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notas sobre a negritude

pode procurar por aí. o termo negritude é encontrado por toda parte. uma banda de pagode, um portal de web, uma linha fashion, coluna reservada para assuntos afro no jornal. poucos sabem que a palavra se espalhou por todo o mundo por causa de um movimento literário ocorrido nos anos 30, sob a tutela de três grandes escritores: aimé césaire, leon gontram damas e léopold sédar senghor.tudo começou assim: um jovem estudante estigmatizado pela cor da pele publica no jornal l’étudiant noir um artigo defendendo a beleza e o valor de sua ‘negritude’. uma atitude repleta de mandinga e de gingado, pois estava usando um termo pejorativo a seu próprio favor. quando léopold sédar senghor leu o artigo, ficou empolgadíssimo, pois ninguém conhecia melhor do que ele a nobreza do seu povo. sintetizou: ‘negritude: o conjunto dos valores de civilização do povo africano.’ o termo transformou-se num conceito. e léopold foi quem levou a expressão às suas mais profundas conseqüências.

senghor nasceu em 1906 e publicou muita poesia, muita pesquisa em diversas áreas (lingüística, antropologia, sociologia, teoria literária) entre os anos 30 e os anos 50. em 1960 recebeu uma proposta dos líderes políticos do senegal: que se tornasse o presidente do país. e com uma vantagem: poderia governar enquanto quisesse. entre 1961 e 1980, quando já era um grande intelectual e poeta, senghor se tornou um dos maiores estadistas que o mundo já conheceu. e qual era o primeiro e grande conceito teórico que o norteou como político? quem responder marxismo, leninismo, maoísmo, castrismo, estará perdendo tempo: o conceito mestre da política senghoriana se chamava ‘negritude’.

a essas alturas, a ‘negritude’ já havia se transformado e crescido a proporções fenomenais. o termo, com o tempo, deixou de ser a afirmação de uma raça pra ser a exaltação de uma postura universalizante. o africano está em toda parte. o conceito se desdobrou depois em ‘mestiçagem’, ainda com o caráter inicial de afirmação dos valores de um povo estigmatizado pela história, mas com ênfase cada vez maior na questão cultural. e já começavam a surgir na própria áfrica movimentos e manifestações que contestavam a ‘négritude’. é o que fez por exemplo wole soyinka, autor nigeriano, hoje prêmio nobel de literatura: “um tigre não precisa declarar sua tigritude, ele salta sobre a sua presa”. o que em todo caso não é senão, um desdobramento da idéia inicial, agora interiorizada no movimento do corpo.

homenagens

no mês de março deste ano, publiquei na revista roda – arte e cultura do atlântico negro uma série de 5 poemas bastante representativos de léopold sédar senghor. é que em 2006 o poeta completaria 100 anos. e não esteve longe de completar, pois faleceu há apenas cinco anos. na revista, os editores ainda lembram de um festival mundial de arte negra que aconteceu em 1966, sob a chancela do então presidente do senegal (este festival terá sua segunda edição no ano que vem em dakar). a publicação foi portanto uma das primeiras manifestações brasileiras em comemoração ao centenário do poeta. mas não acaba por aí. a casa áfrica está organizando a ‘semana de cultura do senegal’ que acontece entre os dias 22 e 29 de maio de 2006. na ocasião haverá sarau, exposição, mesas redondas e outras coisitas mais em homenagem a esse grande camarada senegalês. fiquem atentos.

algumas informações sobre a poesia do célebre desconhecido

no brasil, pouquíssima gente sabe da existência de senghor. embora seja considerado uma das mais lúcidas cabeças do século, e a par disso, um dos maiores poetas da língua francesa, o brasileiro não teve acesso ao pensamento e à poética dele. uma única edição de seus poemas apareceu em 1969 pela extinta grifo edições em tradução de gastão jacinto gomes. uma vasta amostra da lírica senghoriana, com apenas dois defeitos: a edição não é bilíngüe, e além disso lá só se encontram poemas escritos até 1969: como não houve edição posterior, nada foi acrescentado e a edição definitiva da oeuvre poétique apareceria somente em 1989 com duas séries de ótimos poemas escritos nos anos 70 (como é o caso da “elegia para a rainha de sabá”) e outra de “traduções” de poemas tradicionais africanos (cantos banto, peul, bambara…).portanto, falta muito ainda para oferecermos ao público brasileiro um panorama claro de sua obra.

outro ponto curioso é que sua poesia se insere numa tradição pouco explorada no brasil. nem mesmo o nosso cruz e sousa pode ser comparado com ele. a poesia dele é descendente direta de walt whitman e de paul claudel: versos longuíssimos, reflexões místico-cristãs, tradições, profecias e vozeirões (ao lado de flores da mais pura delicadeza:

pérolas

pérolas brancas
lentas goteletas
goteletas de leite fresco,
luzinhas fugitivas ao longo dos fios do telégrafo,
ao longo dos longos dias monótonos e grises!

a qual paraíso? a qual paraíso?
luzinhas primeiras da minha infância
jamais reencontrada…

perles

perles blanches,
lentes gouttelettes,
gouttelettes de lait frais,
clarets fugitives le long des fils télégraphiques,
le long des longs jours montones et gris!

à quel paradis? à quel paradis?
clartés premières de mon enfance
jamais retrouvée…)

pouquíssimas vezes se preocupa com a rima, jamais com a métrica. uma poesia que se irmana com o trabalho de neruda e saint john perse, cujos versos se aproximam da prosa.

ao mesmo tempo, a sua poesia é rica em sonoridades, aliterações, e principalmente, jogos visuais, fanopéia. como traduzir um verso como “l’ouragan arrache tout autour de moi”? g. j. gomes traduz assim: “o furacão tudo arranca ao meu redor”. há exatidão na imagem, mas o som do verso de cinco acentos sucessivos se perdeu. façamos mais uma tentativa vã:

o furacão

o furacão arrasta tudo em torno de mim
e o furacão arrasta em mim folhas e palavras fúteis.
turbilhões de paixão silvam em silêncio
mas paz sobre o tornado seco, ao final do inverno!

tu, vento ardente vento puro, vento de primavera, queima toda flor todo pensamento
vão
quando recai a areia sobre as dunas do coração.
serva, suspende teu gesto de estátua e vós, crianças, vossos jogos e risadas de marfim.
tu, que ela consuma tua voz com teu corpo que ela seque o perfume de tua pele
a chama que ilumina minha noite, como uma coluna e como uma palma.
abrasa meus lábios de sangue, espírito, sopra sobre as cordas da minha kora
que se erga o meu cantar, puro como o ouro de galam.

l’ouragan

l’ouragan arrache tout autour de moi
et l’ouragan arrache en moi feuilles et paroles futiles
des tourbillons de passion sifflent en silence
mais paix sur la tornade sèche, sur la fuite de l’hivernage!

toi vent ardent vent pur, vent-de-belle-saison, brûle toute fleur toute pensée vaine
quand retombe le sable sur les dunes du coeur.
servante, suspends ton geste de statue et vous, enfants, vos jeux et vos rires d’ivoire.
toi, qu’elle consume ta voix avec ton corps, qu’elle sèche le parfum de ta chair
la flamme qui illumine ma nuit, comme une colonne et comme une palme.
embrase mes lèvres de sang, esprit, soufflé sur les cordes de ma kôra
que s’élève mon chant, aussi pur que l’or de galam.

Um de Léopold Sédar Senghor

Mulher negra

Mulher nua, mulher negra
Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!
Eu cresci a tua sombra; a doçura de tuas mãos vendava meus olhos.
E eis que no ventre do verão e do meio-dia, eu te descubro, terra prometida, do alto de
um alto colo calcinado
E tua beleza me acerta em pleno peito, como o relâmpago de uma águia.

Mulher nua, mulher obscura
Fruto maduro de carne firme, sombrios êxtases do vinho negro, boca que bota lírica a
minha boca.
Savana dos horizontes puros, savana que freme às carícias quentes do vento leste
Atabaque esculpido, atabaque tenso que rosna sob os dedos do vencedor
Tua voz grave de contralto é o cântico espiritual da amada.

Mulher nua, mulher obscura
Azeite que não crispa nenhum sopro, azeite plácido nos flancos do atleta, nos flancos
dos príncipes do mali
Gazela de laços celestes, as pérolas são estrelas sobre a noite de tua pele
Gozo de jogos espirituosos, os reflexos do ouro rubro sobre tua pele que rebrilha
À sombra de teus cabelos, se esclarece minha angústia aos sóis próximos de teus olhos.

Mulher nua, mulher negra
Eu canto tua beleza que passa, forma que fixo no eterno
Antes que o destino cioso te reduza a cinzas para nutrir as raízes da vida.

A tradução é minha e está publicada na revista roda nº1. O poema é de Léopold Sédar Senghor. Para ler o original, clique aqui. Este poema é considerado o grande hino do continente africano, onde a África é comparada com uma mulher extremamente sensual. Eu comparo dialeticamente este poema com um poema de Cruz e Sousa: “Afra”. Um dia eu ainda explico por quê.

A mulher na foto é a dançarina senegalesa Germaine Acogny, que foi amiga do poeta.

coisas que têm feito a cabeça do salamalandro


oriki orixá. antônio risério.

antônio risério é um baiano retado capaz de conciliar extremo rigor com paixão fulminante. antropologia? filosofia? poesia? o livro trata de tudo isso sem perder a profundidade em nenhum instante.
alguém pergunta: e o que é um oriki? o mais fácil seria dizer que são poemas de elogio de uma entidade, personalidade ou (no caso dos traduzidos neste livro) um orixá. mas se isso respondesse a tudo, nada justificaria o longo e curioso comentário que precede os poucos e exemplares orikis que aparecem ao final do livro.
o assunto faz o leitor curioso se lembrar da faceta mais esquecida da nossa formação enquanto povo: a áfrica. e aqui ela aparece em trono de brilhos e cores.
bantos malês e identidade negra. nei lopes
e por falar em áfrica, em se tratando do segundo maior continente do planeta, pode-se dizer que sabemos ainda menos da nossa origem banto. aliás, não sabemos quase nada sobre os povos africanos em geral. acho que eu já disse isso por aqui.
este livro elucida coisas que eu nunca supus:
1. dos negros que vieram para o brasil, boa parte era de origem muçulmana (conhecidos como malês).
2. os povos bantos são considerados povos inferiores pela historiografia brasileira.no entanto, representaram, na história, uma das maiores resistências ao poderio europeu. (destaque para a rainha que ficou conhecida por nzinga. reinando desde matamba, angola, foi o osso duro que portugual nunca conseguiu roer de todo).
3. se a nossa fala se distingue da fala de portugal, o principal motivo, ao que parece, é a presença dos povos banto no brasil.
de modo que este livro tem me oferecido um novo tempo mítico para as minhas concepções de mundo. (quem quiser saber mais sobre o camarada nei lopes, procure por aí. já postei outro dia um comentário sobre ele).

detalhe: este livro encontra-se esgotado em todo o brasil. mas sei de uma promessa do autor de uma edição revista. saravá!
personas sexuais – arte e decadência de neffertiti a emily dickinson. camille paglia.
este é um desses livros bons para derrubar conceitos fáceis e pré-estabelecidos no ocidente. de fato, em geral, a tendência é escolher por uma saída racional para as questões que angustiam o ser humano. mas camille é seguidora de sade. propõe uma solução dilacerante e dionisíaca para o famoso sonho de rouseau de que “homem é bom por natureza, é o meio que o estraga” – origem de todas as utopias modernas. história da arte. história da sexualidade. história da literatura. antropologia. psicologia. personas sexuais é tudo isso e ainda mais.
deixo aqui apenas uma frase, que aliás, gosto muito: “o dionisíaco não é nenhum piquenique.”
detalhe: para variar, o livro encontra-se também esgotado em todo o brasil.
el arco y la lira. octavio paz.
quem me conhece já sabe: este livro me acompanha há pelo menos uns cinco anos. é meu livro de cabeceira. o maior e melhor testemunho de um apaixonado pela linguagem das linguagens que já tive em mãos. perto dele, o abc da literatura do ezra pound fica no chinelo. afinal, estamos falando de um dos maiores intelectuais da américa latina. no tratado, paz concilia densa poesia com profunda dissertação. como as outras coisas que mexem comigo, nele também você encontra: poesia, filosofia, antropologia, crônica de costumes, teoria literária. e pora aí vai.
a primeira edição deste livro foi escrita em 1955. desde então, octavio paz fez algumas atualizações, mas creio que as principais idéias não mudaram muito. e é de uma atualidade desconcertante.
como encontrar? a edição castelhana encontra-se com facilidade. a brasileira não. publicada há uns 20 anos pela nova fronteira, está hoje completamente esgotada. aquele que a encontrar terá nas mãos uma raridade. agora, para os apaixonados pela linguagem, um conselho: leia o livro no original.

Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro

para quem não foi no lançamento no dia 21 de março, apenas o toque: esteve belíssima a festa, com grandes apresentações. destaque para a performance dadaísta de renato negrão e o mini-espetáculo-fetichista de benjamin abras. grande brinde: ricardo aleixo e rui moreira lendo alguns dos poemas de léopold sédar senghor traduzidos por mim e publicados na revista. saravá!
agora, aos vivos: a revista está circulando. para conseguir, é necessário contactar a fundação municipal de cultura. Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro é uma das revistas mais interessantes que tive em mãos nos últimos tempos. a considero um importante marco na cultura belorizontina. uma revista futurista. parabéns para os editores. tomara que não chegue ao fim depois do fan. e re-saravá!

saravá, malandro

na próxima terça, dia 21 de março, acontece o saravá de celebração do dia mundial da poesia e do dia internacional de combate à discriminação racial, como mais um episódio do 3º FAN – Festival de Arte Negra. conforme nos explica o jaguadarte, saravá é o nome que haroldo de campos dava aos saraus que ele freqüentava. no palco: grupoPOESIAhoje, benjamin abras, ricardo aleixo, maurício tizumba, renato negrão & mônica aquino, rui moreira.

após o saravá, haverá o lançamento da revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro. o salamalandro colabora com uma homenagem ao centenário do poeta senegalês Léopold Sédar Senghor. na revista, ainda: entrevista exclusiva com Moniz Sodré, dossiê do artista plástico Antônio Sérgio Moreira, reportagem sobre a presença das mulheres no funk e no hip-hop.

dia: 21 de março (terça-feira) às 20h

local: centro cultural ufmg – av. santos dumont, 174 – centro

e saravá!