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Rebeldes e revoltados

Rimbaud

Estamos em tempos de revolta. Caiu na rede, jogou palavras ao vento, à esquerda ou à direita, feminista ou machista, racista ou antirracista, fascista ou progressista, direitista-conservador ou anarquista libertário, passando por todas as nuances de um polo a outro, parece que o sentimento mais disseminado por todas e todos é: a revolta. A rebeldia, no entanto, parece uma promessa esquecida, uma utopia obsoleta, jogada ao relento, adormecida como o adormecido do vale de Rimbaud.

O revoltado está puto. Vai quebrar tudo. Prepare-se. É porrada que ele quer.
O rebelde observa.
O revoltado tem certeza. Foi cometida contra ele a maior das injustiças: roubaram seu pirulito, pediu o café, o café não veio, por que estão gritando a essa hora?

Os olhos do rebelde te devoram e te atravessam. Há um alvo, um plano, um fim. Por isso, ele não tem muitas certezas. Certezas podem se transformar em obstáculos intransponíveis.

Revoltado com o ônibus que passou direto, o homem pôs-se a gritar. Parecia um animal a caminho do sacrifício. Seus motivos eram todos muito corretos. Um homem honesto e branco não pode ser deixado às 4h30 da manhã na rua. Não pode ser desprezado assim por um motorista, não pode ser tratado como uma pulga pedindo carona no meio da noite. Onde está o fiscal desta porra?

“Deve ter ido comer coxinha”, responde, rebelde, um adolescente. Se levanta e vai embora. A pé. “Foda-se o ônibus”, diz.

O homem revoltado é uma bomba, um grito em uníssono, o estouro da boiada.

O rebelde é insubmisso: jamais fará parte do rebanho.

O revoltado está reunindo uma turma de revoltados para surrar Emmett Till, o garoto negro que assobiou para uma moça da turma.

Rebelde, Emmett Till olhou safado para a moça da turma e ela retribuiu com tesão. Um dos revoltados viu tudo e resolveu tomar uma atitude. Estou misturando histórias. Não importa.

O revoltado lincha.

O rebelde incomoda.

O revoltado segue às cegas uma causa, um princípio, uma moral, uma ideologia, um deus.

O rebelde olha ouve fareja tateia saboreia.

Rebelde, Rosa se sentou no banco destinado a pessoas brancas e se recusou a se levantar.

O rebelde, no átrio do templo, quebrou as mercadorias, gritou, esperneou e fez cantar a chibata. Disse que deus não está a venda. Revoltados, os donos das mercadorias pediram a cabeça do rebelde numa bandeja. Chamaram-no de terrorista.

O rebelde foge da multidão, vira herói romântico.

Os fãs de hoje são os revoltados de amanhã. Revoltados lincham seus ídolos quando estes fazem algo inesperado. Rebeldes sempre fazem coisas inesperadas.

Rebeldia fez Rimbaud abandonar a poesia aos 20 anos, logo após revolucioná-la. Revoltada por ter sido trocada por um boy, Mathilde Verlaine acusou o marido de sodomia e de outros crimes, obrigando-o a cumprir uma pena de alguns anos. Na prisão escreveu um poema intitulado “Crimen Amoris”.

O rebelde, em tempos de formalidade, aparece na foto com a gravata torta e o cabelo bagunçado.

O revoltado veste uniforme.

Revoltados amam a ordem, por isso não hesitam em vandalizar, destruir, quebrar e saquear o que veem pela frente. Rebeldes detestam a ordem. Por isso se ausentam dela. Seja para destruir. Seja para preservar.

Obrigados a comer o sal extraído pelos ingleses, indianos caminharam até a praia e declararam o sal um bem da natureza. A ordem era ir ao trabalho de trem. O trem era dos ingleses. Por isso, decidiram ir a pé, proporcionando o caos.

Rebeldes podem conviver com o caos porque sabem que ele é uma etapa rumo a uma vida menos esculhambada.
Rebeldia é estratégia.
Revolta é reação.
Rebeldia é senso crítico e duradouro descontentamento.
Revolta é sangue nos olhos.

Há rebeldes que se revoltam.
Há rebeldes que se rebelam.
Tudo depende da hora.
Revoltados apenas se revoltam, mesmo quando os rebeldes iluminam suas almas com grandes sonhos.
Rebeldia é Tesão.
Revolta é retaliação.
Revoltados querem o polegar para baixo.
Rebeldes mostraram o dedo do meio para o César.

Revoltados só estavam seguindo a ordem, a moral e os bons costumes.
Rebeldes perguntaram por quê e foram punidos por isso.
Revoltados, ao se juntar à massa, esqueceram seus princípios.
Rebeldes não se juntaram à massa, não formaram uma massa, mas uniram-se em favor de uma causa maior.

O rebelde quer o fim do poder instituído.
O revoltado quer instituir um novo poder.

Rebeldes invadiram as escolas e exigiram respeito, transformando-as em algo bem melhor do que eram antes.

Rebeldes mudam a natureza das coisas.

Revoltados se enfurecem.

Beatriz Preciado: Nós dizemos revolução

Beatriz Preciado

Publicado no caderno “Culture” do jornal Libération de 20 de março de 2013, este artigo de Beatriz Preciado continua atual. Faz pensar nas discussões em torno a partidarismos e apartidarismos nas manifestações que ocorrem no Brasil hoje, o massacre que a mídia faz sobre os Black Blocs (nosso talvez Occupy brasileiro) e a incapacidade que a mentalidade política centenária tem para compreender as múltiplas revoluções possíveis nos dias atuais. Para postar aqui, traduzi com uns toques do meu amigo Josaphat Franca Fonseca Neto (que foi também quem me indicou a leitura do texto). Quem quiser ler o original, ele está aqui: www.liberation.fr

*

NÓS DIZEMOS REVOLUÇÃO
Beatriz Preciado

Parece que os gurus da velha Europa colonial estão ultimamente obstinados a querer explicar aos ativistas dos movimentos Occupy Indignados, aleijado-trans-bicha-intersexual e pospornô, que nós não poderemos fazer a revolução porque nós não temos uma ideologia. Eles dizem “ideologia” como minha mãe dizia “marido”. Ora, nós não precisamos nem de ideologia nem de marido. Nós as novas feministas não precisamos de marido porque não somos mulheres. Da mesma forma que não precisamos de ideologia porque não somos um povo. Nem comunismo nem liberalismo. Nem a ladainha católico-muçulmana-judia. Falamos outra língua. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem domesticar a periferia. Nós dizemos mestiçar a cidade. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multi-espécies. Eles dizem carne de cavalo nos nossos pratos. Nós dizemos “montemos nos cavalos para escaparmos juntos do abatedouro global”. Eles dizem poder. Nós dizemos potência. Eles dizem inclusão. Nós dizemos código aberto. Eles dizem homem-mulher, branco-negro, humano-animal, homossexual-heterossexual, Israel-Palestina. Nós dizemos: vocês sabem muito bem que seu aparelho de produção de verdades não funciona mais… De quantos Galileus precisaremos desta vez para reaprendermos a nomear as coisas nós mesmos? Eles nos proporcionam a guerra econômica a golpes de facão digital neoliberal. Mas nós não vamos chorar pelo fim do Estado-providência porque o Estado providência era também o hospital psiquiátrico, o centro de inclusão de deficientes, a prisão, a escola patriarcal-colonial-heterocentrada. É tempo de colocar Foucault na dieta aleijado-queer e escrever a Morte da clínica. É tempo de convidar Marx para um atelier eco-sexual. Nós não vamos encenar o Estado disciplinar contra o mercado neoliberal. Esses dois aí já fizeram um acordo: na nova Europa, o mercado é a única razão governamental, o Estado se torna um braço punitivo cuja única função é a de recriar a ficção da identidade nacional através do medo securitário. Nós não queremos nos definir nem como trabalhadores cognitivos nem como consumidores farmacopornográficos. Não somos Facebook, nem Shell, nem Nestlé, nem Pfizer-Wyeth. Não queremos produzir franceses, tampouco produzir europeus. Não queremos produzir. Somos a rede viva descentralizada. Recusamos uma cidadania definida por nossa força de produção ou nossa força de reprodução. Queremos uma cidadania total definida pela divisão das técnicas, dos fluidos, das sementes, da água, dos saberes… Eles dizem que a nova guerra limpa se fará com drones. Nós queremos fazer amor com os drones. Nossa insurreição é a paz, o afeto total. Eles dizem crise. Nós dizemos revolução.

Um poema de Renato Negrão

felino

é macho
e é bicha
e gosta de mulher

que é mulher
e é macho
e adora homem

que é homem
e é bicha
e odeia homem

que é macho
e é homem
e não gosta de mulher

que é homem
e é homem
e gosta de menino

que é menino
e é adulto
e gosta de adulto

que é menino
e é menino
e gosta de mulher

que é mulher
e é mulher
e gosta de traveco

que é homem
e é mulher
e gosta de homem

que é homem
e é homem
e gosta de traveco

que é homem
e é menina
e gosta de menino

que é menina
e é menino
e gosta de felino

(do livro Vicente Viciado. BH: Rótula, 2012)

Foto: Glenio Campregher

Entrevista sobre WTC BABEL S. A.

foto: marcelo terça-nada!
foto: marcelo terça-nada!

Foi bacana o lançamento do livro, ontem. Pessoas que admiro vieram me ver falar o poema mais longo que já fiz, desde das infimidades. Para agradecer, coloco aqui uma entrevista comigo mesmo, respondendo algumas perguntas que me tem sido feitas por esses dias.

O que deu em você para escrever sobre geo-política?

Não escrevi sobre geopolítica. Meu poema é sobre a incomunicabilidade num mundo onde o capitalismo, com seus anúncios publicitários e os manipuladores meios de comunicação propagam o desentendimento, a superficialidade, o canibalismo psíquico. Através de um mecanismo sutil, mantém-se milhões de seres humanos na condição de robozinhos de controle remoto.

Não quero a geopolítica. Quero a geopoética. Devolver às palavras seu sentido integral, como queria confúcio.

Mas nada disso importa. Poesia é quando você precisa falar e não há outra forma de dizer aquilo que sentepensa, que feelthink. Mesmo que o que você disse diga: nada.

Você acha que as milhares de pessoas que morreram no WTC mereciam ter morrido ali? Você é a favor daquele acontecimento?

Alguém a não ser o George W. Bush acha isso? Se acha, é melhor vigiar essa pessoa. você conhece? É seu vizinho? Toma cuidado…

No fundo no fundo todos querem alcançar o céu?

Claro. É por isso que se constrói prédios. Um andar em cima do outro até que um dia ele chega lá. Deus não gosta muito disso. Já tentou até confundir, certa vez, uma turma de pedreiros fazendo com que eles não se entendessem. Cada um tenta à sua maneira. Tem uns que querem o nirvana. Tem quem queira o céu aqui. Tem quem queira achar um atalho. Mas no fundo no fundo, todo mundo. É o princípio do prazer, do Freud. Não venha me dizer que você não!?

Eu estava ouvindo sua gravação no MySpace e fiquei confuso. No texto que acompanha o livro, María José Pedraza Heredia fala que o poema é para ser gritado. Mas no MySpace parece que é uma versão sem grito, bem descafeinada. Como isso se dá?

O grito é dentro. “Meu sertão é metafísico”.

Você disse que esse poema já contém muito do seu projeto pessoal. Mas é inevitável achar ali um fundinho de Ginsberg e dos beats.

Gosto muito da poesia de Ginsberg, mais do que dos beats. E a pegada ginsberguiana combina com o tema, não acha? Em realidade, acho o WTC BABEL S. A. muito diferente de tudo o que Ginsberg faz, com outro ponto de vista e outro tipo de rebeldia. Mas me orgulho da referência. Aliás, não só Ginsberg, mas muitos outros poetas são homenageados e reverenciados no meu poema. A começar por Walt Whitman, que homenageio e critico ao mesmo tempo. Tem também o Antonin Artaud, que tem uma visão política que gosto muito e que, de certa forma, compartilho. E mais Maiakovski, Waly Salomão, os poetas do grupo poesia hoje (do qual participei entre 2004 e 2006). Renato Negrão, comentando comigo sobre o poema, me lembrava de algo que eu não tinha me dado conta. Ele me dizia: “tem muito de Marcelo Companheiro nesse poema. Coisa que só uma pessoa como eu, que já te conhece há anos consegue perceber”. Acho que o Renato foi modesto não citando a si mesmo como influência. Tem também o Chacal, o Fausto Fawcett, o Juan Gelman. E tudo está muito escancarado, com um verso ou uma palavra conhecida de cada um deles. Afinal, trata-se de uma grande colagem. São referências, mas na verdade o poema é a minha cara. Só espero que ninguém vicie. Acho que não encontrarão mais Ginsberg em outros trabalhos meus.

Agora temos Barack Obama no governo dos Estados Unidos. O que você pensa disso?

Eu acho maravilhoso. Felizmente, com o passar do tempo, as coisas mudam. Há muitas maneiras de se pensar a política hoje. E uma delas é do ponto de vista das relações interraciais. É claro que raça é um conceito falso, e por isso temos que ficar atentos com os limites dessa dicotomia (aliás, toda dicotomia é perigosa e limitada). Mas como diz o poema, “essa é a época dos presidentes pop”. Era injusto o páreo entre McCain e Obama. Obama é um sujeito bonito, elegante, diplomático, inteligente. Transformou-se muito rapidamente num ícone da esperança mundial. Um perfeito presidente pop. Eu, pessoalmente, penso que ele passaria facilmente por um parente meu. Me orgulho. Politicamente, restam ainda muitos pontos obscuros. A dicotomia democratas versus republicanos é inquietante pelo tamanho da sua limitação. O mínimo que espero de um republicano é que ele seja democrata e vice versa. Vejamos primeiro o que o novo presidente dos Estados Unidos fará com os seus 300 milhões de loucos de ficção científica.