Arquivo mensais:outubro 2016

Revista Polichinello #17 ─ Por uma vida não-fascista

Revista Polichinello nº 17 - Por uma vida não-fascista [http://revistapolichinello.wixsite.com/poli17]

Esta seria uma edição impressa, mas a direção foi outra, por incompatibilidade com dias tão difíceis. O cenário por aqui, de uma esfera a outra, declina por vias mais e mais sinistras. Efeito do espectro que assombra o país, vertiginoso retrocesso. Com leis e medidas em favor dos interesses mais reacionários, tudo devidamente agenciado por uma política que persegue, sem dissimular, conquistas sociais, e opera com a lógica de subtração e sequestro, com violação e exclusão, que esvaziam possibilidades, como diz o Esposito: «desonerando a vida».

Verdadeiro trabalho de resistência é a permanência desta revista Polichinello, comandada por Nilson de Oliveira. De grande importância na cena literária brasileira, tão carente de publicações do gênero, ela vem sendo mantida pela força da vontade de seus editores. Usualmente, é uma publicação impressa. Sintomático que justo no momento do crescimento de uma mentalidade fascista e conservadora, que obsessivamente se coloca contra iniciativas culturais como esta, o dinheiro necessário para sua realização tenha faltado. Nesse sentido, a coragem de manter de pé seu propósito inicial, ainda que garantindo apenas sua publicação virtual que, ainda assim, é de grande urgência.

Por uma vida não-fascista.
Neste número, se pode ler textos de René Char (com tradução de Contador Borges), Beatriz Preciado (tradução minha), Edmond Jabés (tradução de Eclair Antônio A. Filho). Poemas de Leo Gonçalves, Leonardo Gandolfi, Eduardo Sterzi, Marília Garcia. Ensaios de Élida Lima, Michel Foucault, Carolina Villada Castro. E tantas coisas mais!

Por uma vida não-fascista. Sim, é disso que precisamos. Não deixar que o monstro domine os cérebros vazios.

Quem quiser ler, é lá no: http://revistapolichinello.wixsite.com/poli17

Um poema de Ana Pérez Cañamares

CAPITALISMO

O homem seboso e engravatado aparece em nossa cama todas as noites
depois de foder com o universo vem e nos sussurra cantigas de ninar
sua obsessão por nós não descansa nunca
em nossos sonhos nos persegue
fantasiado de cachorro, de vendedor, de padre
de espiga de trigo, de revólver no bolso
fantasiado de morte, fantasiado de vida

sei que ele gosta de você com olheiras
tem tesão em me ver cansada
gosta de mim magrinha embora me tente com guloseimas
e de você elegante embora machuque seus ossos

me impele a me embebedar mas não por diversão
e sim para esquecer
que minhas horas de ócio acabam sempre no negativo

quando estamos a ponto de adoecer por esgotamento
nos premia com umas férias
e nos estende as passagens como o caçador
lança um osso ao galgo que enforcará no dia seguinte

me instiga a desejar coisas que não necessito
embora ele nunca tenha para mim um presente

diz que meus inimigos são aqueles
que querem o mesmo que eu
porque não há o suficiente
nunca tem o suficiente para todos

e nos cobra pelo que não é de ninguém
pela água da chuva
pelo sol e pela areia
pelas clareiras nos bosques
e pelos mananciais

sequestra meu amor dez horas por dia
e o devolve cada dia mais velho

com seus braços lascivos abraça minha filha
e eu grito foge!
─ vi os primeiros sinais de rendição
em seu rosto inocente ─
mas não sei mostrar a ela a porta de saída

e mais do que com a minha felicidade, ele se preocupa
em flagrar em meu rosto um rastro de consolo
que me permita chegar até a próxima trégua

todo dia me bota um café na boca
para aguentar, e logo um comprimido
para acalmar meus nervos para que eu descanse e durma
enquanto ele continua fazendo o que bem quer

(às vezes se deita em cima de mim e eu com os olhos abertos
olho para o teto, e se ele nota me diz
que já é hora de pintá-lo)

envenena a comida com o que me alimenta
me proíbe de fumar enquanto aumenta minha ansiedade
e me tira as chupetas que poderiam me consolar

provoca meu pranto
e depois me obriga a maquiar os sinais da tristeza

se fico rebelde, ri paternalista
conta que ele também passou por essa época
e minha rebeldia ele rebaixa a moda
que fica de camiseta aos sábados pela manhã
quando sai para comprar jornal e croissants

me dá detalhes de cada assassinato, de todas as guerras
dos estupros e dos golpes de estado

mas tanta informação me deixa surda e já não ouço
os barulhos nem os choros em voz baixa
os sinais do desmoronamento

e ele cala que cada morto, cada ferido
as mulheres estupradas e os que sofrem torturas
todos receberam sua visita antes de se transformar no que são agora

se safa das culpas com promessas
mas eu sei que uma palavra dele
bastará para nos condenar

e se desaparece é para espiar a salvo e oculto
nos bares, nos hotéis, nos banheiros, nas celas

tenho que lhe agradecer porque
você é uma mulher moderna!, grita entusiasmado
dessas que falam inglês, trabalham em casa e no escritório
vão pra academia e aparentam menos idade do que diz o RG
você tem noções de pedagogia embora só olhe seus filhos

e além disso foi abençoada com uma vocação
para poder se sentir melhor do que as outras
(e eu calo que eu não quero ser artista
se isso me fizer diferente
porque já me sinto sozinha o bastante
e não quero competir em mais carreiras)

se mostro fraqueza, fale baixo, todos vão querer se aproveitar
(como se ele deixasse algo para os outros)
melhor ainda se demonstrar arrogância
(com todos menos com ele)

de tudo me fala mas não de quem recolherá os restos do naufrágio
nem em que lugar nos reuniremos, os náufragos, para nos organizarmos
para fazer um fogo, dividir a comida e espantar o frio

embora antes seja preciso reunir forças
para não abandonar a todos nos seus cantos

Um dia, não sei quando, vou lhe cobrar
seus cadáveres, as humilhações
o sequestro da inocência
o espólio dos sonhos

eu vou cobrar, não sei quando

e a primeira punhalada que vou lhe dar
será pelas carícias que não nos demos
pelas trepadas que não demos
você e eu
cada vez que aparece em nossa cama
e nos diz que amanhã, amanhã, amanhã
amanhã o despertador soará às 6h30

e vinte minutos mais de sono
nos farão melhores soldados a seu serviço

Te juro, meu amor. Uma punhalada
por cada trepada que nos roubou
e quanto ao resto, pelos presos, pelos indigentes
pelos que deixam para trás casa e família
pela dor que não merecemos sofrer nem ver
pelos campos arrasados
pelos bichos maltratados
pelas crianças que trabalham
pelos olhos que se fecham pelo cansaço e pela morte
pelo tempo que não voltará
pela vida que nos roubaram
pela vida
meu amor
pela vida

(Tradução de Leo Gonçalves)
Copyright © 2013. Ana Pérez Cañamares
Todos los derechos reservados. All rights reserved

Leia o original em: https://poesiaindignada.com/2013/06/30/capitalismo/

Nascida em 1968, publicou os livros La almbrada de mi boca e Alfabeto de cicatrizes, assim como o livro de relatos En días idénticos a nubes. Desde 2006, administra el blog El alma disponible.

Circuito das Letras BH

Circuito das Letras: de 5 a 9 de outubro

Começa hoje e vai até domingo o Circuito das Letras, em Belo Horizonte. Serão diversas mesas de debates, atividades de formação, saraus, piqueniques literários, performances, grupos de trabalho. Uma programação intensa com a participação de 130 autores convidados.

Minha participação será no sábado, dia 08/10 às 14h30, no Teatro da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. O debate se intitula “Raízes Francesas: o papel das bienais e o renascimento do filósofo-artista”. Estarei conversando com o poeta francês Bruno Cany, com mediação de Lucas Guimaraens.

Para mais informações, consulte o site do evento: http://circuitoculturalliberdade.com.br

Retendre la corde vocale: Anthologie de la poésie brésilienne vivante

Retendre la corde vocale: anthologie de la poésie brésilienne vivante | Revue Bacchanales nº 55

Em outubro, a revista Bacchanales, da Maison de la poésie Rhône-Alpes, publica uma antologia de poesia brasileira viva, com tradução, organização e apresentação de Patrick Quillier. São ao todo 29 poetas brasileiros, montando um recorte de várias gerações que vão de Ferreira Gullar, nascido em 1930 a Reuben da Rocha, nascido em 1984.

Todos os detalhes dessa antologia remetem a uma atividade de artesão. Patrick Quillier, poeta atento às mínimas sonoridades, realizou as traduções com um habilidade incrível. Sempre atento aos mínimos sons, trocadilhos, jogos, rimas. Fez a escolha com um respeito à grande diversidade cultural do Brasil, respeito que nem mesmo os antologistas daqui costumam ter. E, por fim, o “Prélude” mostra um pouco do que realmente se vive hoje em poesia por aqui, comenta de alguns que se foram, mas que permanecem. Leminski, Adão Ventura, Orides Fontela, Roberto Piva, Torquato Neto, Hilda Hilst. Lembra autores que ele, por alguma razão ou outra, não conseguiu manter na seleção: Adélia Prado, Antonio Cícero, Carlito Azevedo, Edson Cruz, Paulo Henriques Britto, Claudia Roquette-Pinto, Marcelo Sahea, entre tantos outros.

“Retendre la corde vocale” porque, segundo Patrick, “Todos, cada um [dos 29 poetas] a seu modo, retesaram a corda vocal para afiná-la à singularidade de seu timbre respectivo.” São eles: Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Zuca Sardan, Sebastião Nunes, Regina Célia Colônia, Elizabeth Veiga, Lu Menezes, Eliane Potiguara, Cuti, Adriano Espínola, Salgado Maranhã, Régis Bonvicino, Josely Vianna Baptista, Ricardo Aleixo, Ronald Augusto, Edimilson de Almeida Pereira, Cida Pedrosa, Marcos Siscar, Renato Negrão, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Dirceu Villa, Leo Gonçalves, Ricardo Domeneck, Marília Garcia, Fabiana Faleiros, Érica Zíngano, Juliana Krapp, Reuben da Rocha.

Para degustação, deixo aqui a tradução do poema que dá título à publicação. E espero encontrar tempo em breve para colocar aqui uma tradução do “Prélude”.

*

POÉTIQUE
(Leo Gonçalves)

retendre la corde vocale
sur un axe de 440 hertz

systématiquement
(d)étonner

et noter à la pointe du couteau
le v de la flèche-verbe

oindre la flèche
d’herbes sauvages

herbe qui soigne
herbe qui tue

après qu’on a dé-
chanté : lancer en l’air

percer les oreilles
œil pour œil temps pour tambour