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Sobre Leo Gonçalves

Leo Gonçalves é poeta, tradutor, curioso de teatro, música, cinema, política, culinária, antropologia, antropofagia, etnopoesia e etnologia, vida, educação, artes plásticas etc.

autofagia


está chegando na praça a revista autofagia. para saber mais informações, consulte o blogue do bruno brum (www.saborgraxa.blogspot.com). é isso aí. a programação você vê aqui mesmo.

programação – lançamento da revista de autofagia

18/05 [quinta] – 19h

debate: “a produção contra-industrial”

com estrela leminski [PR], luciana tonelli [MG], marcelo sahea [RJ] e nicolas behr [DF]

centro de cultura de bh [r. da bahia, 1149 – centro]

19/05 [sexta] – 19h

lançamento da revista e dos livros “cupido: cuspido e cscarrado”, de estrela leminski; “leve”, de marcelo sahea e “umbigo”, de Nicolas Behr.

Livraria Quixote [R. Fernandes Tourinho, 274 – Savassi]

20/05 [sábado] – 20h

Sarautofágico – outras deixas de música e literatura

Música e poesia com participação de músicos e colaboradores da Revista de Autofagia

Pastel de Angu [R. Alphonsus Guimarães, 62 – Santa Efigênia]

negritude césaire, negritude senghor

minha negritude não é uma pedra, sua surdez gritada contra o clamor do dia
minha negritude não é uma nódoa de água morta no olho morto da terra
minha negritude não é nem uma torre nem uma catedral
ela mergulha na carne rubra do chão
ela mergulha na carne ardente do céu
ela perfura o golpe opaco de sua destra paciência

aimé césaire – do cahier d’un retour au pays natal

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minha negritude não é sono da raça ela é sol do espírito, minha negritude é ver & viver
minha negritude é enxada na mão, lança em punho
recado. não é questão de beber de comer o instante que passa
azar se me enterneço sobre as rosas do cabo verde!
minha tarefa é a de despertar o meu povo aos futuros flamejantes
minha alegria de criar imagens para nutri-lo, oh luminosidades ritmadas da Palavra!

léopold sedar senghor – élegie des alizés

notas sobre a negritude

pode procurar por aí. o termo negritude é encontrado por toda parte. uma banda de pagode, um portal de web, uma linha fashion, coluna reservada para assuntos afro no jornal. poucos sabem que a palavra se espalhou por todo o mundo por causa de um movimento literário ocorrido nos anos 30, sob a tutela de três grandes escritores: aimé césaire, leon gontram damas e léopold sédar senghor.tudo começou assim: um jovem estudante estigmatizado pela cor da pele publica no jornal l’étudiant noir um artigo defendendo a beleza e o valor de sua ‘negritude’. uma atitude repleta de mandinga e de gingado, pois estava usando um termo pejorativo a seu próprio favor. quando léopold sédar senghor leu o artigo, ficou empolgadíssimo, pois ninguém conhecia melhor do que ele a nobreza do seu povo. sintetizou: ‘negritude: o conjunto dos valores de civilização do povo africano.’ o termo transformou-se num conceito. e léopold foi quem levou a expressão às suas mais profundas conseqüências.

senghor nasceu em 1906 e publicou muita poesia, muita pesquisa em diversas áreas (lingüística, antropologia, sociologia, teoria literária) entre os anos 30 e os anos 50. em 1960 recebeu uma proposta dos líderes políticos do senegal: que se tornasse o presidente do país. e com uma vantagem: poderia governar enquanto quisesse. entre 1961 e 1980, quando já era um grande intelectual e poeta, senghor se tornou um dos maiores estadistas que o mundo já conheceu. e qual era o primeiro e grande conceito teórico que o norteou como político? quem responder marxismo, leninismo, maoísmo, castrismo, estará perdendo tempo: o conceito mestre da política senghoriana se chamava ‘negritude’.

a essas alturas, a ‘negritude’ já havia se transformado e crescido a proporções fenomenais. o termo, com o tempo, deixou de ser a afirmação de uma raça pra ser a exaltação de uma postura universalizante. o africano está em toda parte. o conceito se desdobrou depois em ‘mestiçagem’, ainda com o caráter inicial de afirmação dos valores de um povo estigmatizado pela história, mas com ênfase cada vez maior na questão cultural. e já começavam a surgir na própria áfrica movimentos e manifestações que contestavam a ‘négritude’. é o que fez por exemplo wole soyinka, autor nigeriano, hoje prêmio nobel de literatura: “um tigre não precisa declarar sua tigritude, ele salta sobre a sua presa”. o que em todo caso não é senão, um desdobramento da idéia inicial, agora interiorizada no movimento do corpo.

homenagens

no mês de março deste ano, publiquei na revista roda – arte e cultura do atlântico negro uma série de 5 poemas bastante representativos de léopold sédar senghor. é que em 2006 o poeta completaria 100 anos. e não esteve longe de completar, pois faleceu há apenas cinco anos. na revista, os editores ainda lembram de um festival mundial de arte negra que aconteceu em 1966, sob a chancela do então presidente do senegal (este festival terá sua segunda edição no ano que vem em dakar). a publicação foi portanto uma das primeiras manifestações brasileiras em comemoração ao centenário do poeta. mas não acaba por aí. a casa áfrica está organizando a ‘semana de cultura do senegal’ que acontece entre os dias 22 e 29 de maio de 2006. na ocasião haverá sarau, exposição, mesas redondas e outras coisitas mais em homenagem a esse grande camarada senegalês. fiquem atentos.

algumas informações sobre a poesia do célebre desconhecido

no brasil, pouquíssima gente sabe da existência de senghor. embora seja considerado uma das mais lúcidas cabeças do século, e a par disso, um dos maiores poetas da língua francesa, o brasileiro não teve acesso ao pensamento e à poética dele. uma única edição de seus poemas apareceu em 1969 pela extinta grifo edições em tradução de gastão jacinto gomes. uma vasta amostra da lírica senghoriana, com apenas dois defeitos: a edição não é bilíngüe, e além disso lá só se encontram poemas escritos até 1969: como não houve edição posterior, nada foi acrescentado e a edição definitiva da oeuvre poétique apareceria somente em 1989 com duas séries de ótimos poemas escritos nos anos 70 (como é o caso da “elegia para a rainha de sabá”) e outra de “traduções” de poemas tradicionais africanos (cantos banto, peul, bambara…).portanto, falta muito ainda para oferecermos ao público brasileiro um panorama claro de sua obra.

outro ponto curioso é que sua poesia se insere numa tradição pouco explorada no brasil. nem mesmo o nosso cruz e sousa pode ser comparado com ele. a poesia dele é descendente direta de walt whitman e de paul claudel: versos longuíssimos, reflexões místico-cristãs, tradições, profecias e vozeirões (ao lado de flores da mais pura delicadeza:

pérolas

pérolas brancas
lentas goteletas
goteletas de leite fresco,
luzinhas fugitivas ao longo dos fios do telégrafo,
ao longo dos longos dias monótonos e grises!

a qual paraíso? a qual paraíso?
luzinhas primeiras da minha infância
jamais reencontrada…

perles

perles blanches,
lentes gouttelettes,
gouttelettes de lait frais,
clarets fugitives le long des fils télégraphiques,
le long des longs jours montones et gris!

à quel paradis? à quel paradis?
clartés premières de mon enfance
jamais retrouvée…)

pouquíssimas vezes se preocupa com a rima, jamais com a métrica. uma poesia que se irmana com o trabalho de neruda e saint john perse, cujos versos se aproximam da prosa.

ao mesmo tempo, a sua poesia é rica em sonoridades, aliterações, e principalmente, jogos visuais, fanopéia. como traduzir um verso como “l’ouragan arrache tout autour de moi”? g. j. gomes traduz assim: “o furacão tudo arranca ao meu redor”. há exatidão na imagem, mas o som do verso de cinco acentos sucessivos se perdeu. façamos mais uma tentativa vã:

o furacão

o furacão arrasta tudo em torno de mim
e o furacão arrasta em mim folhas e palavras fúteis.
turbilhões de paixão silvam em silêncio
mas paz sobre o tornado seco, ao final do inverno!

tu, vento ardente vento puro, vento de primavera, queima toda flor todo pensamento
vão
quando recai a areia sobre as dunas do coração.
serva, suspende teu gesto de estátua e vós, crianças, vossos jogos e risadas de marfim.
tu, que ela consuma tua voz com teu corpo que ela seque o perfume de tua pele
a chama que ilumina minha noite, como uma coluna e como uma palma.
abrasa meus lábios de sangue, espírito, sopra sobre as cordas da minha kora
que se erga o meu cantar, puro como o ouro de galam.

l’ouragan

l’ouragan arrache tout autour de moi
et l’ouragan arrache en moi feuilles et paroles futiles
des tourbillons de passion sifflent en silence
mais paix sur la tornade sèche, sur la fuite de l’hivernage!

toi vent ardent vent pur, vent-de-belle-saison, brûle toute fleur toute pensée vaine
quand retombe le sable sur les dunes du coeur.
servante, suspends ton geste de statue et vous, enfants, vos jeux et vos rires d’ivoire.
toi, qu’elle consume ta voix avec ton corps, qu’elle sèche le parfum de ta chair
la flamme qui illumine ma nuit, comme une colonne et comme une palme.
embrase mes lèvres de sang, esprit, soufflé sur les cordes de ma kôra
que s’élève mon chant, aussi pur que l’or de galam.

Um de Léopold Sédar Senghor

Mulher negra

Mulher nua, mulher negra
Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!
Eu cresci a tua sombra; a doçura de tuas mãos vendava meus olhos.
E eis que no ventre do verão e do meio-dia, eu te descubro, terra prometida, do alto de
um alto colo calcinado
E tua beleza me acerta em pleno peito, como o relâmpago de uma águia.

Mulher nua, mulher obscura
Fruto maduro de carne firme, sombrios êxtases do vinho negro, boca que bota lírica a
minha boca.
Savana dos horizontes puros, savana que freme às carícias quentes do vento leste
Atabaque esculpido, atabaque tenso que rosna sob os dedos do vencedor
Tua voz grave de contralto é o cântico espiritual da amada.

Mulher nua, mulher obscura
Azeite que não crispa nenhum sopro, azeite plácido nos flancos do atleta, nos flancos
dos príncipes do mali
Gazela de laços celestes, as pérolas são estrelas sobre a noite de tua pele
Gozo de jogos espirituosos, os reflexos do ouro rubro sobre tua pele que rebrilha
À sombra de teus cabelos, se esclarece minha angústia aos sóis próximos de teus olhos.

Mulher nua, mulher negra
Eu canto tua beleza que passa, forma que fixo no eterno
Antes que o destino cioso te reduza a cinzas para nutrir as raízes da vida.

A tradução é minha e está publicada na revista roda nº1. O poema é de Léopold Sédar Senghor. Para ler o original, clique aqui. Este poema é considerado o grande hino do continente africano, onde a África é comparada com uma mulher extremamente sensual. Eu comparo dialeticamente este poema com um poema de Cruz e Sousa: “Afra”. Um dia eu ainda explico por quê.

A mulher na foto é a dançarina senegalesa Germaine Acogny, que foi amiga do poeta.

um poema de Antonio Cícero

Medusa

Cortei a cabeça da Medusa
por inveja. Quis eu mesmo o olhar
sem olhos que vê e se recusa
a ser visto e desse modo faz
das demais pessoas pedras: pedras
sim, preciosas, da mais pura água,
onde o olhar mergulha até a medula,
diáfanas, translúcidas, cegas.
Refleti muito, antes. Na verdade
estes meus olhos provêm de carne
de mulher, não do nada imortal
da divindade. Como encarar
com eles a Górgona? Mas mal
pensando assim, lembrei ser mortal
ela também: e seu pai é um deus
do mar mas eu sou filho de Zeus.
Mesmo assim não quis enfrentá-la olhos
nos olhos. Peguei emprestado o espelho
da minha irmã e adentrei o cômodo
da Medusa de soslaio, vendo
tudo por reflexos: o seu corpo
em terceiro plano, atrás de heróis
de pedra e dos meus olhos esconsos
em primeiríssimo. Eis o corte
da lâmina especular: do lado
de cá eu, sem corpo, a olhar; do outro
lado eu, olho olhado, olho enviesado
e rosto e corpo entre muitos corpos,
um dos quais o dela. A mesma lâmina
decapitou-a também: do lado
de cá guardo seu olhar e faina;
e lá jaz seu vulto desalmado.
Mas nada é tão simples. Do pescoço
cortado nasceu um cavalo de asas
(é que o deus do mar a engravidara)
e mergulhou no horizonte em fogo
crepuscular. Dizem que, no monte
Hélicon, seu coice abriu uma fonte.
A ser não sendo, de madrugada
levanto com sede dessa água.

é um poema de antônio cícero, que esteve em bh na última terça-feira para as terças poéticas. achei no blogue da letícia