Leo Gonçalves é poeta, tradutor, curioso de teatro, música, cinema, política, culinária, antropologia, antropofagia, etnopoesia e etnologia, vida, educação, artes plásticas etc.
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Para quem estiver em SP na próxima quarta-feira, dia 19 de outubro das 19h30 às 22h30, a boa é o lançamento do livro Mastodontes na sala de espera de Bruno Brum, que acontece no Centro Cultura O B_arco (Rua dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 426 – Pinheiros).
Título: MASTODONTES NA SALA DE ESPERA
Autor: Bruno Brum
Tema: poesia brasileira contemporânea
Formato: 14 x 21 cm | 96 p. | BROCHURA
ISBN 978-85-87961-69-3 | ano: 2011 Preço: R$ 24, [já disponível]
Livro vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2010, na categoria Poesia
Comentário de Luiz Roberto Guedes:
Que poesia é possível em nosso tempo pós-utópico, virtualizado, em que a própria realidade é “desrealizada”, como disse Paul Virilio? Este desafiador mastodonte fabricado por Bruno Brum reafirma a sobrevivência dessa arte que muitos creem extinta, a poesia. Com sua dicção personalíssima – em que se poderia distinguir, talvez, uma afinidade com o demiurgo anarcopoético Sebastião Nunes –, Brum destila poemas com um humor seco, ácido, esboçando mapas provisórios de um mundo alucinado, onde “um homem lê um livro em chamas”. Consciente de que o poeta é um criador de “empresas imaginárias”, se lança com arrojo à humana empresa da poesia. Bravo Brum.
Título: MASTODONTES NA SALA DE ESPERA
Autor: Bruno Brum
Tema: poesia brasileira contemporânea
Formato: 14 x 21 cm | 96 p. | BROCHURA
ISBN 978-85-87961-69-3 | ano: 2011Preço: R$ 24, [já disponível]
Livro vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2010, na categoria Poesia
as quatro paredes são brancas
o teto é branco, o assoalho branco
os móveis brancos, brancos objetos
livros brancos (e as páginas brancas dos livros)
esta folha é branca
branca a tinta com que escrevo nela
estas palavras brancas
quando estou longe de você
e não há ruídos
todos os motores adormecidos
e o silêncio é branco
quando estou longe de você
e o oposto do branco é o branco
(João Batista Jorge)
***
Semana passada tive a honra de estar em Belo Horizonte participando do recital Prova de corte, da Thais Guimarães. O evento fazia parte das Terças Poéticas, que acontece toda semana no Palácio das Artes. O meu papel foi o de ler alguns poemas do homenageado João Batista Jorge (que, dos anos 70 para os 80 foi companheiro da Thais). Junto conosco, Ricardo Aleixo fazia a direção e lançava sons com seu famoso “laptop zoador”. O momento foi um dos mais emocionantes desse 2011 (e olha que tenho tido experiências incríveis em 2011).
João Batista Jorge foi poeta da geração mimeógrafo, circulando pelas ruas de Belo Horizonte em meados dos anos 70. Deixou publicados 3 livros: Tíbias e flautas, Flagrante joia e Asa da águia/água da ásia. Foi também um dos organizadores do jornal alternativo Paca tatu, cotia não. Jorge foi assassinado na sua cidade natal (São Gotardo) em 1983 e os motivos de sua morte, assim como seu assassino, continuam ainda desconhecidos. Suspeita-se de (des)razões políticas. O que ele escreveu além do publicado? Não se sabe: a família preferiu deixar que a morte silenciasse também as palavras do poeta.
Quem estiver em BH no próximo sábado não pode perder o lançamento dos livros Mastodontes na sala de espera, de Bruno Brum e Sambaqui, de Edson Cruz, ambos publicados pela editora Crisálida. O evento acontece na livraria Scriptum (rua Fernandes Tourinho, 99 – Savassi) a partir das 11h.
Eu sou o irmão mais preto.
Quando chegam as visitas,
Me mandam comer na cozinha.
Mas eu rio
E como bem,
E vou ficando mais forte.
Amanhã,
Quando chegarem as visitas
Me sentarei à mesa.
Ninguém ousará,
então,
me dizer,
“Vá comer na cozinha”.
Além do mais,
Eles verão quão bonito eu sou
E se envergonharão –
Eu, também, sou a América.
***
Negro
Sou Negro:
Negro como a noite é negra,
Negro como as profundezas da minha África.
Fui escravo:
Cesar me disse para manter os degraus da sua porta limpos.
Eu engraxei as botas de Washington.
Fui operário:
Sob minhas mãos ergueram-se as pirâmides.
Eu fiz a argamassa do Woolworth Building.
Fui cantor:
Durante todo o caminho da África até a Georgia
Carreguei minhas canções de dor.
Criei o ragtime.
Fui vítima:
Os belgas cortaram minhas mãos no Congo
Estão me linchando agora no Mississipi.
Sou Negro
Negro como a noite é negra
Negro como as profundezas da minha África.
(Traduções de Leo Gonçalves)
***
I, Too
I, too, sing America.//I am the darker brother./They send me to eat in the kitchen/When company comes,/But I laugh,/And eat well,/And grow strong.//Tomorrow,/I’ll be at the table/When company comes./Nobody’ll dare/Say to me,/”Eat in the kitchen,”/Then.//Besides,/They’ll see how beautiful I am/And be ashamed-//I, too, am America.
Negro
I am a Negro:/Black as the night is black,/Black like the depths of my Africa.//I’ve been a slave:/Caesar told me to keep his door-steps clean./I brushed the boots of Washington.//I’ve been a worker:/Under my hand the pyramids arose./I made mortar for the Woolworth Building.//I’ve been a singer:/All the way from Africa to Georgia/I carried my sorrow songs./I made ragtime.//I’ve been a victim:/The Belgians cut off my hands in the Congo./They lynch me now in Mississipi.//I am a Negro:/Black as the night is black,/Black like the depths of my Africa.
Fonte:
Hughes, Langston. Vintage. New York: Vintage Books, 2004.
“Um pedaço de pau na água não vira jacaré”.
Ditado africano
Germaine Acogny está reflexiva e dialogante neste espetáculo, que esteve em cartaz por dois dias no Sesc Santos como parte da Bienal Sesc de Dança. O que está em jogo em meio aos seus movimentos, parece ser o lugar da África no mundo de hoje. Um mundo globalizado no qual a vida ávida sonora se confunde com os conceitos que nos construíram. A ideia-clichê de Nicolas Sarkozy de que “o drama da África é que o homem africano não entrou suficentemente na história”, uma falsa verdade, aparece aqui para discutir exatamente isso: o lugar da identidade negra num mundo que parece querer colocar de volta as coisas nos seus supostos lugares.
Germaine diz ser senegalesa e francesa. A plateia ri. Por que? Como aceitar binacionalidades? Como compreender o sentido da diáspora negra hoje? E principalmente (e esse parece ser o sentido da École des sables, sua escola em Dakar), como recriar o olhar identitário ultrapassando os discursos mais comuns e produzindo ali uma beleza que vá para além do mero exotismo?
Colocando em crise as possíveis leituras da identidade, ao final do espetáculo, que assistimos no dia 07 de setembro, Germaine recorda ao público que aquele era o dia da Fête de l’indépendance brasileira. E para celebrar, convida todos a dançarem também. Curioso é que o significado daquela independência parecia estar vazio na plateia. Por que? Quem for brasileiro e souber, que me responda.
(Clique na imagem para me ouvir falar o poema WTC Babel S. A.)
Já não somos mais os mesmos desde o dia 11 de setembro de 2001. Nossa percepção estética, nossa visão de mundo, as bases da negatividade nietzschiana que nos habitavam ganharam novos aspectos desde o atentado ao World Trade Center.
Muita gente se levantou contra este fato, tocados pelos milhares de mortos. No entanto, não foram os mortos que alteraram nosso olhar. Mesmo porque não os vimos. O atentado do WTC foi o espetáculo trágico mais higiênico da história: nenhuma gota de sangue foi exposta. Apenas poeira. Apenas escombros. Frames. E a inauguração da estética do looping, adotada em todos os noticiários sensacionalistas desde então.
Godard dizia que o cinema jamais seria o mesmo depois de Auschwitz. Poderíamos repetir a fórmula e dizer: nossos olhos já não são mais os mesmos depois do 11 de setembro.
Cresci sob o clima da guerra fria. Ao longo da infância e da adolescência, assisti e por vezes participei de maniqueísmos falseadores. Super Homem contra Lex Lutor. He-man contra o Esqueleto. O bem contra o mal. Não era possível gostar de Beatles se você gostasse de Rolling Stones. Led Zeppelin ou Deep Purple. USA ou URSS.
O mundo mudou. A queda do muro de Berlim, o fim da União Soviética, as mudanças nas aparências políticas soavam amargas. Talvez ninguém mais se lembre, mas até o dia 10 de setembro de 2001, o mundo ainda olhava amedrontado para o fantasma do socialismo e a bomba atômica escondida por detrás dele (que poderia ser lançada por ele ou por seu arqui-inimigo, o fantasma do capitalismo). Ao amanhecer do dia seguinte, começava a tentativa de implantação de um novo maniqueísmo, um maniqueísmo que pretendia se tornar absoluto. O mais fácil de todos os maniqueísmos, posto que o inimigo era milenar: o islamismo. Saímos da guerra fria para a guerra morna, a guerra descafeinada.
Mas o que importa, a alteração ocorrida nas nossas relações humanas não dizem respeito ao acontecimento em si. O que há é que o atentado coroou um aprendizado que vínhamos desenvolvendo ao longo das últimas décadas do fin-de-siècle: a reconciliação dos aparentes opostos. Casamentos de céu e inferno. Novos reencontros de raças. Novas mestiçagens poéticas e inusitadas. Nomadismos transbordados da filosofia.
Já não nos é permitido olhar para as coisas de maneira generalizada, como tão bem aprendemos com as fórmulas da mídia. A comunidade-mundo se tornou pequena. Não apenas a internet nos deu a impressão de proximidade: há também uma melhoria e acessibilidade aos aeroportos. O fenômeno não é apenas brasileiro.
Desde o acontecimento, aprendemos que é urgente e necessário saber olhar através. Aprendemos que o sistema político que nos governa hoje já não é o capitalismo, mas o capital. Que o comunismo ficou insosso e, depois da revelação do que ocorria nos bastidores de suas ditaduras, nos parece hoje tão cruel quanto o nazismo. Que o mundo de aparências que os políticos produzem para os nossos olhos já não basta. Que a normalpatia já não nos salva.
Mas mais importante do que tudo isso: há dez anos que descobrimos que as palavras realmente importam. O WTC pode ter sido fruto de uma algaravia, resultado da incomunicabilidade humana. O WTC pode ter sido uma faceta da Babel que o Sonho Americano sucitava. Mas hoje, mais do que nunca, e mesmo para honrar os mortos do atentado (que não foram em menor quantidade que os negros linchados no Mississipi, que os mortos em Hiroshima e Nagazaki, que os índios extirpados do continente americano, que os antigos sábios da oceania, os opositores às ditaduras militares da América Latina nos anos 60, 70 e 80), devemos aprender o peso das palavras. Porque mais do que nunca, poetas, elas significam. Elas importam.