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waly sailormoon e a teatralização: trechos de um texto de antônio cícero

uma das publicações mais bonitas de poesia que tive acesso nos últimos tempos é o livro “me segura qu’eu vou dar um troço” de waly sailormoon, publicado em 2003 pela editora aeroplano em parceria com a biblioteca nacional, organizado por heloísa buarque de hollanda e luciano figueiredo. trata-se trabalho do primeiro do baiano que, em 1972 ficou preso no carandiru por causa do porte de uma “mera bagana de fumo”.

“meu primeiro texto teve de brotar numa situação de extrema dificuldade. na época da ditadura, o mero porte de uma bagana de fumo dava cana. e eu acabei no carandiru, em são paulo por uma bobeira, e lá dentro eu escrevi “apontamentos no pav 2”. não me senti vitimizado de ver o sol nascer quadrado. para mim foi uma liberação da escritura”.

nesta edição, há um belíssimo prefácio de antônio cícero, verdadeiro testemunho de admiração e amizade por um dos poetas mais importantes que apareceram na cena brasileira dos últimos 50 anos. fiz uma pequena edição de um trecho que me toca, especialmente agora, neste instante da vida. espero que o cícero não se importe. segue o texto:

a falange de máscaras de waly salomão

(…)

em 2002, waly resume a relação entre a prisão e a escrita, dizendo que “… ver o sol nascer quadrado, eu repito esta metáfora gasta, representou para mim a liberação do escrever que eu já tentava desde a infância.

se desde a infância ele já buscava a liberação que a escritura de “me segura”viria a lhe proporcionar, então, de algum modo, a vida anterior a essa escritura devia ser por ele percebida como uma prisão ou um confinamento: confinamento do qual o carandiru tornou-se o emblema. de que se trata? são muitas as possíveis prisões. em texto sobre “me segura”, intitulado “ao leitor, sobre o livro”, lê-se:

sob o signo de PROTEU vencerás.
por cima do cotidiano estéril
de horrível fixidez
(waly salomão)

de que modo a poesia proporciona a liberação a quem foi confinado? o desprezo pela fixidez do cotidiano, a rejeição dos princípios lógico-formais da identidade e da contradição, a vontade de abolir as fronteiras entre o eu e os outros e o fascínio pela metamorfose são características que trazem à mente a noção de carnavalização. mas, não creio que o termo carnavalização seja adequado para caracterizar a obra de waly. na verdade, aquilo que merecia o epíteto de carnavalizante era a pessoa ou a irradiante presença de waly, inclusive na sua atividade de conferencista e nas suas aparições na televisão, mas não a sua poesia. em relação a esta, prefiro empregar o conceito que ele mesmo elegeu: o de teatralização.

“é que eu transformava aquele episódio, teatralizava logo aquele episódio, imediatamente, na própria cela, antes de sair. eu botava os personagens e me incluía, como marujeiro da lua. eu botava como personagens essas diferentes pessoas e suas diferentes posições no teatro: tinha uma agente loira babalorixá de umbanda, tinha um investigador humanista e o investigador duro. o que quer dizer tudo isto? você transforma o horror, você tem que transformar. e isso é vontade de quê? de expressão, de que é isso? não é a de se mostrar como vítima”.

a vítima é o objeto nas mãos do outro. quem aceita a condição de vítima no presente, quem diz: “sou vítima” está, ipso facto, a tomar como consumada a condição de não ser livre. é contra essa atitude de implícita renúncia à liberdade que waly teatraliza a sua situação. ao fazê-lo, ele a transforma em mera matéria prima para o verdadeiro drama, que é o que está a escrever. a vítima passa a ser apenas o papel de vítima, a máscara de vítima. por trás da máscara há o escritor. mas isso não é tudo, pois o que é o escritor senão o papel de escritor?

waly sailormoon, o marujeiro da lua, diz que: “chego nos lugares e percebo as pessoas como personagens de um drama louco”. mas não se deve cair no equívoco de supor que a teatralização consista simplesmente em opor ao mundo real o imaginário. não é o delírio ou a alucinação que waly aqui defende. não se trata de opor o teatro ao não-teatro. o que ele julga é, antes, que tudo é teatro. ao afirmar que percebe as pessoas como personagens de um drama louco, waly não quer dizer apenas que as interpreta como tais, mas que se dá conta de que são personagens de tal drama. retomando a idéia do theatrum mundi, originada na antigüidade.

mas, se tudo já é teatro, se até o fato é teatro, qual é o sentido da teatralização? por que teatralizar o que já é teatro? é que o fato social é o teatro que desconhece o seu caráter teatral. o processo que leva a esse desconhecimento ocorre, por assim dizer, “naturalmente”: como a peça que se representa no teatro do mundo parece ser sempre a mesma, os atores ignoram que se trate de uma peça, isto é, de obra humana e artificial; ignoram, em outras palavras, que seja uma dentre muitas peças reais ou possíveis, e a tomam por natureza. longe de reconhecer espontaneamente o teatro do mundo como teatro, o indivíduo, no interior da sua cultura, aceita os papéis sociais como dados ou fatos desde sempre já prontos: o que equivale, como foi dito, a tomá-los por natureza, não por teatro.

a atitude de waly é diametralmente oposta a essa. ele nunca esquece que o “fato” social é o teatro que se enrijeceu ou esclerosou a ponto de olvidar a sua natureza teatral: o teatro que se pretende superior ao teatro, que se pretende mais real do que o teatro. na medida em que tem êxito em sua impostura, a “horrível fixidez” daquilo que podemos chamar de “teatro do fato” não somente expulsa ou degrada ao segundo plano as virtualidades ainda não realizadas do presente, que o superam em riqueza, mas, além disso, congela o movimento criativo que, em princípio, exige a abertura permanente a novas possibilidades interpretativas. a teatralização walyniana funciona, portanto, como a água de mnemosune, o antídoto contra a água da fonte de lete, do esquecimento naturalizante e confinante.

(do prefácio de antônio cícero ao livro “me segura qu’eu vou dar um troço”, de waly salomão, publicado em 2003 pela editora aeroplano)

a revista viva voz e "a lata" de patrícia mc quade

saiu recentemente a revista viva voz, resultado da oficina de escrita da professora elisa amorim. das aulas ministradas pela professora, saíram excelentes textos, dentre os quais destaco este verdadeiro retrato da vida contemporânea e do verão que entra.

a lata
por patrícia mc quade

sentiam-se comprimidos, envergonhados, condensados, apertados, oprimidos, sintetizados, humlhados, amassados.

os rostos derrotados eram mais que cansados. e pagavam por isso. todo o peso do mundo exercia pressão por todos os lados. perfeita imitação de uma lata de sardinha. precisavam pagar por isso. humanos desafiando a física. como dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço? e pagavam caro por isso.

os cidadãos dentro da lata sobre rodas suavam. termômetros acusavam: o dia mais quente o verão. poucos sentados. a maioria de pé. todos tremendo juntamente com o motor que roncava. aquela lata cantava de maneira insuportável. por que deus criou nossos ouvidos? e as pessoas pagavam por isso.

gente encostada nas janelas abertas, aproveitando o alívio do vento morno. os outros empilhados, de braços erguidos, sustentando no equilíbrio os corpos uns dos outros. a total coletividade individual, com dificuldade de respirar, agonizava e pagava por aquele ar que cheirava a dia de trabalho e de competitividade por emprego, por dinheiro, por status, por oportunidade e, agora, por espaço. e pagavam pelo não-merecido.

fora da lata começava a chuva mansa que ao toque com o asfalto incandescente produzia um mormaço ainda mais insuportável que o calor do sol. o mormaço queria também o espaço da lata, que já possuía o calor de seu motor e o suor dos corpos, e entrou sem pagar por isso, transformando a lata em uma panela de pressão. e o cozido humana pagava sempre por isso.

a velocidade oscilava em sucessivas paradas para que os sujeitos já compactados descessem e outros embarcassem. a lata cada vez mais carregada e lenta, com a preguiça de uma babosa, se arrasta pelas ladeiras da cidade e em freadas bruscas e arrancadas estúpidas, e o traçado de curvas ondulantes, seguimento retilíneo, tudo isso como regras de um joguete de corpos que obedeciam ao ritmo imposto: para frente, para trás, para a direita, para a esquerda, agora lançamento oblíquo. sem ordem, ao acaso. os corpos obedeciam, amontoados e deprimentes e pagavam a viagem com dinheiro roto, suado, mas sempre pagavam por isso.

(traduzido do castelhano por leo gonçalves)

zé celso & os sertões no rio de janeiro

há mais ou menos um ano atrás, eu e patrícia assistimos à primeira apresentação integral da peça “os sertões” do grupo oficina uzyna uzona, comandado por zé celso martinez corrêa. trata-se de uma obra monumental, apresentada em cinco dias, com cerca de 5h por apresentação. a epopéia de euclides da cunha, em cena, se divide em “a terra”, “o homem I – do pré homem à revolta”, “o homem II – da revolta ao trans-homem”, “a luta I” e “a luta II”. 25 horas de teatro em alta voltagem. poesia, ritual, música, oficina de humanizar. a peça marca para mim uma verdadeira mudança de paradigma. mudança de rumos. último capítulo de uma longa história que começou no dia em que comecei a gostar de arte. última fase da última limpeza que fiz nas minhas “portas da percepção”. assisti à peça depois de haver escrito “uma festa bacana”, poema que traz muitos elementos da peça, assim como uma prosa delirante e inédita que somente a minha namorada conhece, e que li para ela no última madrugada da nossa estada em são paulo, de 25 para 26 de setembro de 2007, logo após assistirmos “a luta 2”. a peça de zé celso me corroborou.

assim como outras peças do oficina, “os sertões” é um capítulo da luta que o grupo trava contra o grupo sílvio santos (ss) há 25 anos. “as bacantes”, “boca de ouro”, “ham-let”. isto porque o teatro está construído exatamente no lugar onde sílvio santos planeja construir um imenso shopping center. uma história sórdida que está documentada no site do oficina e que merece ser acompanhada na íntegra. uma guerra de davi e golias, a velha guerra entre arte e capitalismo.

numa entrevista à revista folhetim, zé celso comenta:

“o teatro oficina é uma coisa muito estranha porque não é mais nem uma metáfora: eu comecei não querendo entregar o teatro, quando voltei do exílio, por uma questão até de birra, porque saí de lá à força, com a polícia invadindo etc. e de repente, eu me vi pensando: “não, eu podia fazer exatamente tudo que eu faço em outro lugar, como posso fazer todas as peças que faço noutro lugar, mas, se eu fizer nesse lugar, eu vou ter mais problemas e, conseqüentemente, esses problemas vão me inspirar mais, porque se trata realmente de ver até que ponto existe um poder na cultura e na arte e qual é o confronto que elas estabelecem com as forças reais da sociedade, até que ponto o teatro tem algum poder.”

agora, no princípio de outubro, a peça “os sertões” se apresenta mais uma vez na íntegra. desta vez, no rio de janeiro, depois de ter passado pelo recife e salvador em uma mini-turnê (que infelizmente não inclui belorizontem) a obra se insere na programação da 8º riocenacontemporânea.

para mais informações:

www.riocenacontemporanea.com.br
www.teatroficina.com.br

com a palavra, o excelentíssimo senador renan calheiros

minha absolvição pelo plenário do senado é uma vitória da democracia brasileira. uma vitória de todos os que continuam acreditando na verdade e no sentido de justiça; uma vitória do senado, que comprovou, através do voto, sua isenção e responsabilidade.

(acho que isto merece resposta. no site dele tem uma sessão fale com renan. sugiro a todos que entrem lá e falem com ele, então: www.falecomrenan.com.br)

revista zunái

está no ar a versão virtual da revista zunái (www.revistazunai.com.br) que é comandada por claudio daniel e rodrigo de souza leão, além do projeto gráfico de ana peluso e um conselho editorial de peso. este número, como sempre muito bonito, tem sua iconografia baseada em reproduções do acervo do museu de cabul (afeganistão), destruído em 2002 por milicianos do talebã, e também de objetos saqueados no iraque, durante a segunda guerra do golfo. não podia calhar melhor nas vésperas do 11 de setembro.

belvedere bonito de ver

de vez em quando, aparecem estrelas no meio da rua. demorou para verem que o chacal está na área. há 35 anos atrás, o torquato neto avisava na sua geléia geral que tinha um cara na área. hoje, passada muita zoação, muita festa, muito baco, muito cep20000 e tontas coisas… já era hora.

o belvedere do chacal tá lindão. da coleção ás de colete, da parceria 7letras/cosacnaify. uma capa verdona e um adendo chamado quamperios pra dar o clima da época do mimeógrafo.

chacal explica:

belvedere é um lugar que você vai para ver a vista. tinha um no final da serra das araras, na rio-são paulo, onde eu parava sempre que ia para Mendes com a minha família nas férias. naquele tempo, as viagens de carro eram custosas. depois de algumas horas rodando, chegávamos ao belvedere. era a festa. comer, beber, correr. assim é que eu me sinto aqui neste livro. depois de 36 anos de exercício poético e 13 livros publicados, dou essa parada estratégica para ver a vista. espero que você, leitor, possa se alimentar e se divertir, possa ler, ver e ouvir.

saravá! evoé!

acho que cai bem pra ocasião, o penúltimo poema do primeiro livro dele: o muito prazer.

sorte

hoje deu meu número na roleta da vida

programa petrobrás cultural

no último dia 11 saiu o resultado do programa petrobrás cultural. detalhe interessante: nesta edição a petrobrás resolveu destinar uma parte do seu investimento em literatura. uma antiga demanda do setor, dizia num parêntesis o edital de dezembro/2006. ficava implícita a atuação do movimento literatura urgente nesse sentido. e logo, essa abertura gerou de imediato uma séria discussão sobre as condições do programa. a empresa se propunha investir naqueles escritores “que já mostraram anteriormente a importância do seu trabalho”. assim, o autor deveria ter em seu currículo pelo menos 1 livro publicado e com isbn, além de um contrato já fechado com alguma editora com registro legal.

marcelo sahea, ricardo aleixo e ademir assunção levantaram em seus respectivos blogues as melhores questões e foram em cheio: qualquer um sabe que poetas no brasil sempre publicam “às próprias custas s. a.” apenas alguns poucos se deram o trabalho de correr atrás de editora e de registro na biblioteca nacional. partindo desses princípios, quem sairia em primazia seria a ficção.

tratavam-se de discussões interessantes surgidas num momento inoportuno, na minha opinião. e fiquei calado. afinal, era a primeira vez que um programa como esses surgia no cenário nacional, já tão carente de boas iniciativas. a minha reação foi me deparar com um outro problema que colocava já em crise a exigência da petrobrás: como vocês podem ver aí ao lado, meus livros publicados são em sua maioria tradução de poesia e meu único livro de poemas passa muito longe de um registro comercial. para falar verdade, não penso nem sequer em me dar a tal trabalho por razão nenhuma. por outro lado, considero esses trabalhos de tradução tão importantes quanto meu trabalho criativo, pois me abre uma porta pouco freqüentada por quem escreve que é a do intercâmbio de idéias (e de poéticas) no ato de criação.

decidi então que inscreveria o meu “tratado de pequenos crimes”. de certa forma já sabia que não seria contemplado, mas achava necessário fazê-lo. politicamente mesmo. para que a questão se fizesse um problema real no ato da escolha. para criar um pouco de dúvidas quanto às regras.

não posso negar que cultivei uma certa expectativa. mas também, não posso deixar de ficar contente pelos poetas que alcançaram a distinção: ricardo aleixo, chacal (o livro dele é uma ficção!), sérgio alcides, rodrigo de souza leão, josely vianna baptista…

recebi a seguinte mensagem da petrobrás na manhã do dia 11:

a grande quantidade de projetos inscritos, a excelente qualidade apresentada e a limitação dos recursos disponíveis para atendê-los tornou extremamente difícil a escolha final. por essa razão, caso seu projeto não tenha sido contemplado, gostaríamos de esclarecer que a abertura de inscrições de projetos para a edição 2007/2008 será anunciada em breve no site da empresa, não havendo qualquer impedimento de re-inscrição de seu projeto.

bem, não sei se re-inscreverei o meu tratado. mas acho que o saldo é positivo. fico sonhando que outras empresas também tomem iniciativas desse tipo.

mais notícias pela bloguesfera afora

chacal lança na flip o livro belvedere, que reune a poesia dele até aqui.

comentário: a notícia de que saiu essa reunião dos 36 anos de criatividade do chacal me deixou letrelétrico e me trouxe muito prazer. afinal, é tão difícil achar os livros dele. e a vida é curta para ser pequena. (www.chacalog.zip.net)
marcelo sahea, inventor de uma coisa divertida chamada poegifs, lança o seu novo site. visceral. está ainda em construção, mas já dá para passear por lá.
comentário: o site está lindão. marcelo sahea não é só um poeta em carne viva, mas um puta artista gráfico. passa lá: www.sahea.net (www.poesilha.blogspot.com)

marcelo terça-nada! criou há alguns dias uma coisa bacana: um centro de informações bloguísticas chamado vizinhança. comentário: de idéias boas é que o mundo vive. leio jornais e acho uma merda. só consigo me ver realmente informado quando dou uma passada pelos blogues. (www.virgulaimagem.redezero.org)

renato negrão, makely ka e chico de paula vão a ouro preto dar a oficina de “desespecialização artística”. de 16 a 20 de julho. comentário: grande sacada essa. a proposta vai na contramão do capitalismo atual onde o mais bonito é sempre ser cada vez mais especialista. saber cada vez mais sobre cada vez menos. (www.nocalo.blogspot.com)
lenise regina retoma a sua palavra sem nome, dando a palavra ao poeta-repórter especial julius cesar, que está cobrindo a flip – festa literária de parati. lá também você tem mais notícias sobre o belonovo livro do chacal. comentário: regina é palavra latina e quer dizer rainha. ela e seu césar. não é à toa que a letícia, a rainha do trocadilho chama ela de primeira dama. êh lindeza! (www.poesiahoje.art.br/palavrasemnome)

Um título não é um livro

Não gosto muito do título desta tradução. No original ele se chama ABC of reading. Mas não é por isso que eu não gosto, não é por causa da pretensa “fidelidade” ao original. Até acho que Abc da leitura não ficaria tão elegante. O Brasil é um país de analfabetos. Se deixassem assim, Abc da leitura, poderia acontecer de um político metido a besta querer obrigar as escolas de ensino fundamental a adotá-lo como cartilha básica para alfabetizar a criançada.

Mas um título não é um livro.
Li na segunda passada no blogue do Ademir Assunção:

“Pound, aliás, me salvou do infortúnio de ter que ler vários chatos. Me serviu o filé minhon, num livro básico chamado Abc da literatura“.

Acho que ele salvou a mim também. Se hoje me sinto capaz de dar alguma opinião sincera e independente sobre qualquer texto, devo isto a Ezra Pound.

O li pela primeira vez quando tinha apenas 18 anos e, na época, não pude assimilar tão bem as coisas que ele diz. Recentemente, preparando a palestra “Sobre a poesia: Juan Gelman”, que apresentei em uma universidade do interior de Minas, percebi o quanto Pound contribui para o que se faz hoje.

Acho que os mestres da faculdade deveriam dar a este livro o seu devido valor. Pound faz nada menos que devolver sentido às coisas. Tarefa simples quanto às pretensões, difícil quanto à importância e a responsa.

Parece que a única coisa que realmente vale a pena enquanto crítica, a meu ver, é isto: devolver sentido às coisas que o vão perdendo com o tempo, as chuvas e as tempestades. Elaborar é dar um ponto de partida, chute inicial.

Por exemplo: todos os dias eu vejo uma menina que me deixa de cabeça virada. No entanto, eu nunca pensei a fundo sobre isto. Um dia, ela passa com outro. Ou seja, sobrei. Daí, surge a importância de se elaborar.

A menina passa por mim. Decido pensar sobre isto para que eu tenha algo a lhe dizer. Pronto. Ela pode até me dizer que não quer nada comigo, mas pelo menos terei pensado e feito algo a respeito.

O poeta é a antena: mas não basta apenas perceber. É necessário elaborar e tornar palpável aquilo que a percepção anuncia. Daí que na poesia se encontre muito mais realidade do que em qualquer Flaubert. A poesia exige olhos atentos para o real. Por isso é que Pound tem todo um cuidado, um apego pelos termos bem colocados. Para que funcionem. Sendo assim, ele é um pouco contra a literatura. Diz que poesia não é literatura, pois está mais perto das artes plásticas e da música. E tem razão.

Acho que é por isso que não gosto do título deste livro em português. Mas não proponho solução possível. Um título não é o livro.