Tudo neste 2019 me lembra uma distopia. Não só porque é o ano em que o filme futurista Blade Runner (1982) se passa. Mas porque entramos naquela fase em que cotidianamente tudo tem algo de catástrofe. Das decisões políticas dos chefes de estado aos desastres ambientais. É nesse clima que me vejo na urgência de retomar este blogue como meu espaço de reflexão e de busca de saúde via linguagem.
Comecei este 2019 de um jeito estranho. Parece que tudo se transformou de um modo bem rápido ao longo da década e não vimos o tempo passar. Este ano, o Salamalandro completa 15 anos de existência. Quem notou? Os anos 10 ficaram marcados como a década das redes sociais. Estivemos todo esse tempo enfurnados no facebook e talvez tenhamos nos perdido lá dentro. Olhando em retrospectiva, podemos encontrar um sinal de mais e um sinal de menos. Não sei se algum dos dois é ruim. São apenas sinais. Queria comentar deles aqui.
Me lembro quando tudo não passava de uma brincadeira inocente, uma alegria. Um espaço para darmo-nos as mãos e irmos nos conhecendo. Pelo facebook foi possível descobrir possibilidades inauditas de encontros. Nos aproximamos por afinidades. Falando de mim: fiz amizades importantíssimas por lá. Ou mesmo: tendo conhecido certas pessoas em carne e osso, ao estabelecer a relação via rede, descobrimos que havia bem mais coisas que nos uniam. E isso nos trouxe felicidades, compartilhamentos, prazeres, descobertas.
Também podia acontecer o oposto: conhecendo gente que pessoalmente parecia linda, quando nos linkamos, descobrimos uma total desparecença. Eu mesmo ia fazendo aquela lista de coisas que me desinteressavam. Muita gente pode achar que era a questão política que contribuía para isso. Mas não. Olhando agora, acho que era mais uma questão estética. Uma pessoa que só fala de Deus e de Jesus. Outra que não cansa de enviar flores digitais, cada uma estampada num cartão mais feio que o outro, com dizeres cafonas ou comemorativos de datas (o que é cafona também). Aquelas pessoas que só se aproximavam para convidar a suas atividades, mas que jamais estabeleciam diálogos com as nossas. Aquelas que, ao postar qualquer coisa (na maioria sem o menor interesse para mim), marcavam uma multidão e então você recebia inúmeras notificações que nada tinham a ver. Mas confesso que nada se compara àquelas pessoas que postam poemas ruins e ficam esperando elogios. Rimas em ão. Rimas em inho. Poemas-flor-de-plástico. Poemas-declaração-de-amor ridiculíssimos.
Só depois é que começaram a surgir os insanos da política. We didn’t see it coming. De repente estávamos rodeados de estranhas discussões, debates bárbaros, frases agressivas, acusações de “seu comunistazinho de merda”. Quando vimos, já era tarde demais. Não deu tempo de entender que tudo estava acabando. Nossas convicções. Nossas alegrias. Nossas verdades miúdas e, até então, sem questionamento. Foi crescendo uma mentalidade desumana, uma crueldade desagregadora e anormal. E essa anormalidade foi se tornando um padrão, ao mesmo tempo em que as redes sociais deixavam de nos trazer alegrias (compartilhávamos música boa, poesia falada, obras de arte, notícias lindas sobre nossos êxitos, ou mesmo aquelas informações que fortaleciam as “mãos-dadas” de que tanto havíamos precisado nos últimos séculos e que agora tínhamos ao alcance). Elas agora nos envolviam num manto incontornável de ansiedades e dores, más notícias, debates sem sentido, discussões do óbvio, gritos de raiva entre pessoas que estavam, na verdade, dizendo a mesma coisa. As redes sociais começaram, de repente, a fortalecer nossas doenças psíquicas.
De repente, nossas neuroses começaram a virar psicoses. Nossas ansiedades começaram a se inflamar e dar pus. Nosso tempo passou a ser devorado numa atividade sem objetivos.
Foi quando vieram as eleições de 2018.
O candidato que ganhou, se aproveitou do potencial envenenador que as redes possuíam e usou-o para vencer as eleições. Venceu.
Eu, antes de ver o resultado dessa derrota (apenas mais uma), pulei fora do Facebook (apenas do facebook, as outras continuam, por enquanto). Não porque esteja com medo de que roubem meus dados. Isso já está feito. Já coletaram tudo há muito tempo e já estou mapeado. A questão sou eu.
Me recuperando com dificuldade do vazio cognitivo que fui desenvolvendo ao longo dos últimos anos ao usar a viciante rede social de Mark Zuckerberg, tenho usado o tempo para coisas que pouco a pouco fui deixando de lado: tocar violão (a música é um desafio que carregarei comigo até o último dia da minha vida), ler aqueles livros que comecei e não terminei, levar adiante meus projetos, dar aulas de francês, amar fora da rede, cuidar de plantas, encontrar-me pessoalmente com os amigos, olhar o céu quando há céu, a lua quando há lua e banhar-me de sol quando há sol.
Ao ver o resultado eleitoral em 2018, surgiu nas redes sociais um adágio: “Ninguém solta a mão de ninguém”. Como ando sensível às coisas ansiógenas, me pareceu que essa frase tem mais de neurose que de potência. Acho que andamos de mãos dadas demais e agora é o momento de soltar um pouco, de deixar os dedos respirarem, de nos olharmos em busca da saúde. De todas as coisas aprisionantes que existem neste mundo, o medo é a pior. Não tenhamos medo, essa doença contagiosa.
O momento é de estar em dia com a própria saúde. A subversão maior desse sistema identitário que ganhou o poder (sim, pois o conservadorismo é uma luta identitária, um grito de desespero dos machos, dos heterossexuais, dos ricos, dos brancos, dos que sempre estiveram no poder) é mantermos nossa saúde e nosso bem estar, livres do medo do que está por vir. Olhando para nossas conquistas e potências de cabeça erguida. Construindo uma vez mais os conhecimentos em torno àquilo que somos e que temos sido. Produzindo mais e mais mecanismos de fortalecimento daquilo que sonhamos para o mundo.
Só assim seremos sementes.
Um feliz 2019, repleto de realizações e de poesia para todo o meu “leitorado”, se por acaso ele existir.