Há vários anos que traduzi a pequena série de poemas “As amigas”, de Paul Verlaine. Na época, lia vorazmente os rebeldes da literatura francesa, especialmente Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire. Verlaine, que circulava entre eles (mas que não considero um rebelde), também sabia agradar.
Depois que traduzi, o meu desejo era o de repetir, numa edição bilingue, o feito do autor de “de la musique avant toute chose” e seu editor pirado: publicá-lo na forma de plaquete, com esse quadro do Klimt (que vocês estão vendo aí embaixo) na capa. Coisa simples e bonita. Cheguei a negociá-lo com o Oséias, da editora Crisálida, mas acabei concordando que não valeria tanto a pena, comercialmente. Me lembro de também ter mostrado para algumas pessoas, dentre elas o poeta Guilherme Gontijo Flores, tradutor de Propércio.
Mas em meio aos desajeitos dessa vida, esses e muitos outros trabalhos foram parar no fundo da minha “gaveta”. Tenho agora a alegria de dá-los a luz, através do blog Escamandro, a convite do mesmo Guilherme Gontijo Flores, a quem agradeço, além do convite, as boas palavras. Lá foram também publicadas outras versões de alguns dos poemas da série, no dia 30 de março, aniversário de 168 anos de Paul Verlaine.
Para ler as traduções que fiz, é lá no: www.escamandro.wordpress.com
Aproveito para me demorar um pouquinho mais sobre o assunto.
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Atualidade de Don Pablo María de Herlañes
A pequena suíte de sonetos Les amies – scènes d’amour saphique apareceu pela primeira vez na forma de plaquete, publicada em 1867 sob os auspícios do editor Auguste Poulet-Malassis. Naquela edição, o autor aparece sob o bem-humorado pseudônimo de Pablo María de Herlañes. Segundo consta, os 5 poemas que fazem parte da coleção são as obras mais antigas escritas pelo autor, aos quais ele acrescentaria para esta edição o soneto invertido Sapho. A edição, embora pequena, foi condenada e retirada de circulação pouco tempo depois de sua primeira tiragem, acusada de ser uma obra licenciosa.
Apesar disso, o tema do lesbianismo parecia estar muito em voga naqueles tempos. Os críticos são praticamente unânimes em considerar esses poemas uma espécie de variação sobre um tema lançado à baila por Charles Baudelaire nos poemas “Lesbos” e “Femmes damnées”, ambos também condenados e proibidos de figurar nas primeiras edições das Fleurs du mal.
E não foi só Verlaine que apanhou “o grito do galo”. É dessa mesma época o famoso quadro “Dormeuses” do pintor Gustave Courbet. O poeta inglês Swinburne seguia o caminho dos mestres com o longo poema “Anactoria”, publicado um ano antes das “Amigas” de Verlaine. Um dos mais belos livros do século XIX é Les chansons de Bilitis, de Pierre Louÿs, cujos poemas mais tarde foram musicados por Claude Debussy. Mesmo o nosso Cruz e Sousa tem lá seu soneto “Lesbia”, que aparece no livro Broquéis.
Em todos os casos, é inevitável a referência à poeta Safo de Lesbos, cuja obra (especialmente naquela época) constava de apenas uns poucos fragmentos e uma única ode a Afrodite que foi guardada inteira por ter sido citada por um sofista grego. Afora esses poemas, as referências a ela eram todas provenientes dos romanos que, de certa forma, guardaram um pouco de sua obra em traduções e referências: Horácio, Catulo, poetas líricos por excelência e que, por essa razão, buscavam seus modelos entre os clássicos gregos e Ovidio que, embora épico, gostava especialmente do tema do amor. Graças a Ovidio é que a lenda de Faon (presente no último poema da série) se mantém viva até o século XIX e é assim que ela chega a Verlaine.
De todos os poetas que fantasiam a respeito das “Amigas”, Verlaine, na minha opinião, é o que dá a forma mais delicada, se valendo de combinações métricas pouco usuais para o soneto francês e sonoridades que deixam os poemas bem suaves e excitantes. Diferentemente dos outros, ele não as vê como as másculas mulheres do quadro de Courbet, muito menos como as “mulheres amaldiçoadas” de Baudelaire. Não trata do tema como que de um pecado ou de um mero fetiche masculino. Verlaine é, ele mesmo, um homem feminino ou quase, partidário daquele amor que ele não só não condena como embeleza. Afinal, como ele mesmo diz em um outro poema, “Je suis pareil à la grande Sapho [Sou igual à grande safo]”.
Talvez a pequena suíte das amigas de Paul Verlaine goze hoje de sua melhor atualidade. Basta circular pelas ruas de qualquer grande cidade, lançar uma olhadela pelas redes sociais e as conquistas que as e os homossexuais vêm obtendo em meio a essa estranha sociedade (que no século XIX prendeu o mesmo Verlaine por praticar a sodomia), para vermos que, sim, as “Amigas” merecem mais do que nunca o seu lugar ao sol. Hoje, 145 anos depois de sua primeira edição, elas já não serão mais condenadas, mas amadas, desejadas, esperadas. Incomoda ainda os conservadores. Mas sua proibição geraria ondas de protesto e beijaços pelo país afora, viraria escândalo.