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Entrevista com Juan Gelman (2004)

Na ocasião do lançamento de Isso, de Juan Gelman, que teve sua primeira edição em 2004, o Suplemento Literário de Minas Gerais fez veicular uma entrevista que fizemos com o poeta. Mais tarde, na edição de Com/posições, da editora Crisálida, Andityas Soares de Moura incluiu essa mesma entrevista como um apêndice aos poemas. O pensamento de Juan Gelman se faz vivo especialmente em seus poemas. Se procurarmos pela internet, encontraremos diversos depoimentos do poeta, que sempre gostou muito de dialogar com quem quer que sinta interesse por suas produções. Fazia parte de um gesto de honestidade dele.

Agora, em 2021, com a iniciativa da editora da UnB de fazer recircular a nossa tradução, essa entrevista volta à pauta do dia, ao menos para nós que gostamos de poesia e, em especial, de Juan Gelman. Atualizo alguns detalhes ao redor do trabalho, mas a entrevista segue na íntegra, ipsis litteris.

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Os inimigos invisíveis – uma conversa com Juan Gelman

Por Andityas Soares de Moura Costa Matos* e Leonardo Gonçalves**

Juan Gelman foi uma das mais importantes vozes da poesia de língua espanhola. Nascido no ano de 1930 em Buenos Aires, e falecido na Cidade do México em 2014, foi obrigado a se exilar na Europa durante a ditadura militar que, além de lhe assassinar o filho e a nora, sequestrou-lhe a neta e proibiu a publicação de seus escritos em território argentino.

Detentor de vários prêmios internacionais de poesia, autor de mais de duas dezenas de obras e incansável ativista na luta pelos direitos humanos, Gelman exibe em sua escritura muitas tendências divergentes, tendo conseguido sintetizar e aprofundar algumas das linhas expressivas mais importantes da poesia do século XX sem, no entanto, abrir mão de uma dicção particularíssima na qual se percebe um raro encontro de ternura, fúria e beleza.

Dentre os poemários que compõem sua vasta obra cabe destacar Hacia el Sur (obra central na qual Gelman recria sua história com o auxílio de heterônimos à moda de Pessoa), Com/posiciones (no qual dialoga com a tradição da poesia árabe-judaica que floresceu na Espanha muçulmana) e Dibaxu (originalmente escrito em sefardita, língua que os judeus utilizaram na Espanha até 1492).

Gelman vem conquistando leitores em todo o mundo desde os anos 50 quando publicou Violín y otras cuestiones. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas, inclusive o português brasileiro, onde pouco a pouco a lacuna vem se preenchendo com boas edições.

Em breve conversa com seus tradutores brasileiros, Gelman reflete sobre alguns dos temas mais intensos de sua poesia, sobre a qual Julio Cortázar comentava: “Talvez o mais admirável em sua poesia seja sua quase impensável ternura ali onde mais se justificaria o paroxismo do rechaço e da denúncia, sua invocação de tantas sombras por meio de uma voz que sossega e arrulha, uma permanente carícia de palavras sobre tumbas ignotas”.

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Andityas Soares de Moura: Fernando Pessoa disse certa vez que sua pátria era a língua portuguesa. Contudo, Octavio Paz acredita que para os latino-americanos o castelhano – e no caso único dos brasileiros, o português – não é simplesmente uma forma de expressão, mas também um dos instrumentos de dominação que os europeus trouxeram consigo. Assim, temos a impressão de falar uma língua que não é totalmente nossa e somos vistos pelos seus “verdadeiros donos” como falantes de segunda categoria. Gostaríamos de saber como é a sua relação com a língua e o falar maternos.

Juan Gelman: Minha relação com a língua é conflituosa, choco-me contra seus limites. A palavra de fora fere a criança em seu berço e essa ferida nunca se fecha. Supor, então, que depois de cinco séculos o castelhano e o português que se falam na América Latina não são totalmente nossos me parece um disparate retórico. E pouco importa como nos vejam os “verdadeiros donos” destas línguas: faz muito tempo que já não o são. Muito pelo contrário. Se não, como se explica a influência de nossas literaturas nas da península ibérica? As línguas latino-americanas continuam em estado nascente. E concordo com Pessoa. A língua é una pátria que inclui outras: a infância, o país natal, a fala de sua gente e a mais importante, a vida. 

Leonardo Gonçalves: Há ainda a questão das suas origens familiares, a convivência com diversas línguas no exílio, brincadeiras com o idioma russo (por exemplo: “que girondo liublimará lamora”) ou com o italiano (“adoro la palabra necesidad en italiano/ necesidad en italiano se dice bi/sogno/”), aquela resistência à língua do país onde se está exilado (especialmente em “Bajo la lluvia ajena”); enfim: coisas que reavivam a especificidade de cada língua e o quanto elas guardam da identidade do indivíduo. A principal relação do poeta é com a língua ou com a linguagem?

JG: A língua usa a linguagem para falar mais consigo mesma.

LG: Mas em cada livro você parece se valer de uma técnica diferente para chegar à expressão poética desejada. Em Hacia el sur há o uso da anedota, em Com/posiciones nota-se algo que lembra uma tradução bem livre, um diálogo com poetas de outros tempos, já em Citas y comentarios você parece esbarrar no misticismo, uma vez que se relaciona diretamente com San Juan de la Cruz, Santa Teresa de Ávila e outros autores dos séculos XVI e XVII. Por outro lado, conhecemos poetas que pensam a técnica somente no que diz respeito à superfície das palavras (métrica, rima, por um lado, e visualidade, plasticidade, por outro). Como se dá a entrada no mundo das palavras? O procedimento é algo importante na busca do resultado poético? Enfim, por quais caminhos se realiza a sua experimentação poética?

JG: Creio que não há receitas para todo mundo, sequer para uma mesma pessoa e só posso falar do meu caso. São as obsessões que me levam a escrever, reconheço-as quando chegam porque fico de mal-humor e sinto um ruído no ouvido. Cada obsessão – ainda que o “tema” seja o mesmo – se apresenta cada vez com um novo rosto, como se fosse um ponto diferente do mesmo círculo. Isso exige sua própria expressão, forçosamente distinta das anteriores, e aí há um choque com as ferramentas expressivas antes obtidas e que já não servem. O trabalho de fazê-las está de um lado, juntamente com o de encontrar as outras, as que se aproximam o máximo possível do novo som no ouvido.

LG: É fácil perceber em sua poesia uma espécie de “invenção” de uma nova linguagem. A criação é um ato que ultrapassa a língua? Qual seria, nesse caso, a relação entre o gelmanês e o sentimento da língua argentina?

JG: A criação encontra na língua o que a supera e se converte logo em língua. As linguagens crescem, se enriquecem constantemente desde o fundo dos séculos. Mais que do sentimento da fala da Argentina, creio que de sua música latente “todos os gelmans” comem.  

ASM: Uma das características que mais me encanta em sua poesia é a relação amorosa, quase erótica, entre a palavra e o tempo. No exergo de com/posiciones você escreveu: “o tempo e sua dor como paciência ardem no fundo da noite onde cada palavra é astro frio, sol que está por vir”. O nosso tempo é humano e escorre pelos séculos. Contudo, a poesia tem sido nossa única herança de beleza possível. O tempo é um personagem ou o autor da sua aventura poética?

JG: O tempo é o autor da aventura humana e, por conseguinte, da aventura poética. Ele as escreve o tempo todo.

ASM: Então nós somos instrumentos desse tempo-poeta?

JG: A questão é como cada um lê essa escritura.

LG: Houve um momento em que se ouvia intensamente uma infinidade de vozes na sua voz. Nela se percebia Roque Dalton, Rodolfo Walsh, Miguel Angel Bustos, Francisco Urondo e milhares de outros que sequer chegaram a ter voz. Como o som da memória fala dentro de sua obsessão criativa?

JG: A memória é o sustentáculo de toda obra de arte. O grande poeta mexicano José Emilio Pacheco disse que a poesia é a sombra da memória. Às vezes creio que é a sombra dessa sombra.

LG: E quem são esses amigos, essas sombras? Qual a importância da evocação dos seus nomes?

JG: Não sei se é importante, sei que para mim é necessário.

ASM: Uma polêmica que jamais se encerrará é aquela relativa aos inúmeros problemas que perpassam a aproximação da ética e da estética, que no nosso caso se reflete no conflito entre a poesia e a política. Assim, vejo várias referências em sua poesia a autores como Pound, poeta genial que não escondia sua opção fascista. A poesia serve à política ou só se preocupa consigo mesma, construindo aquele “lirismo puro” e despreocupado que Celso Emilio Ferreiro tanto criticou? É possível encontrar um meio-termo? Há um limite entre a vida, o pensar e o fazer?

JG: Me parece que muito se politizou e se sociologizou essa polêmica. Creio que o único tema da poesia é a poesia e que por isso pode falar de tudo: do que é, do que foi, do que poderia ter sido e não foi, daquilo que nos é próximo, daquilo que nos é mais distante, de política e até de amor. É uma verdade de Perogrullo que a grandeza ou a propriedade de uma poesia nada tem a ver com o tema em si de que trata: no mundo foram escritos milhões de poemas de amor que não chegam nem às sandálias dos que Safo escreveu. E milhões de poemas políticos que estão bem longe de alcançar a altura do que escreveram sobre o tema Dante, Shakespeare, Quevedo, Darío, Neruda, Vallejo, para citar exemplos prestigiosos. O que importa é a densidade da escritura e esta só se dá quando a circunstância exterior coincide com a circunstância do coração, como pensava Éluard. E é certo que Ezra Pound trabalhou para Mussolini, mas criou um poema sobre a usura que nenhum marxista-leninista-maoísta soube tirar de si até agora. Também é verdade que Céline se alinhou com os nazistas na França ocupada e perpetrou panfletos anti-semitas de uma virulência perversa, mas é autor desse romance extraordinário sobre a pobreza que se chama “Viagem ao fim da noite”. São muito obscuras as relações entre ideologia e verdadeira criação literária. Aí está o monárquico Balzac: seus personagens mais entranháveis são republicanos, já assinalou Marx. E assim, a ideologia, como o intimismo, só ocupa uma parte da subjetividade de um autor. Sua cosmovisão está constituída por uma e pelo outro, mas não se detém apenas aí, de jeito nenhum.

LG: Em outros tempos, convivia-se com a “terna revolução”, aquela doce utopia de uma América Latina melhor. Você mesmo chegou a declarar, segundo Víctor Casaus, que a revolução, somada ao amor e à poesia, são os três grandes – e únicos – temas da poesia. Como se dá essa revolução hoje? E, mais especificamente, qual é a missão do poeta, se é que ele tem alguma?

JG: Permita-me um esclarecimento: nunca disse que a poesia tem três únicos grandes temas, declarei que a revolução social, o amor, a própria poesia – e também a morte, a meninice, o outono – tecem minhas obsessões, as que me impelem a escrever. As obsessões, desde já, variam em cada um. A missão do poeta, se assim podemos chamá-la, é escrever poesia. Sua simples existência é um ato de resistência contra a desumanidade cada vez maior que estamos padecendo.

ASM: Aproveitando o gancho da pergunta de Leonardo e abandonando um pouco a seara da poesia, gostaríamos de saber como você analisa o contexto político atual, uma vez que o mundo está completamente subjugado por forças invisíveis. Antes tínhamos um inimigo a combater. Todos tinham: os militares, os revolucionários, os americanos, os russos, o bem e o mal das histórias em quadrinhos. Atualmente a dominação é muito mais espiritual do que corporal. Lembro-me de um trecho das Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar que parece ter sido escrito para o nosso momento histórico: “Duvido de que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravidão: no máximo mudar-lhe-ão o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas porque mais insidiosas: seja transformando os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas que se julgam livres quando são subjugadas, seja desenvolvendo neles, mediante a exclusão do repouso e dos prazeres humanos, um gosto tão absorvente pelo trabalho como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. A essa servidão do espírito ou da imaginação, prefiro ainda nossa escravidão de fato”. E a minha pergunta: Como resistir a um futuro que se entremostra indizivelmente opressor?

JG: Sinto na passagem de Yourcenar que você cita um certo pessimismo indignado e depreciativo ao qual ela, sem dúvida, tem direito. Não penso o mesmo. Quanto à invisibilidade do inimigo, teríamos que perguntar aos iraquianos ou aos palestinos se têm inimigos invisíveis. A servidão mais insidiosa é o costume e só a utopia pode resistir a ela. Oscar Wilde disse que um mapa-múndi que não incluísse o país da utopia não valeria a pena ser visto. Talvez a função de uma utopia consista fracassar para abrir caminho a outra melhor.

ASM: Lembro-me de ter lido – ainda no exergo de com/posiciones – uma passagem que me comoveu e fez pensar: “traduzir é inumano: nenhuma língua ou rosto se deixa traduzir. deve-se deixar essa beleza intacta e colocar outra para acompanhá-la: sua perdida unidade está adiante”. Veio a dúvida: muitas pessoas acreditam em bruxas, fadas, duendes e papai-noel. E você, acredita em tradução poética? E mais: é necessária a tradução entre línguas tão próximas como o português e o castelhano?

JG: Acredito e não acredito. Há boas traduções e há as muito ruins. São, sem dúvida, necessárias e não só entre línguas próximas como o português, o castelhano ou o galego. Mas também acredito que a tradução de poemas de outro idioma deve antes de tudo escutar sua música e dar-lhe a música do próprio. Traduzir poesia é mais difícil que escrevê-la. É traduzir música.

LG: Guimarães Rosa considera que há pouca distância entre o ato criativo e o ato tradutório. Como se o momento da criação fosse uma espécie de tradução para a língua que conhecemos de algo que não tem língua. Em todo caso, alguns de seus livros – como com/posiciones, citas y comentarios e dibaxu – perpassam as fronteiras da tradução. A tradução é um recurso ou uma obsessão para o poeta?

JG: Não será un recurso obsessivo? Tropeça com as diferenças ou matizes de visão do mundo de cada língua e isso é muito fecundo para quem traduz porque o leva a interrogar a fundo a sua própria palavra. Obsessivamente.

ASM: Ainda sobre a tradução, qual é a importância, para você, do lançamento de Isso no Brasil, esse país tão próximo da Argentina, mas que abriga poetas que desconhecem boa parte da tradição poética latino-americana hispânica, talvez por estarem mais preocupados em assimilar a poética central da Europa e dos Estados Unidos da América?

JG: Acontece que os poetas da América Latina de fala castelhana também conhecem mais a poesia européia e norte-americana que a brasileira, salvo contadas exceções. Mas isso ocorre entre os próprios poetas de fala castelhana. Em nossos países persiste uma espécie de isolamento pela qual na Argentina não se conhece bem o que passa com a poesia no Uruguai, ou no Chile, ou na Colômbia. E vice-versa. As razões deste fenômeno são complexas, históricas, sócio-econômicas e de políticas editoriais que, sobretudo, atrapalham a difusão de poesia. A tradução de “Isso” ao português e sua publicação no Brasil – não importa o fato de que seja eu o autor do livro – rompe essas barreiras, adquirindo então uma importância simbólica.

LG: O livro Isso é contemporâneo de Hacia el sur, Dibaxu e Com/posiciones. Por mais que sejam muito distintos, é possível encontrar correspondências e diálogos entre eles. Você poderia nos falar um pouco sobre o contexto em que Isso foi escrito?

JG: O contexto exterior foi o exílio. O interior, também.

ASM: Ao completar 60 anos, o poeta português Eugénio de Andrade disse estar sentido o peso das sombras. E você, sente esse peso da idade, essa escuridão que se aproxima? Ou é clar/idade?

JG: Sem sombras não há luz.   

LG: O tango e a milonga (canto e dança popular nos subúrbios de Buenos Aires) aparecem nos seus poemas de diversas maneiras, nem sempre apresentando caráter puramente musical. Às vezes com um certo clima de humor e de melancolia, você evoca passagens e cantores que ressoam ao fundo aquela arraigada influência do tango. Qual é a importância do tango – e da música em geral – para você?

JG: Borges disse certa vez que o tango é uma maneira de caminhar. Equivocava-se: quando jovem descobri que o tango é uma maneira de conversar. Corpo a corpo.

ASM: O que é ser um poeta latino-americano hoje? É possível apontar algumas vozes que se destacam na multidão? E, por fim, como se sente ao ver que boa parte dos jovens poetas latino-americanos – e aqui acho que posso incluir a mim e a Leonardo – foram influenciados por sua obra?

JG: Ser um poeta latino-americano hoje é como ser um poeta francês ou vietnamita hoje. Dizia o grande Bashô que não se deve imitar aos antigos, mas buscar o mesmo que eles buscaram e acho que todos estamos nessa. Claro que há vozes latino-americanas importantes e a lista de seus nomes não seria curta. A poesia latino-americana goza de boa saúde. Os que correm perigo com cada ditadura militar são os poetas.   


* Andityas Soares de Moura Costa Matos é escritor, tradutor e professor universitário na Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universitat de Barcelona. Publicou os livros de poemas Ofuscações (1997), Lentus in umbra (2001; edição espanhola com tradução de Francisco Álvarez Velasco, 2002), OS enCANTOS (2003), FOMEFORTE (2005), Algo indecifravelmente veloz (antologia poética editada em Portugal, 2007), Auroras consurgem (2010), Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas (2019) e Poemas para a noite dos mortos-vivos (2020), além do livro de contos Oroboro, lançado em Portugal (2010) e no Brasil (2012). O seu ensaio A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois García foi publicado em Portugal (2004) e na Galiza (2009). Traduziu A rosa dos claustros (2004) da galega Rosalía de Castro, Isso (em parceria com Leonardo Gonçalves, 2004), Com/posições (2007) e debaixo (2009), todos doargentino Juan Gelman, além da plaquete À boa teta e outros quatro licenciosos poemas da França renascentista (2005). Traduziu e publicou em revistas literárias brasileiras poemas do catalão Joan Brossa.

 ** Leonardo Gonçalves é poeta, performer, tradutor e ensaísta. Autor de Use o assento para flutuar (Editora Crisálida, 2018) e das infimidades (in vento, 2004). Participa da antologia É agora como nunca: Antologia incompleta da poesia brasileira contemporânea, organizada por Adriana Calcanhoto e publicada pela Companhia das Letras. Seus poemas estão também incluídos em antologias de poesia brasileira publicadas em outros países, como a Retendre la corde vocale: anthologie de la poésie brésilienne vivante, organizada e traduzida por Patrick Quillier. Traduziu recentemente a antologia La medusa dual – Antología bilingue de poesía mexicana (Cisnegro, 2018). Também traduziu autores como Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire, Léon Gontram Damas, Birago Diop, Juan Gelman, William Blake e outros trabalhos que podem ser encontrados em revistas literárias.

Isso, de Juan Gelman

Foto: Tomas Bravo/Reuters

Publicado em 2004, na coleção Poetas do Mundo, o livro Isso, de Juan Gelman, ganha agora sua primeira reimpressão. Na nova roupagem, alguns detalhes novos: como uma versão um pouco mais colorida da capa e alguns ajustes inevitáveis, devido ao fato de o poeta não estar mais entre nós.

Traduzido por Leo Gonçalves (yo!) e Andityas Soares de Moura Costa Matos, o livro celebrou, naquele momento, vários acontecimentos. A consolidação da coleção Poetas do Mundo, então com 4 livros publicados (Czeslaw Milosz, Francis Ponge, Tahar Ben Jelloun e o sérvio Miodrag Pávlovitch). A obra de Juan Gelman ganhava mais notoriedade naquele período: entre 2003 e 2005, ele foi galardoado com 9 prêmios diferentes, com destaque especial para o Reina Sofía de Poesía Iberoamericana. Ainda sobre Juan, ainda se respirava um grande feito: após décadas de buscas, ele conseguiu encontrar sua neta Macarena Gelman, uma das muitas vítimas das ditaduras militares latinoamericanas: após terem sido raptados, foram levados para o Uruguai onde ela foi tirada da mãe já no instante do nascimento.

No contexto da própria publicação, também tivemos, nós os tradutores, algumas alegrias: a consolidação de nossos entusiasmados esforços de tradução de seus poemas. Vale dizer que conversávamos, eu e Andityas, sobre o poeta, desde 1998, mesmo ano em que publiquei, num site literário, a tradução de “Sobre a poesia”, dele. O processo de feitura da tradução possibilitou ainda uma interessante convergência de nossos trabalhos criativos. Mudaria tanto a cara dos meus poemas posteriores, quanto a de Andityas. E, não me esquecerei nunca disso, ao final daquele ano, recebemos uma alegre mensagem do Juan (que também participou das traduções) saudando a nossa amizade nova.

Juan escreveria, nos anos seguintes, a orelha do livro Fomeforte, do Andityas, e a de meu Use o assento para flutuar. Nossas interlocuções permaneceram por algum tempo. Andityas pôde publicar ainda mais dois livros de Juan: Dibaxu/Debaixo e Com/posições. Minha tradução de Hacia el sur/Rumo ao sul permanece inédita ainda hoje.

A reimpressão de Isso é, hoje, para mim, uma excelente notícia. Muita gente pensa que é bom para um livro que ele seja uma obra difícil de encontrar. Nada mais equivocado. Eu e Andityas lamentávamos já em 2000 a ausência da poesia dele no cenário brasileiro. Acreditávamos que o Brasil ganharia muito se conhecesse os poemas deste personagem tão interessante, que mistura alegria e melancolia muitas vezes na mesmíssima palavra. Juan foi um grande experimentador em poesia, um apaixonado pelos seus mistérios e pela intimidade que nutria por essa que ele chamava de “senhora”, a poesia. Sua poesia, como desafio contra o terror de estado, hoje nos serviria (se estivéssemos preparados para isso) para entender os motivos de se evitar o retrocesso em que estamos.

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O lançamento do livro ocorrerá hoje, dia 14 de maio, às 17h, numa live que faremos. O evento é promovido pela editora da UnB e contará com a participação dos tradutores e mediação de Germana Henriques Pereira. O evento erá transmitido pelo canal de Youtube da Editora da UnB: https://www.youtube.com/watch?v=UTryFG9EuS4

https://www.youtube.com/watch?v=UTryFG9EuS4

Crônicas semanais

Já faz um tempo que alimento esse desejo de manter uma coluna semanal, hebdomadária, mensal ou até mesmo diária (o que seja!), um local onde eu possa publicar de tempos em tempos algum texto nesse gênero tão laboratorial e repleto de liberdades (às vezes até demais) que é a crônica.

Por isso, criei uma página no Medium. Funcionará a título de experiência, de experimento. Quem quiser dar uma sacada, pinta lá.

O endereço da crônica da semana é: https://medium.com/@leogonalves_65312/o-organismo-quer-prosperar-ba3ab3e309fd

Langston Hughes e o prazer

Langston Hughes, talvez conhecido com a principal voz do Harlem, é ainda um assunto pouco visitado no Brasil. Um artista repleto de ritmos de blues, de jazz, de negro spirituals, Langston viajou muito jovem pelo mundo afora, trabalhando como marinheiro em navios, copeiro, garçom e cozinheiro nas casas de jazz em Paris, porteiro de boate em Marselha. Uma vida divertida e, ao mesmo tempo, de luta, de lutas.

Seu lado mais atrativo e conhecido é, com certeza, o do poeta engajado. Poemas como “The Negro speaks of the rivers”, “I, too” e “Negro”, que soam adoravelmente como defesa da solidariedade entre pessoas negras, acabam ganhando mais espaço no momento em que estamos vivendo. Mas, como dizia o poeta marfinense Bernard Dadié: “o branco é uma cor de circunstância, o negro é a cor de todos os dias”. Não é preciso estar falando literalmente de um tema o tempo todo para se ser o que se é. Especialmente quando falamos de alguém que as 23 aos já tinha tanta coisa para contar.

Assim é que trago aqui dois dos muitos poemas dele que celebram, o prazer, a alegria e a noite. Um pouco do jazz. Um pouco do testemunho de uma era em que a luz elétrica começava a se popularizar, os carros iam se transformando numa realidade cotidiana. O tempo do prazer, enfim.

Dedico essas traduções ao meu amigo Guellwaar Adun, poeta baiano, das raras pessoas com quem posso conversar vez por outra sobre o gigantismo deste poeta nascido em Joplin, no Missouri, e que é uma das melhores vozes da poesia estadunidense no século XX.


*

PORTO DA CIDADE

Olá, marinheiro,
que vem do mar!
Olá, meu marujo,
Chega pra cá!

Chega mais, tem conhaque.
Também tem vinho, meu amigo.
Chega aqui que eu te amo.
Seja meu, vem comigo.

Luzes, marinheiro,
Calor, luz alva.
Terra firme, moço.
Noite branca, brava.

Se achegue, marujo,
Saia do mar.
Pra gente junto
Se inebriar.


*
PORT TOWN

Hello, sailor boy,
In from the sea!
Hello, sailor,
Come with me!

Come on drink cognac.
Rather have wine?
Come here, I love you.
Come and be mine.

Lights, sailor boy,
Warm, white lights.
Solid land, kid.
Wild, white nights.

Come on, sailor,
Out o’the sea.
Let’s go, sweetie!
Come with me.


AVENIDA LENOX: MEIA-NOITE

O ritmo da vida
É um ritmo de jazz,
Doçura.
Os deuses estão rindo de nós.

O coração partido do amor,
O enfarado coração da mágoa,–
Notas altas,
Notas baixas,
Zoada dos carros na rua,
Cicio do chiado da chuva.

Avenida Lenox,
Doçura.
Meia noite,
E os deuses estão rindo de nós.

*

LENOX AVENUE: MIDNIGHT

The rhythm of life
Is a jazz rhythm,
Honey.
The gods are laughing at us.

The broken heart of love,
The weary, weary heart of pain,—
Overtones,
Undertones,
To the rumble of street cars,
To the swish of rain.

Lenox Avenue,
Honey.
Midnight,
And the gods are laughing at us.

Um poema de Claude McKay

Você mal lê algumas linhas sobre o poeta jamaicano Claude McKay, e fica logo instigado pela sua imensidão. Nascido na Jamaica em 1889, passou para os Estados Unidos com a família em busca de oportunidades, mas o que encontrou ali foi nada mais que racismo, segregação, violência. Poderia ter ficado só nisso, mas acabou conhecendo o Harlem em pleno seu esplendor.

Claude McKay foi uma das figuras mais proeminentes da Harlem Renaissance, movimento literário e cultural que circulava em torno ao Jazz e o Blues num período em que o bairro se tornou um local de reagregação, felicidade e redescoberta para o povo negro tão assolado pelas leis estilo Jim Crow e toda a crueldade racial que os white people impuseram aos negros naquele país.

Mas Claude não ficava quieto. Cansado do racismo estadunidense, saiu pelo mundo afora, se tornou comunista e visitou a recém revolucionada Moscou, associando-se a grandes personagens daquele país. Passou depois para outros países da Europa e no final dos anos 1920 acabou se instalando por uns tempos em Paris.

Poeta e romancista, escreveu livros como Banjo, romance que retrata uma Marselha repleta de pessoas negras, e Gingertown, sobre sua experiência no Marrocos.

Claude McKay morreu em Chicago, em 1948, de um ataque do coração, deixando um legado de muita ação e de alegre inventividade.

IF WE MUST DIE

Se temos que morrer, que não seja como suínos
Num lugar inglório, caçados e estripados,
Enquanto latem ao redor e mostram seus caninos
Os cães raivosos sobre nossos nacos amaldiçoados.

Se temos que morrer, que seja de nobre morte,
Para não derramarmos nosso sangue precioso
Em vão; e até os monstros que cruzaram nossa sorte
Se vexem da mesma morte que lhes trouxe o gozo!

Oh, meus irmãos! Que tal conhecer o inimigo!
Mesmo em menor número, devolvamos-lhes a sova,
E, digamos, entre os mil, botar ao menos um caído!
Quem sabe, antes de nós, inaugurando a cova?

Com coragem encarar os assassinos, vão nos matar
Com covardia, morreremos, mas não sem revidar.

*
If we must die, let it not be like hogs
Hunted and penned in an inglorious spot,
While round us bark the mad and hungry dogs,
Making their mock at our accursèd lot.
If we must die, O let us nobly die,
So that our precious blood may not be shed
In vain; then even the monsters we defy
Shall be constrained to honor us though dead!
O kinsmen! we must meet the common foe!
Though far outnumbered let us show us brave,
And for their thousand blows deal one death-blow!
What though before us lies the open grave?
Like men we’ll face the murderous, cowardly pack,
Pressed to the wall, dying, but fighting back!

Um poema de César Vallejo

Um poema de César Vallejo (Peru, 1892-1938). Um clássico da língua castelhana, considero este poema uma das coisas mais monstruosas que já li, já que sonhar tanto tem algo de monstruoso.

MASSA

Ao final da batalha
e morto o combatente, veio até ele um homem
e lhe disse: “Não morra, te amo tanto!”
Mas o cadáver continuou morrendo.

Se aproximaram dois e repetiram:
“Não nos deixe! Força! Volte a viver!”
Mas o cadáver continuou morrendo.

Acudiram então vinte, cem, mil quinhentos mil,
clamando “Tanto amor e nada poder contra a morte!”
Mas o cadáver continuou morrendo.

Então todos os homens da terra
lhe rodearam; o cadáver os viu, triste, emocionado;
levantou-se lentamente,
abraçou o primeiro homem, pôs-se a andar…

(Tradução de Leo Gonçalves)

MASA

Al fin de la batalla,/y muerto el combatiente, vino hacia él un hombre/y le dijo: «¡No mueras, te amo tanto!»/Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.//Se le acercaron dos y repitiéronle:/«¡No nos dejes! ¡Valor! ¡Vuelve a la vida!»/Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.//Acudieron a él veinte, cien, mil, quinientos mil,/clamando «¡Tanto amor y no poder nada contra la muerte!»/Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.//Le rodearon millones de individuos,/con un ruego común: «¡Quédate hermano!»/Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.//Entonces todos los hombres de la tierra/le rodearon; les vio el cadáver triste, emocionado;/incorporóse lentamente,/abrazó al primer hombre; echóse a andar…



Pretices & Milongas: Lande Onawale em BH

*Leo Gonçalves

Uma tarde em Salvador, no ano de 2006, alguém me levava para conhecer um certo Du, poeta e conselheiro editorial da Pallas. Eu era novato no mundo das publicações e mergulhava, naquele momento, nas águas da cultura negra: língua iorubá, candomblé de angola, literaturas africanas, poesia caribenha, capoeira, filosofia antilhana, muitas dessas coisas que já me habitavam de algum modo, de repente se derramaram sobre mim para além do que eu poderia prever. E nós estávamos em Salvador!. Entramos num ônibus e fomos parar na Praça Campo Grande. Lá, nos esperava Lande Onawale. E eu nem sabia que ele era o autor dos versos ao final desta matéria, que abriram um dos números do MNU Jornal.

Reaja à violência racial:
“Beije sua preta
em praça pública”

Lande Onawale

Ori era o codinome adotado neste que foi, segundo ele, seu primeiro poema publicado.

O encontro que tivemos, em dezembro de 2006, marcou para sempre a cabeça deste poeta que vos fala. Ali, intercambiamos estratégias de linguagem, ritmos, teorias, nomes de autores, indicações de trabalhos. Falamos da poesia de Léopold Sédar Senghor e foi ali que mostrei, em primeiríssima mão, o meu “Canto para Matamba”. Mas não falemos mais de mim. A alegria deste janeiro é que ele estará em BH para apresentar seu novo livro Pretices & Milongas, que traz o poema-cartaz entre suas páginas.

Pretices & Milongas segue a linha irônico sacana do poeta baiano. De linguajar curto e direto, ele evoca as contradições de tudo o que circundam a posição da pessoa negra no Brasil patriarcal e racista. São poemas insubmissos, repletos de ginga, fio e desafio:

não importa o tempo de afiar a lâmina

o que conta

é que ela cumpra o seu papel

Lande Onawale

Sua insubmissão passa por evocar o modo de ser do negro como potência, o que fica visível nas ladainhas, que ele emula como forma poética. São cânticos de ataque tomados de oralidade e ritmo. Mas tudo é insubmisso com Lande. O amor. O rio. A língua estrangeira. A família. O corpo, enfim.

Sempre que pode, Lande canta para os orixás. Reconecta, assim, sua palavra afiada com a delicadeza transcendente dos deuses e suas ferramentas. Sim, porque visitar o Orum via poesia também é uma forma de insubmissão.

território é o que carrego em mim

e me transporta

para onde eu vim

Lande Onawale

O mais importante da beleza negra da poesia de Lande é que ela não é a manifestação de um grito engasgado. Lande escancara seu grito há pelo menos três décadas, sob a forma de poesia sucinta, viva, cantada. O grito pode ser, assim, cantiga de amor, dengo, ginga e mandinga, roda.

Na capoeira tem um golpe bastante conhecido, no qual o jogador ergue um dos pés para atingir o oponente com a sola inteira, a palma dos pés. A depender da força (a capoeira é dança e luta), o oponente pode voar e cair de costas. Esse golpe se chama Bênção.

A poesia de Lande Onawale é uma Bênção.

Prêmio Sesc de Literatura 2019







Acontece no dia 03 de dezembro, às 19h30, o lançamento do livro O doce e o amargo, de João Gabrial Paulsen, vencedor Prêmio Sesc de Literatura 2019 na categoria contos. Haverá, na ocasião, um bate-papo com este autor e com o vencedor da categoria romance, Felipe Holloway, com o livro O legado de nossa miséria. O bate-papo terá a mediação de Carlos Herculano Lopes. Leo Gonçalves (yo!) participa da noite com uma leitura dramática de trechos dos livros da noite.

O evento acontece no Teatro de Bolso do Sesc Palladium (av. Augusto de Lima, 420, Centro), às 19h30.

A entrada é gratuita, com retirada de ingressos 30 minutos antes do evento. O espaço é sujeito a lotação.

Classificação: livre
Duração: 45 minutos

Negritude em cena

Participo, nesta quinta-feira, 31 de outubro, da Roda de Conversa sobre literatura, dentro da programação do Negritude em Cena, que acontece no Palácio das Artes até dia 23 de novembro. Na ocasião, conversarei com Rogério Coelho, poeta e animador cultural, que promove slams e atividades educacionais junto à comunidade do Barreiro. A roda acontecerá no Café do Palácio das 19h às 20h30.