquisa no google e veio sua página, tive pavor quando li. Você é adolescente e odeia os seus pais, é isso?
Achei graça do comentário. Não concordo com uma palavra do que ela diz. Acho que sim, é apresentação que se apresente, contra a imensa caretice (isto sim!) em que este mundo está se afundando, não apenas o país. Acho que tamanha caretice virou justificativa para a desonestidade a que minha correspondente faz referência, e não só no Brasil. Também não concordo com a importância que ela dá à moral e menos ainda com a oposição que ela faz à desonestidade. E não se trata de odiar os pais, Mariana, mas de honrá-los e (se desse) de sacanear com esse paternalismo machista para o qual nós, homens e mulheres, fazemos as nossas preces sempre com medo que ele caia de vez.
Mas é tudo uma questão de conceitos. Foi a Renata Oliveira (grande amiga que sempre me aplica em novidades deleuzianas e outras firulas filosóficas iluminadas) que me mostrou o texto “Ética como potência, Moral como servidão”, de Luiz Fuganti (clique aqui para lê-lo). Ótimo para ilustrar o quanto de sujeição voluntária há em se querer um mundo mais “moral”. Vale a pena citar:
Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados “bons costumes”, autoqualificados de científicos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituídos de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação.
Moral e bons costumes são os instrumentos do Leviatã. O cidadão crédulo de que a realidade constituída é produtora de paz e tranquilidade. Salvo do medo e do desengano (para não dizer salvo no medo e no engodo), ele pode seguir em frente sabendo que existe uma frase feita, um discurso pronto em que se apoiar. Os caminhos da moral levam facilmente à culpa e à hipocrisia.
Isso sem falar no politicamente correto. No mundo conectado, o politicamente correto é um grande subterfúgio maniqueísta, provavelmente com a mais ampla adesão já vista na história da linguagem. Supõe-se que, mudando os nomes das coisas, elas se tornam menos violentas e, daí, mais “moralizadas”. Chamam negro de afro-descendente, aumentando assim o grau de indexação do indivíduo a partir da velha convenção de que a África é o continente negro e não outra coisa. E daí por diante com burocratizações e relativizações de palavras sucintas e eficazes como “cego”, “mudo”, “surdo”. No mais, não há indício nenhum de que fulano ou sicrano não possa usar termos politicamente corretos de maneira discriminatória. As maneiras “light” de usar a linguagem não garantem a inexistência de sentimentos ruins.
Embora seja fruto da desconfiança com a linguagem, não deixa de haver uma certa nostalgia no politicamente correto (vale dizer que algumas das pessoas que mais admiro, são praticantes do famigerado vocabulário politicamente correto e não as culpo por isso). Ao tentar retirar a carga de violência da vida mudando as palavras, tenta-se conferir eficácia a elas. Não notam que ao fazer isto, os próprios falantes colocam as palavras em descrédito. O politicamente correto é a moral aplicada à linguagem, apenas mais uma tentativa de domesticá-la.
Vivemos numa espécie de Alphaville de Jean-Luc Godard. Propagamos ideias aparentemente rebeldes via Twitter ou via Facebook sem notar que estamos apenas repetindo os adágios politicamente corretos da grande mídia. Ao mesmo tempo, entregamos informações a nosso respeito para grandes corporações fantasiadas de prestadoras de serviço. A diferença entre moral e ética é a diferença entre o Facebook e a poesia. No primeiro, todos se creem participantes da grande comunidade humana mundial. O Facebook (e também a moral) é a realização dos nossos desejos mais adolescentes: com ele sentimos que “fazemos parte”. Nas redes sociais, a poesia encontra finalmente um significado (que ela não pediu). Lá, ela finalmente se torna útil: ao ser postada, as pessoas curtem. Ou não.
O poeta que busca a liberdade, rema (rima?) contra a correnteza: suas palavras são dotadas de uma estranha transfiguração, já não ditam ordens, já não constituem leis. No poema, as palavras são um fim em si mesmas, totalmente inútilizáveis. Pura potência contra uma vida apegada a significados, coerções, sedução e consumo. Contra a moral, a poesia é a felicidade de quem alcançou a miséria absoluta. Como com os antigos profetas judaicos, os griots do Senegal, os aedos gregos, os bobos das cortes medievais, os juglares da península ibérica: não ter nada nos concede o direito de dizer tudo, levem-nos a sério ou não. A grande comunidade mundial da poesia é uma imensa população de dissidentes entre si. Ao discordarem uns dos outros, tendem a estar cada vez mais unidos.
O mundo baseado na moral introjetada tende a se tornar irrespirável. 1984 é aqui. Surgirá algum poema que nos tire dessa estúpida monotonia? Como no filme do Godard, virá Lemmy Caution falar versos incompreensíveis para destruir Alpha 60, o grande olho central? Algum Orpheu maldito nos tirará desse inferno? O mundo pode ser mais interessante que uma timeline ou um programa de notícias? É possível haver vida para fora dos prolixos 140 caracteres, das novelas e das soap operas?
Poesia contra a moral e os bons costumes é um apelo que carrega em si o sufixo -ética: além dos já esperados po-ética, est-ética, quero sonhar também com sint-ética e sincr-ética. Poesia como potência. Crueldade como ecologia da linguagem. Poesia. E seus arredores.